29.4.06

Peregrinatio mediolanensis VI

[Piranesi - Carceri d'Innenzione VII]

Soam como elefantes em fúria, bramindo pela camarata. Que é isto. Onde estou. Levanto-me assustado. Já sei. Estou na pousada da juventude de Milão. São sete da manhã. As sirenes furiosas recordam-nos que dentro de uma hora, no máximo, temos de ter o pequeno-almoço tomado. Olho em volta. Caras estremunhadas. Desconhecidos. Alguns olham-me com curiosidade. Não me tinham visto chegar, na noite anterior. Vamos em fila para os balneários, silenciosos, encontrando pelo caminho os residentes das outras camaratas. Duche. Não me lembro se havia água quente. Tenho fome e frio. Dos balneários para o refeitório. Ouvem-se alguns risos. Murmúrios. Respira-se um ambiente marcial. Pão, doce, leite. Bom. O Pão não tem miolo, só côdea. É seco, esfarela-se quando o tento abrir. Barro a côdea com o doce de laranja, amargo. O leite é razoável. Não era isto que esperava. Quero ir para casa. Mas pelo menos a fome passou. Um empregado com modos bélicos berra-nos que são quase nove horas, e que a essa hora temos de estar todos na rua. A pousada fecha entre as nove e as cinco da tarde. Que cada um se entretenha como puder, até lá. Raus!

Peregrinatio mediolanensis V

[Münch - Ansiedade]

Milão. Não a vejo ainda, mas pressinto-a nos subúrbios industriais. Na mancha negra, lá ao fundo. Poluição. Céu cinzento. Chumbo. Deixei uma Lisboa solarenga, morna, dois dias antes. Milão surge-me agora monstruosamente cinzenta. Anoitece, quando chego à belíssima estação central. Tenho a morada da pousada de juventude onde me alojarei. Posso apanhar o metro, tenho todas as indicações necessárias para isso. Mas estou derreado, teria de andar a pé ainda algumas centenas de metros. Táxi. Consigo explicar em "italianês" para onde quero ir. Parece simpático. Olho pela janela, sorvendo esta paisagem nova e surpreendente. Milão é, com as ressalvas que mais adiante farei, uma cidade medonha, contrariando cruelmente todas as minhas expectativas. Ruas desertas. Cinzentas. Blocos de apartamentos uniformes, frios, feios. Sinto um vazio cada vez mais opressor. Não era para aqui que eu vinha. Aproximano-nos da pousada, diz o taxista. Vejo uma prostituta a entrar num carro. Tenho sono. Sinto-me pesado, vejo tudo turvo. Já nada me parece atingir. Nem quando o taxista me engana no troco. Protesto durante alguns segundos. Para quê. Encolho os ombros, faço um gesto de desprezo e sigo para a pousada. Finalmente poderei descansar. Tomar um banho. Dormir. Levam-me ao quarto. Não, não é um quarto. É uma camarata, com vários beliches. Sempre tive horror a partilhar a minha intimidade com outros homens. Seja num balneário, seja partilhando um quarto. Dormir é, para mim, um acto íntimo, que só consigo fazer sozinho. E agora tenho de dormir numa camarata, com vários desconhecidos. Sinto que vou vomitar. Apetece-me sentar em cima da cama e chorar convulsivamente. Gritar. Mas não tenho forças. Cansado de dois dias de viagem. Sujo. Mal cheiroso. Roubado. Humilhado. Desiludido. Submeto-me, conformo-me. Sou informado de que as luzes se apagam às 22 horas. Recolher obrigatório. Não quero saber. Estou demasiado cansado. Duche. Cama. Por fim paz. Quebrada às 7 da manhã com o atroar de sirenes, como as dos bombeiros, que bramem através da instalação sonora das camaratas. Às 8 é servido o pequeno-almoço, às 9 temos de estar todos na rua, pois a pousada encerra até às 17 horas. É Sábado. Só na Segunda poderei tentar encontrar a Soledad. Não sei para onde vou.

Peregrinatio mediolanensis IV

[Escher - Répteis]

Em Hendaye sinto todo o peso da solidão, pela primeira vez nesta viagem. Do desespero. Tenho de mudar de comboio. São seis horas de espera. Mochila às costas, vagueio pelas ruas da cidade. Vem-me aos olhos a imagem da mãe a chorar em Santa Apolónia. Revoltam-se-me as entranhas. Que ideia a minha. A cidade agride-me. Arrasto-me, vergado pelo peso da mochila. Não sei onde parar. As pessoas olham para mim. Ainda falta tanto tempo. Pudesse eu voltar já para Lisboa. Não quero saber de Milão. Nem do resto da viagem. Quero parar. Sentar-me. Mas não consigo. É como se parar significasse desistir. E eu não quero desistir. Ando, ando sem parar, pela cidade. Até me faltarem as forças. Até que ver forçado a sentar-me no chão. Saltam-me as lágrimas. Ainda faltam tantas horas para o comboio. E eu já não quero ir. Quero voltar para casa. Tenho fome, mas não tenho forças para abrir a mochila e procurar comida. Não sei para onde vou, não sei.

Peregrinatio mediolanensis III

[Turner - Auto-retrato]

Je lisais, peut-être. Ou dormia, não sei. Era noite. Não, é pouco provável que estivesse a ler. Gosto demasiado do ronronar do comboio nos carris, à noite. Quando não se vê nada pela janela senão negrume, quando não há habitações por perto e as nuvens cobrem a Lua. Abre-se a porta do compartimento. Tu parles français? Ouais, enfin, je me débrouille. Ah, c'est bien. C'est que mon copain il dort, et je m'embête, ça te gêne si je reste ici avec toi? Senta-se em frente. Simpatizamos imediatamente um com o outro. Na altura eu era bilingue quase perfeito. Conta-me a sua história, que vai para Burgos com um amigo. Entrou em Coimbra, várias horas antes. Até ali teria rezado, se acreditasse em deuses, para ficar sozinho o resto da viagem. Porém em poucas horas criáramos laços, que se viriam a tornar fortes e duradouros. Mas isso ficará para outra história. O que interessa agora é que naquele momento fiquei triste. Tinha vontade de continuar o resto da viagem a conversar com ele. E Burgos estava quase. Depois chegou o amigo, estremunhado. Trocamos moradas, prometemos correspondência. Saem ambos. Dizem-me adeus da plataforma. E eu sigo, sozinho. Vazio. Não sei para onde.

Peregrinatio mediolanensis II

[Caravaggio - São João Baptista]

Lento, lentinho, lentamente. Devagar. Muito devagar. C'est ça, le mythique Sud Express? Cabina de seis pessoas. Vou sozinho. Tant mieux. Entra um casal alemão. Olham-me com um misto de repugnância e medo. Orelhas multifuradas (coisa pouco comum na época). Cabelo quase rapado, com sulcos "à máquina zero" formando riscas e desenhos. Calças de ganga rotas e manchadas. Botas militares. Óculos redondos, pequeninos. Não os censuro. Admito que o meu aspecto fosse muito pouco convencional, naquele início dos anos 90. Poucos minutos depois levantam-se e vão para outra cabina. Não sem antes levarem algumas baforadas de fumo, acompanhadas de olhares provocadores. Je veux être seul, vous ne voyez pas? Allez. Foutez le camp. Abro a mochila, e preparo-me para longas horas de leitura. Levava A Jangada de Pedra. Je l'ai lu trois fois. Aujourd'hui je lirais Dostoïevski, Umberto Eco, Borges, Joyce, Tolstoï. Mais à l'époque c'était Saramago qui m'enthousiasmait. Coimbra B. Ou será Coimbra A? Não importa. A custo dei pela passagem sobre o Mondego, tão embrenhado ia na leitura. Coimbra.

Peregrinatio mediolanensis I

[Turner - Rain, Steam and Speed The Great Western Railway]

Mochila às costas, um pé no comboio, outro na plataforma, mais um beijo de despedida à mãe. Um último adeus e entro na carruagem. Tenho ganas de partir, de conhecer o mundo. Um formigueiro insuportável no estômago. Sento-me. Olho pela janela. Ela chora. Eu volto a cara para não ver, para não chorar também. Pegar na mochila e saltar de novo para a plataforma. Não ir. Ficar. Ficar com a mãe. O comboio parte. Demasiado tarde. Agora vou mesmo. Tem de ser. Sinto-me homem pela primeira vez. Naquele dia o mundo mudou. Mochila às costas. Parto à aventura. Sozinho. Não tenho destino preciso. Só sei que vou para Milão, encontrar-me com a Soledad, de quem não tenho nem o telefone nem a morada. Sei onde trabalha, mas chegarei a Milão num sábado. Terei de esperar dois dias. Não importa. Parto. Sozinho. Depois, se encontrar a Soledad, se decidirá o rumo da viagem. Agora só sei que vou. Para onde, não importa.

25.4.06

Odi et amo

[Pontormo - Alabardeiro]
a J.

Não te amo. Salpicos salgados trazidos pelo vento. Avançávamos, lado a lado, junto ao mar. Sabia que mo dirias, um dia. Já o pressentia há muito. Olhava as vagas, cinzentas, revoltas. Estava frio. Não sabia o que dizer. E tu continuavas, impassível. Pensei que te amava. Pensei que eras "o tal", mas não. Gosto de ti. Mas não és "o tal". Percebes? Não, não percebia nada. Não me lembro se chorei. Talvez tenha deixado cair uma lágrima. Disfarçada pelos salpicos, agora mais grossos, trazidos pelo vento furioso. Não me lembro do que senti. Vazio. Talvez. Revolta. Porque achava que me amavas, apesar de tudo. Porque eu te amava. Ou achava que te amava. Tu percebeste-o. Eu, tolo, não. Perguntei-te se era o fim. Era uma pergunta retórica. O fim já estava a acontecer há algum tempo. Mas queria ouvi-lo da tua boca. Queria que mo dissesses claramente. Que deixasses finalmente cair o machado sobre o meu pescoço. Olhaste-me perplexo. Não, não é o fim. Eu gosto de ti. Não és "o tal", mas eu gosto de ti. Percebes? Não, não percebia nada. Um turbilhão de sentimentos. Eu queria o fim. Porque não aguentava mais. Porque te sentia fugir a cada dia que passava. Porque chorava todos os dias, vendo que te perdia. Queria o fim. Queria a sentença final. E tu não ma davas. Arrojar-me-ia aos teus pés implorando o fim desta agonia. Que tu me recusavas. Não sabia o que dizer. Não estava preparado para isto. Não queria ser eu a sentenciar esta relação morta. Não seria capaz. Nunca. Porque não desistia de ti. Porque achava que te amava perdidamente. E não disse nada. Sentado agora no pontão, encharcado, olhava o mar cinzento, e não via nele sofrimento nem humilhação nem falta de amor-próprio. Achava que te amava, e que entre agonizar e não te ter, a escolha era óbvia. As ondas molhavam-me os pés. Mas eu não dava por nada.

24.4.06

O desejo

[Boudin - Costa de Portrieux]

a J.

Deitados, de costas, nas areias finas como farinha. Olhávamos as poucas estrelas e não dizíamos palavra. Era apenas a terceira vez que nos víamos. Mas era como se fosse de novo a primeira. Silêncio. Sabíamos o que estava no coração de cada um. Perto, demasiado perto, o marulhar das ondas, que quase nos lambiam os pés descalços. Não se via quase nada. Sentíamos apenas a presença um do outro. Sabíamos o que queríamos. Mal nos conhecíamos. Sabíamos, porém, que naquele momento não podíamos conceber a vida um sem o outro. Era arrebatador. Não ousávamos confessá-lo. Bons amigos, com medo de deitar tudo a perder com um gesto mais imprudente. Deitados de costas, olhando as estrelas esparsas, cobertas por uma neblina densa que nos humedecia os cabelos e a roupa. Sem dizer palavra. Desejando-nos intensamente.

Édipo

[Emil Nolde - Mar de Outono VII]

Ainda sabíamos a sal, o banho estava atrasado. Que belo dia de praia. A casa de férias, alugada, era pequena, desconfortável, mas tinha algo imensurável: uma vista imensa sobre o oceano, do alto das escarpas. À janela do quarto espreitávamos talvez os reflexos dourados do Sol a desaparecer dentro do mar. Um fim de tarde digno de um postal piroso. Ainda não tínhamos sido chamados para jantar. Na sala, as vozes elevavam-se ríspidas, ladradas. Fomos brincar, para cima da cama, rindo e falando alto, para tentar não ouvir a tempestade que se levantava. Em vão. A voz do nosso pai ribombava-nos nas entranhas, cada vez mais alta. A mãe chorava e gritava. Ouvia-se também a voz da outra mulher, da amante do nosso pai. A minha irmã começou a chorar baixinho. Abracei-a. Aos gritos dos adultos juntava-se agora o choro do meu irmão, bebé de colo. Ao colo da minha mãe. A noite caíra, entretanto, e a tempestade crescia de intensidade. Não sei os motivos. Eram normais as discussões. Mas esta adquiria proporções nunca vistas. Parece que a mãe os tinha apanhado em flagrante, e atirava-lho o cara. Nós, agarrados um ao outro, chorávamos baixinho, aterrorizados com cada novo berro colérico do nosso pai. Angustiados com cada novo queixume da mãe. Depois faltou a luz. A minha irmã gritou muito. Da sala deixámos, de repente, de ouvir o nosso pai e a sua amante aos berros. Agora apenas nos chegavam os gritos desesperados da mãe, o choro aflitivo do meu irmão bebé, o som de algo a rebolar no chão. E sons secos. Pontapés. Murros. Empurrões. Estão a bater na mãe! Estão a matá-la! Agarrados um ao outro chorávamos descontrolados. Não me lembro de mais nada. Não sei como nem porque acabou o espancamento. A mãe entrou no quarto, a chorar, vermelha dos murros e dos pontapés, com o bebé ao colo. O bebé que tinha rebolado pelo chão enquanto o nosso pai e a amante a espancavam. Disse-nos que a abraçássemos, e saímos de casa, descalços, numa terra desconhecida, à procura de quem nos desse abrigo, de quem nos levasse para casa.

Fez ontem 60 anos de idade, e, apesar de não ter sido poupada pelas agruras da vida, é hoje uma mulher muito mais feliz, forte e digna do que os que a espancaram covardemente naquela noite de Verão, há cerca de 30 anos.

22.4.06

Retratos

[El Greco - Retrato de dominicano]

à memória do Rui

Coisas de miúdos. Miúdos crescidos. Uma máquina automática, daquelas de tirar fotografias para documentos. Achámos que seria divertido tirar umas. Entrámos lá dentro, quase encavalitados um no outro, tão exíguo era o espaço. Não fizemos caretas - miúdos, mas crescidos. Fizemos caras de parvo. Sorrisos assumidamente artificiais. Olhares esgazeados. Bom, se calhar fizemos mesmo caretas. Mas isso é o que menos importa. Depois passámos a noite a exibir as nossas belas fotografias - havia um jantar qualquer, nesse dia, lembras-te a que propósito? Eu não. Mas estava muita gente. Que não achou assim tanta graça às nossas belas fotografias. Eu gostei delas. Captaram-nos. Naqueles sorrisos de gozo, assumidamente forçados. Naquele enorme divertimento a propósito de algo que à partida não teria qualquer graça. Éramos nós. Éramos assim. Acho que são as únicas fotografias em que estamos juntos. Tinha-as expostas na minha casa antiga, no quarto, num "placard". Empacotei-as, juntamente com todas as outras pequenas recordações que insisto em guardar para sempre, quando para aqui me mudei, há seis anos. Não consigo encontrá-las, agora. Já abri todas as caixas. Não sei onde estão. Não as posso ter perdido.

19.4.06

Noctua

[Bestiário de Aberdeen, pormenor do fólio 50r]

Que bicho é aquele, que às vezes me acorda de noite aos guinchos? É uma coruja, ou um mocho. O que é uma coruja? É um pássaro. Só que em vez de voar de dia, voa de noite. E faz mal, a coruja? Não! Quer dizer, faz mal aos ratos e a outros bichos, porque os mata e come. Eu gosto de ouvir os guinchos da coruja. És um valente! Agora vá, vamos dormir.


Não devia. Mas agora já está. Não resisto. Que se lixe. Já que começámos, vamos até ao fim. Um lugar escondido. Vamos em silêncio, tremendo de excitação. Onde queres parar? Não sei, onde quiseres, tu é que conduzes. Estou nervoso. Nunca tinha feito uma coisa destas. Era quase um engate. Quase, porque éramos amigos. Entre amigos não há engates. E eu nunca faria um engate. Nunca me tinha passado pela cabeça chegarmos a isto. Bem, na verdade no ano anterior tínhamos trocado uns beijos. Inconsequentes, mais induzidos pelo álcool do que por qualquer tipo de atracção sensual. Mas isto? Já não eram só beijos. Parou o carro. Não vamos passar a noite toda nisto, diz-me, onde? Estávamos num caminho rural. Do lado direito, uma cerca. Reparo então nuns olhos enormes que me observam, insistentes. Pousada num poste da cerca, mais ou menos ao nível dos meus olhos, uma coruja. Olha-me fixamente. Parece uma estátua. Aqui. Pode ser aqui.

18.4.06

Hic sunt leones

[British Library, Royal MS 12 C. xix, fólio 6r]

Não se pareciam com rugidos. Eram como lamentos. Ferozes. Cortavam a noite, arrepiantes. Às vezes pareciam estar mais perto, e eu encolhia-me na cama, gelado de medo. Quase lhes sentia o fedor. Imaginava-os cercando a casa, abanando as jubas fartas, rugindo naquele tom lúgubre. Prontos a atacar. Às vezes calavam-se. Durante alguns minutos regressava o silêncio da noite. Mas logo novo queixume feria as trevas, e o meu pequenino coração de miúdo parava, gelado. Um dia o circo acabava por partir, e regressava a paz.

O tédio


[Steen - Lição de cravo]

Os dias arrastavam-se longos, demorados. Ambiente festivo à minha volta. Verão. Os sons são diferentes, abafados. Tal como eu me sentia. Ao longe o rugido do oceano, monótono. Chato. Passava estes dias inertes a ler. Não tinha escolha. De praia não gostava. Amigos, não os tinha ali. Restava-me a leitura, enquanto esperava mais ou menos pacientemente o fim do Verão. Levava alguns de casa, que em poucos dias consumia. Tinha então de arranjar mais. Em Santa Cruz o único sítio onde se podiam comprar livros era uma daquelas lojas que vendem de tudo, desde jornais a botões. Era uma loja mínima, onde caberiam no máximo cinco pessoas ao mesmo tempo. Do lado direito, duas estantes apertadas, com livros. Esgueirava-me para o pequeníssimo espaço entre elas, e percorria com dedos e olhos o seu conteúdo. Livros de aventuras, ficção científica, alguns clássicos portugueses. Tudo em quantidades reduzidas. Eram para mim tesouro sem igual. Impúbere, introvertido, nada me diziam então as longas noites balneares. Acordava cedo, ficava a ler na tenda, ou, em dias mais agitados, na praia. Agarrava-me aos Eças, aos Herculanos, aos Salgaris. Sem eles ter-se-iam tornado ainda mais arrastados, demorados, inertes, aqueles longos, insuportáveis dias de Verão.

17.4.06

Pietà

[Miguel Ângelo - Pietà]

à memória do Rui

Um grito partindo o ar pesado daquela manhã de Fevereiro. Não conseguira aproximar-me. Deixara-me ficar no meio da multidão. Ao longe. Não era capaz de ver aquilo. Ainda assim fizera questão de estar presente. Para despedir-me? Não sei. Não consegui fazê-lo, até hoje. Vi-o, no dia anterior. Os seus contornos, debaixo de um lençol. Imagem gravada para sempre. E naquela manhã não sei o que me levou ali. Não sou crente. Não acredito na vida depois da morte. Mas estava ali. Vejo-o sair da capela. Sinto-me sem forças, pronto a cair. Retenho as lágrimas, involuntariamente. Porquê? Tanta gente chora. Não consigo. Nó na garganta, cada vez mais apertado. É agora. É agora que vou chorar. Não. Não saem. E sufoco. Ardo por dentro. O trajecto é curto. Vou-me deixando ficar para trás. Perdido. E agora. Tudo se passa lá ao longe. Não me consigo aproximar. Deixo-me ficar aqui, no meio da multidão. Não quero ver aquilo. Não sou capaz. Percebo o que se passa apenas pelos silêncios da turba e pelos movimentos do padre e dos que o carregam, ao longe. Descem-no. Sinto-me a morrer. E depois o grito. De mulher desesperada. Partindo o ar pesado daquela manhã de Fevereiro.

Mater dolorosa

[Jusepe de Ribera - Mater dolorosa]

à memória do Rui

Vergada sobre a montra. Os olhos inchados de lágrimas perpétuas. Não sei o que olhava. Nada. Desesperada. Ali estava. Imóvel. Em que pensaria. Parei uns segundos. Para lhe perguntar por ele. Como estava. Soubera-o naquele mesmo dia. Não tive coragem de a acordar. Vergada sobre a montra. Não olhava para nada. Estátua de sal. Das lágrimas. Mater dolorosa.

14.4.06

Já não era tempo

[Redon - Barco vermelho com vela verde]

a C.

Já não era tempo de amar. Os dias da paixão há muito se tinham desvanecido. Tudo parecia agora um equívoco. Gostava de ti, é certo. Mas já tinha passado aquele incêndio que me consumira durante tanto tempo. Não partilhávamos quase nada. Eu achava que o ócio sem as letras era sepultura em vida. Tu veneravas a imagem, passavas bem sem livros. De que podíamos falar? Não me lembro de haver um único interesse que partilhássemos. Já não havia sequer a louca atracção física, que tudo compensara no início. Apesar disso eu não tinha força para dizer basta. Inércia. Chegáramos àquela fase dos longos silêncios pesados, de quem já nada tem para partilhar. Eu desistira, mas não o assumia. Tu parecias ter ainda esperança, mas esbarravas na minha indiferença. Arrastávamo-nos, sem solução nem fim. Até que um dia te fartaste da minha apatia. E também tu desististe. Já não era tempo.

9.4.06

Chispas


[Pontormo - Hermafrodita]

Uma noite sonhei contigo. Sugavas-me a alma. Possessiva. Na vida como no sonho. Eu rebolava-me no chão, em convulsões, enquanto a minha alma me saía pelos olhos, azul, com chispas eléctricas. Uma amiga comum tentava salvar-me de ti. Não me lembro se conseguia. Acordei assustado. Percebi que tinha de dar um rumo à minha vida. Onde tu não estarias.

6.4.06

Dizem?

[Henry Moore - Standing figures]

Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Porquê
Esperar?
- Tudo é
Sonhar.

Fernando Pessoa

4.4.06

A estrada de Damasco (II)

[Fra Angelico - Iluminura representanto a conversão de Paulo na estrada de Damasco]

Faz de mim o que quiseres. Ofegante. Sentia-lhe a língua húmida a percorrer-me o pescoço. Excitava-me. Beijava-lhe o pescoço, os lábios, quando os apanhava. Sussurrava-me coisas ininteligíveis. E eu suava, descontrolado. Enrolava-se em mim. Serpente. Ofegava. Eu reagia instintivamente, respondia com o corpo. Percorria-me com mãos ávidas, mordia-me as orelhas. Em delírio. Faz de mim o que quiseres, rouquejava. E eu percebi, finalmente, que não queria fazer-lhe nada.

O tesouro

[Andrea del Sarto - Cabeça de rapaz]

Havia sempre uma mais solta. Com uma faca, previamente surripiada da cozinha, verificava se tinha folga suficiente. Que tesouro haveria lá no fundo, desta vez? Agachado entretinha-me a escavar, cuidadosamente, não fosse espantá-los. Esgravatava à volta, tentando soltar o obstáculo que se interpunha entre nós. Finalmente cedia. Tremia de emoção. Pousava a faca, excitado. Esperava uns segundos, estudando o melhor processo de o fazer sem os assustar. Finalmente espetava os dedos no buraco que abrira a toda a volta, e, lenta mas seguramente, retirava a pedra da calçada. Se tivesse sorte, lá estaria ele, o meu tesouro. Não o levava nunca para casa. Ficava ali, a admirá-lo, antes de recolocar a pedra no lugar: uma miríade de besouros, bichos-de-conta, minhocas... todo o tipo de animaizinhos que, como eu, adoram a escuridão húmida e quente.

1.4.06

Penélope

[Alexandre Archipenko - Coquette]

Um dia nunca mais nos vimos. Não de repente. Tínhamo-nos indo, aos poucos, deixando de nos ver. Mas naquele dia percebi que não nos voltaríamos a encontrar. Era apenas a minha segunda namorada a sério, e eu tinha já 18 anos. Não que fosse feio, dizem até que na altura era um belíssimo rapaz - testemunhos que me vão consolando nesta trintona decadência física. Não, não era feio. Não me interessava por namoros, era isso. Pelo menos não por estes namoros. E éramos estranhos, ambos. Invertíamos, por assim dizer, as convenções estabelecidas. Eu era espiritual, profundamente platónico. Ela era carnal, tremendamente libidinosa. Um dia, no metro, em hora de ponta, disse que tinha sido apalpada por um desconhecido durante vários minutos. Disse. Não se queixou. Em casa, no quarto, lançava-se sobre de mim, seminua, gemebunda. Eu reagia quase maquinalmente, fazendo o que me ia solicitando. E ela não era feia. Não, longe disso. Era uma daquelas raparigas de fazer parar o trânsito, passe o lugar-comum. Tinha uns olhos enormes, magnéticos, enquadrados por largos caracóis despenteados. É tudo o que recordo dela, hoje, década e meia volvida. Ah, sim, tinha um peito bastante desenvolvido, no qual me sufocava, em momentos de maior paixão. Eu inventava bebedeiras, más disposições e dores de cabeça. Tinha acabado de entrar no curso de Línguas e Literaturas Clássicas, descobria, fascinado, Umberto Eco, e devia ser um miúdo tremendamente chato. Além disso cultivava, ainda, a pose frígida e distante que criara no início da adolescência, para contrabalançar um físico que, então, era no mínimo repelente (o acne, os primeiros esparsos pêlos da barba...). Não era homem para ela. Não era homem ainda, sequer. Começou a procurar paixão noutros lugares menos frios. Eu sabia que ela me traía. Fê-lo até com um amigo meu, que me veio pedir, educadamente, autorização prévia. Quando começámos o nosso improvável namoro ela tinha vários pretendentes, que rejeitara em meu favor. Agora estava arrependida. Via-se na maneira como me olhava. Recomeçou a recebê-los. Nunca assumimos a ruptura. Apenas deixámos de nos beijar, passámos a relacionar-nos como simples conhecidos. Quando, não sei exactamente. Foi aos poucos. Eu continuei a frequentar a casa, por amizade a uma das outras moradoras. Os pretendentes enxameavam agora a sala, e também o quarto que fora testemunha da minha frigidez. E isso não me entristecia. Sentia mesmo um suave alívio, quando a via mais romântica para com algum deles. A indiferença foi-se instalando entre nós. As visitas outrora regulares passaram a ser cada vez mais espaçadas. Ela entretanto tinha iniciado uma tórrida relação com um dos rapazes que rejeitara em meu favor. Os injustificados ciúmes dele tornaram as nossas já frias relações ainda mais distantes. Um dia nunca mais nos vimos.