31.7.06

Serenidade

[Gerrit Dou - Velha regando plantas]

A maior parte da vida passei-a entre a angústia e o sobressalto. Procurando a serenidade. Ansioso. E então escrevo. E quando a encontro não mais consigo escrever. E tanta serenidade me traz a escrita. Agora parece que a conquistei. Não definitivamente. Às vezes gostava de a perder por uns momentos, só para voltar a escrever. Perdê-la e no instante seguinte recuperá-la. Só para conseguir escrever meia dúzia de linhas que me satisfizessem.

29.7.06

Falhado

[Jacob de Il Gheyn - Quatro estudos de rãs]

Livros nunca escrevi. Suponho que esporádicas publicações científicas e literárias em revistas e jornais não contem. Tem de ser mesmo um livro. Com o meu nome na capa. Não sei se algum dia o farei. Duvido. Não tenho vocação para textos longos. Prefiro as frases curtas. Concisas. Destinado às colaborações esporádicas e a este e outros blogues.

Filhos nunca os tive. Agora podia acrescentar o previsível "que eu saiba". Mas não. Não tenho mesmo. De certeza absoluta. Nem quero ter. Deus me livre, diria, se fosse crente. Não é que não goste de crianças. Gosto. Caladinhas ou longe de mim. Ou maiores de dezoito. Muitas coisas falharam na constituição do meu património genético, esta é uma delas. Não tenho nem sequer vestígios de instinto paternal. Nada. São-me indiferentes. Pequenas bolas de carne hiantes. Por vezes mordem. Não, obrigado. Respeito muito quem gosta delas, porém.

Árvores já as plantei. Ou melhor, plantei uma. Lembro-me dessa manhã. Primavera chuvosa. O cheiro a pedra molhada. Doces dias. Enfiava os botins de borracha e corria até à escola, chapinhando nas poças de água. Ainda havia campo ao pé de casa. Por isso talvez não fosse cheiro a pedra molhada. Terra. Era a aula de hortofloricultura. Havia disciplinas com nomes destes, dantes. Escolhera-a porque vivia na terra. Encharcado na lama. Para desespero da mãe. Saltavam répteis e batráquios dos meus bolsos. Uma vez uma cobra deixou um cheiro forte numa camisa. Nunca mais saiu. Mas naquele dia não havia cobras. Nem rãs. Naquele dia havia aula prática.

Mais tarde contarei o que aconteceu. Agora não me apetece. Já vai longo este texto. Demasiado.

24.7.06

O sofá

[Fragonard - Aula de música]

Estava quase na hora. Pegava num bom livro. Tinha de ser bom. Mas não demasiado bom. Não me podia absorver em demasia. A escolha era por isso difícil. Um Eça, por exemplo, estava fora de questão. Demasiado bom. Olhava desencorajado as prateleiras onde se empilhavam tantos livros que nunca teria tempo de ler. Alguns demasiado bons. Acabava muitas vezes por escolher uma enciclopédia. Ou um livro de arte. Algum que pudesse folhear indolente pela noite dentro. Com prazer. Mas não em demasia. Ou um policial. Qualquer coisa. Só não podia ser demasiado bom. Raramente o mesmo livro passava de uma noite para a outra. Ao contrário dos livros mesmo bons, que me acompanhavam durante dias sem fim. Às vezes semanas. Não, estes não podiam ser tão bons. Tinham de ser interessantes. Mas não em demasia. Não fosse ficar demasiado absorvido pela leitura. Acabava por escolher quase aleatoriamente. Tanto tempo. Tanta hesitação. Para nada. Às vezes levava dois ou três, para ir folheando, para ir lendo com sossego e sem demasiada atenção. Sentava-me no sofá castanho ao lado da aparelhagem, procurava os auscultadores, sintonizava na Antena 2. Música na Madrugada. Começava à uma da manhã, se bem me lembro. Havia sempre uma voz feminina, não demasiado doce, que declinava monótona as obras a ouvir até o dia raiar. Dava pulos o meu coração quando reconhecia algum nome barroco. Não tinha nunca grandes esperanças de ouvir nomes renascentistas. Nem medievais. A Antena 2 nunca foi muito amiga da música antiga. Os barrocos já me deixavam perfeitamente satisfeito, porém. Um J. S. Bach, um Haendel, um Vivaldi, um Couperin, um Charpentier. Às vezes havia um Monteverdi. Anotava numa folha de papel a hora prevista para as obras que mais me interessavam e lançava-me sobre o livro. Auscultadores ligados. Ouvia mais do que lia. É que não estava ali para ler. Isso fazia durante o dia. Queria ouvir música. E sentia aquela necessidade inexplicável de me fazer acompanhar de um livro. Não demasiado bom, claro. Não fosse absorver-me em demasia, não fosse distrair-me da música.

22.7.06

As mãos

[Ânfora ateniense do século V a.C.]

As luzes não se apagavam na enfermaria. Era difícil dormir. Os gemidos dos outros. Sempre aquela dor indefinida na cabeça. E a incerteza do que me ia acontecer. Às vezes adormecia. Um sono leve. Breve. Logo se me abriam de novo os olhos. À minha volta imagens difusas. Como se dentro de uma sauna. Mas sem o calor. Permanecia num estado que não era nem de vigília nem de sono. Vencido pelo cansaço. Não o suficiente para um sono profundo. Então senti que me acariciavam. Havia uma mão. Ou duas. Por cima do lençol. Não havia dúvida. Acariciavam-me. Primeiro pensei que estava a sonhar. Mas despertei e a mão continuava ali. Levantei a cabeça para ver quem era. Uma bata branca desfocada fugiu rapidamente do meu olhar. Deixei cair de novo a cabeça sobre a almofada. Tinham-me acariciado. Agora tudo era nítido. Acordara de vez. Com os olhos semicerrados tentava surpreender de novo a bata branca fugidia. Nunca ninguém me tinha acariciado daquela maneira. Um aperto no estômago mantinha-me acordado. Suava. Cheirava mal. Queria ir para casa. Maldita hora em que decidi esticar as pernas.

21.7.06

A angústia

[Bosch - Cristo carregando a cruz]

Disse-se que eu tinha morrido. Ou que estava moribundo, ligado a uma máquina. Inventaram-se os pormenores mais extraordinários sobre o meu acidente e sobre o meu estado. Vivo ainda ou já morto. Era essa a dúvida que pairava sobre a escola. E de repente eu ganhara o estatuto de assombração heróica. Foi sem capacete. Ele é dos duros. O grandalhão esquisito está entre a vida e a morte. Não, já morreu. Estão só à espera da autorização da família para desligar as máquinas. Ele até era fixe. O meu nome ecoava pelos corredores da escola. Ganhara o respeito de todos, estatuto que só se consegue quando se morre ou se está perto disso. E eu, para todos os efeitos, estava morto ou perto disso. Chegavam-me estas notícias da minha morte ao remanso do meu quarto, onde, por mera precaução, teria de permanecer uma ou duas semanas em repouso absoluto. Sem televisão. Sem música. Sem livros. As dores de cabeça eram intensas. Explicaram-me que eram os líquidos do cérebro ainda abalados pelo choque. Ou coisa parecida. A minha memória não é já a mesma. Por isso não sentia a falta de nenhuma daquelas coisas. Aborrecia-me de morte. Para me distrair imaginava o regresso à escola. Seria tudo tão diferente. Deixaria de ser um adolescente isolado. Passaria a ser apaparicado por toda a gente. Pedir-me-iam que contasse o acidente com todos os pormenores. Seria o centro das atenções. Conhecido por todos. Finalmente popular. Talvez até houvesse por fim raparigas interessadas em mim. Seria tudo tão diferente. Uma angústia invadia-me o coração. Maior do que a dor de cabeça. Enfiava-me debaixo dos lençóis. Fechava os olhos furiosamente e amaldiçoava o momento em que tinha decidido esticar as pernas montado numa mota sem capacete.

19.7.06

As pernas

[Terbrugghen - Rapaz tocando flauta]

Tinha as pernas demasiado grandes. Incomodavam-me. Já não sabia onde as meter. Mil novecentos e oitenta e sete. Encolhido. Agarrava-me a C., sem saber onde meter as pernas. Cócegas no estômago. Sabia que estava a fazer algo proibido. Ousadia. A primeira vez. E aquelas minhas pernas enormes a estragar tudo. Não sabia se as encolhia. Se as enrolava à volta das suas. Desconforto. Enorme desconforto. Quase tão grande como as minhas pernas. Suava de excitação. Talvez arfasse. Tão tolo, sem protecção. Não quisera desperdiçar aquela oportunidade. Entregara-me por completo. E agora o meu problema eram as pernas. Dormentes. Dolentes. De bom grado as teria deitado fora. Sentia-me a cair. Uma tremenda vertigem. Será que é sempre assim. Não. Tinha de me agarrar a C. com mais ardor. E depois estiquei as malditas pernas.

Abri os olhos e já estava em pé. Todo eu doía. Sobretudo a cara do lado direito. E a cabeça. A cabeça. Como me doía a cabeça. Tão tolo, sem protecção. Procurei C. com o olhar. Mal conseguia mexer o pescoço. Levei a mão à testa e retirei-a vermelha de sangue. O lado direito da cara ardia-me tanto. Devo tê-la arrastado pelo alcatrão. Sabia-me a alcatrão. Tinha o lábio rasgado. Não sei como caí. Nem como me levantei. Abri os olhos e já estava em pé. Onde estás, C.? Ali está. Parou a mota e correu na minha direcção. Caíste pá. Estás bem? Dizia-o com os olhos, não com a boca. Não respondi. Não sei se era capaz de falar. Aquela dor de cabeça. Ia morrer. Olhávamo-nos mudos. Assustados. Talvez me tenha posto a mão no ombro. Tão tolo, sem protecção. No dia seguinte acordaria com a cara inchada. Com uma dor de cabeça insuportável. Ficaria várias horas em observação no hospital. Seria transferido para Lisboa. Ficaria internado em observação. Passaria semanas com aquela dor insuportável na cabeça. Pensaria que morria. Mas agora apenas tentava perceber o que me acontecera. Levava a mão à cara ardente e olhava C. nos olhos. Não sei durante quanto tempo. Se calhar nenhum. Mas pareceram horas.

Rapaz de brinco de arame

[Bruegel - A queda dos anjos rebeldes]

Era uma daquelas alturas do ano em que recebemos prendas. Não sei se foi quando fiz quinze anos. Se foi no Natal desse ano. Sei que me perguntou a mãe que prenda queria eu. Já tinha a resposta há muito preparada. Aliás, já há muito me passeava pela cidade com orgulhosas argolas de arame apertadas na orelha esquerda, que retirava cautelosamente enquanto subia as escadas de casa. Parecia mesmo furado. Mas não. E no entanto era um escândalo. E eu adorava escândalo. Hoje, quando os rapazes exibem grossos brilhantes em ambas as orelhas, parecerá ridículo. Em meados dos anos oitenta, na província portuguesa, era um escândalo tremendo. Uma ousadia, uma afronta às regras da sociedade. E eu, como qualquer adolescente, passava os dias a inventar novas maneiras de afrontar a sociedade. Essa entidade então abominada, mas que hoje não consigo sequer identificar. Naquela idade era tudo tão mais fácil. Havia a sociedade opressora e chata. E havia eu. Desafiador. Adolescente. Recusava-me a vestir roupas normais. Tinham de ser esquisitas. De preferência negras. Depois valia tudo. Botas militares. Calças rotas. Penteados bizarros. Tudo o que pudesse chocar. E usava argolas de arame na orelha esquerda. Era eu mesmo quem as fazia, enrolando arame num marcador. Com uma tesoura forte cortava-as, e ia variando o número a cada dia. Não tivera, no entanto, a audácia de as usar na orelha direita. No rígido código indumentário dos anos oitenta usar brincos na orelha direita implicava homossexualidade assumida. Coisa que na altura não me apetecia nada fazer. Rebelde dentro de limites estreitos. Mas agora dava o passo mais difícil. Deitar fora as argolas de arame. Furar de facto a orelha. Definitivo. Não mais poderia arrancar os brincos a subir as escadas. Não ouviria mais condescendentes "ah, não são brincos a sério, não está furado". Não. Agora queria mesmo furar. Usar brincos a sério. Era, repito, um passo arriscado, na província portuguesa de meados dos anos oitenta. Já sabia o que me esperava. Já tinha diariamente uma pequena amostra, na escola. Já não seria apenas o grandalhão esquisito de ar deprimido vestido de preto com cabelo cheio de gel (outra novidade na época). Passaria a ser o grandalhão esquisito dos brincos. Com todas as conotações que isso tinha na província portuguesa dos anos oitenta. Ganharia fama de maricas. Talvez até de drogado. Perderia quase todos os poucos amigos. Seria um pária na escola, admirado por uma minoria, gozado e excluído por quase todos. Os pais dos amigos sobreviventes proibi-los-iam de se dar comigo. Acabaria só. Pensava nisto todos os dias, enquanto subia as escadas de casa e tirava os brincos de arame. Imaginava-me sozinho. Vestido de negro. Com brincos a sério na orelha esquerda. Expulso de todo o lado. Isolado. Portanto, quando a mãe me perguntou que prenda queria eu, não hesitei. Quero furar a orelha.

17.7.06

O rapaz do sorriso

[Caravaggio - São João Baptista]

Ginga rua acima sorriso aberto. É quase um riso. Um sorriso a perder o sub. De que se ri. Ninguém sabe. Nem ele. Saberá, afinal ninguém se ri de nada. Não. Juro que não sabe. Não olha para ninguém, avança decidido. De vez em quando leva o cigarro aos lábios semperssorridentes. Abana a cabeça expele o fumo. Abana a cabeça chupa o cigarro. Sempre a sorrir. Sempre a rir. Nunca o vi de outra maneira. Todos os dias. Há anos. Pode lá ser. Juro. Todo ele ri. Os olhos. A boca. Os caracóis. É sorriso sentido. Mas não sabe do que ri. Não sabe por que sorri. Como sabes que não sabe. Porque ninguém sorri se não está feliz. E ninguém está feliz todos os dias. Lá vai ele gingando. O rapaz do sorriso. Que se ri não sabe de quê.

Ei-lo

[Bosch - Estudo de animais]

Ei-lo. Estava à minha espera. À espera de um deslize. De uma fraqueza. E no entanto era previsível... Podia ter-lhe fugido. Senti-lhe o cheiro gorduroso. Pensei que lhe escapava. Que já não me podia fazer mal. Mas ele sabia. Sikhr. Ei-lo. Demasiado poderoso para ser vencido. E eu imprudente. Ouvi-lhe os gemidos. Não podia ser. Já o tinha vencido. Não. Achava-me seguro. Caminhava na escuridão e senti-lhe o fedor. Suave fedor. Olhos frios cravados em mim. É ele. Sinto um arrepio horrendo. Já sei. Não preciso de olhar. Já sei. Ei-lo. Enorme. Salta-me de novo ao caminho. Não preciso de virar a cara. Já sei que está ali. Outra vez. Agora maior. Pronto para me devorar. Sikhr.

15.7.06

Et si uolueris attendere magna pars uitae elabitur male agentibus maxima nihil agentibus tota uita aliud agentibus

[Nicolaes Maes - Anciã]

Não me viu. Nariz vulturino apontado para um grosso livro de capa azul. Segurava-o afastado dos olhos. O livro, não o nariz. Inclinada reverentemente. Como se uma relíquia. Ou um livro sagrado. Mais severa do que o habitual. De vez em quando assentia com a cabeça. Lentamente. Com aquele velho ar aristocrático que tanto me fascinava. Os lábios apertados, exangues. Pronta a beijar as páginas amareladas. Anciã tão sábia. Sento-me no banco em frente. Não deu por mim. Nem eu me atrevo a despertá-la. Completamente absorvida. Uma travagem mais apertada, e desvia o olhar. Oh, está aí, não tinha dado por si. Ouça isto. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente (*). Espantoso nao é? Voltou a mergulhar o livro dos olhos e esqueceu-se de novo de mim. Não. De vez em quando virava os olhos na minha direcção e sorria cúmplice.



(*) Séneca, Epistulae morales ad Lucilium, 1. Tradução de J. A. Segurado e Campos (edição da Gulbenkian), de quem tive a honra e o prazer de ter sido aluno.

12.7.06

Perdu



Longtemps, je me suis couché trop tard. Je lisais comme un fou. En portugais, en français, en espagnol, en anglais. Comme un fou. Je ne dormais pas, je lisais. Le lit, c'était pour continuer à lire. Pas pour dormire. Je lisais trop. Longtemps. Maintenant je suis fatigué. Je me couche et je ne lis que deux ou trois pages. Après je m'endors. Comme un enfant. Trop fatigué. Pourtant il m'appelle. Proust. Il faudra qu'il m'attende. Longtemps.

Iterum amentia

[Goya - Prisioneiro acorrentado]

Já não sei o que faço. Já não sei o que digo. O que escrevo, não sei. Não, não estou louco. Isso não. Sinto uma lucidez nova. Nítida. Sei que não estou louco. Tudo me parece agora tão claro. Primeiro sintoma da loucura.

8.7.06

Iterum noctua

Não faz barulho. Sombra branca cortando a noite. Parece que me olha. Que crava os olhos nos meus. Deliro. Não. Parou. Vira lentamente a cabeça. Cruzamos os olhares. Não sei durante quanto tempo. Não sei. Sinto que me devora por dentro. Quero fugir mas não consigo. Em vez disso corro na sua direcção. Desvia o olhar e levanta voo. Sombra branca fugitiva. Corro atrás dela. Arfante. Não me vais escapar. Há quanto tempo estou a correr? Há quanto tempo te persigo? Gato e rato. Coruja e rato. De novo paras. Outra vez me miras. Gelada. Estou quase a apanhar-te. São os teus guinchos que tenho ouvido. Que me têm avivado as noites. Que lhes quebram o silêncio opressor. Sombra branca silenciosa. Cola-se-me a camisola ao corpo. Suo. Coração descompassado. Só quero chegar ao pé dela. Tocar-lhe. Sinto o peso das gotas de suor abrindo caminho na minha testa. Estou quase. Abrando a corrida. Está ali. No ramo mais baixo. Lança-me um último olhar vítreo. Uma brisa abana os ramos. Parece hesitar. Desvia o olhar. Não fujas. Parece que me ouviu o pensamento. Abre as asas e voa em silêncio. Fora do meu alcance. Eu fico ali. Parado. Encantado. Olhos presos nas estrelas.

6.7.06

Iterum antiquus amor

[Baciccio - São João Baptista]

a C.

Julgava que tudo era passado. Apenas uma memória. Doce memória. E eis que de novo me sai ao caminho. Inesperada. Matéria viva. Tangível. Não pensei que me saltasse tão descontrolado o coração. Que se me entaramelasse de novo a língua. Tanto tempo. Tanto. Será possível? Não é. Talvez seja melhor assim.

3.7.06

Não vi

[Parmigianino - Estudo]

Houve aquela madrugada em que te beijaram. E eu quase morri. Não me lembro de quem foi. Aliás, eu não vi. Talvez tivesse ido buscar uma bebida naquele momento. Foste tu que me contaste. Viste a lata do gajo, beijou-me! Não sei se soubeste o quanto me doeu. Naquela madrugada o regresso a casa não foi como era costume. Não havia em mim a habitual alegria pacífica de ter estado contigo. De te ter sentido o calor do corpo. O teu hálito. A paz felicíssima. Tudo isso me fora roubado por aquele beijo. Chorava por dentro. Por dentro. Por fora a esfinge de sempre. Falavas-me eu eu não te respondia. Não estava zangado, como pensaste. Estava vazio. Inerte. Não sabia o que fazer. Mal te ouvia. Um beijo, imagina tu!, um beijo!, nos lábios, assim de fugida, mas foi um beijo! Desesperado. Não sei o que sentia. Ciúmes? Não. Alimentava a fantasia de que me amavas como eu te amava. Imaginava que só eu te poderia ter, que não te darias a mais homem nenhum no mundo. E tu parecias dizer-mo todos os dias. Sem palavras. Na maneira como me olhavas. No teu sorriso. No carinho que me dispensavas. Nos ciúmes. Ou então não. Ou então era eu que via o que não era, à força de tanto desejar. De tanto te desejar. Tantas vezes sentados lado a lado muito juntinhos. E eu com vontade de te beijar. Mas não. Deixava-me ficar. Bastava-me a tua companhia. Foi assim que percebi que te amava. Quando estar contigo se tornou mais importante do que ter-te. Um beijo, vê lá tu. Eu via. E doía. Tanto, tanto. Rias-te com um brilho diferente nos olhos. Preferia que não mo tivesses contado. Alguém tivera a coragem de fazer aquilo que tanto me martirizava. E que eu tanto queria. E tu rias-te. Como seria, se tivesse sido eu a beijar-te? Rir-te-ias? A dúvida devorava-me. Olhava-te e não sabia o que te ler nos olhos. Beija-me, parvo, já viste que não me importo. Não, isto era eu a sonhar. Nos teus olhos apenas a habitual traquinice. Beijou-me, o tipo, vê lá tu! Mas eu não via nada. Não percebia a tua voz. Parecia-me gozona. Ou fascinada. Ou talvez... Não sei. Tinha medo. Caixa de Pandora entreaberta. Roía-me as entranhas. Até então mantivera-me numa confortável inacção. Amava-te em segredo e tu sabia-lo. Não ousava avançar, com medo de te perder. Sentia que nunca te teria. Era impossível. Sonhava que me amavas mas que nunca terias força para dar o passo decisivo. Nem eu a tinha. Estava, ainda assim, satisfeito. Não te teria nunca, mas não fazia mal. Bastava-me a tua presença. A tua companhia. Satisfazia-me aquele namoro espiritual não confessado. Porque achava que era o máximo que me poderias dar. Mas não. Agora tudo parecia mudar. Talvez estivesse enganado. Talvez tivesse constuído o meu sonho sobre fundações que se esboroavam. Alguém se me tinha antecipado. Alguém dera o passo decisivo. E esse alguém não era eu. E eu não tinha coragem nem forças. Podia ter avançado. Tentar ser feliz. Contigo. Podia ser o homem mais feliz do mundo. Mas tive medo. Acobardei-me. Não sabia se tu querias ser feliz dessa nova maneira. Não sabia se eu queria ser feliz dessa nova maneira. Talvez preferisse a felicidade cómoda em que me banhara até então. Ou não. Ensandecia. Invadia-me a tentação. Mas também o medo. Medo de tentar. Não conseguia perceber o que me dizia o teu olhar. Já viste que é possível, não desistas de mim. Isto era eu a sonhar. Na verdade nunca percebi o teu olhar. Naquela madrugada quase morri, e tu não deste por isso. Viste-me o gajo, a beijar-me? Não, não vi. Posso dormir em tua casa? Podes, claro.

1.7.06

Cem

[Rembrandt - Leão]

Foi há cem anos. Podíamos ter feito batota, como outros, e teríamos comemorado os cem anos em dois mil e dois. Mas não. Comemoramos na data certa. Dois mil e seis.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. É provável que não. Tenho uma ideia muito vaga de ter sido do Belenenses, e há poucos meses descobri uma fotografia de mil novecentos e setenta e quatro, em que, ao colo da mãe, seguro na mão uma bandeira do Benfica. Não tinha ainda três anos, não tinha vontade, não tinha livre arbítrio. Só isso pode justificar semelhante opróbio. O sorriso da mãe é efusivo. Não sei se foi antes se depois do jogo. Era um Sporting - Benfica. O Benfica parece que ganhou, mas o Sporting foi campeão, e é isso que interessa. O meu ar desconsolado reconforta-me. Sentir-me-ia incomodado com aquela bandeira na mão, certamente ali posta pela mãe. Eu devo ter chorado, devo ter feito birra. Espero que assim tenha sido. Não quero perguntar à mãe se assim foi. Já me bastou o choque de ter visto aquela fotografia.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Não devo ter sido. Gostava de ver futebol. Queria ir ver um jogo ao estádio. Pedi ao meu pai que me levasse. Ele disse que sim, que me levava, mas só se eu fosse do seu clube. Eu não sabia qual era o clube do meu pai. Não sabia quase nada do meu pai. Nem hoje, três décadas depois. Corri para a minha mãe, perguntei-lhe qual era o clube dele. Respondeu-me com desprezo, como se lhe apontasse um defeito. Eu corri para o meu pai. Sou do Sporting. Levas-me à bola, agora? Prometeste! Não levou. Nunca.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Possivelmente não. Mas um dia fui ao velho Estádio de Alvalade. Não com o meu pai, mas num passeio da escola. Mil novecentos e oitenta, provavelmente, ou mil novecentos e oitenta e um. O Sporting tinha sido campeão naquele ano. Lembro-me de quase nada. Escadarias que então me pareciam enormes. Não era dia de jogo. Passearam-nos pelo Estádio. Naquele dia treinavam as estrelas do atletismo. Olha o Carlos Lopes! Havia também jogadores da equipa de futebol, que nos autografavam "posters" e cadernos. Eu tinha um "poster" da equipa campeã, cheio de autógrafos. Perdi-o.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Talvez não. Mas houve aquele jogo, em mil novecentos e oitenta e dois, contra o Benfica. Ganhámos. O Bento foi expulso, depois de agredir um jogador nosso. Não tenho a certeza do resultado. Três a um, talvez. Exultávamos, a minha irmã e eu. A mãe abatida. Não lhe bastava o pesadelo que vivíamos, migrados em Olhão. Agora o seu Benfica perdia, e os dois filhos mais velhos pulavam de alegria. Fomos campeões. Depois veio o longo, longo interregno.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Mas tornei-me sportinguista desde muito cedo. Porquê? Não sei. Talvez para o meu pai me levar à bola. Não levou. Talvez por ter sido hipnotizado pelas listas verdes. Não sei. Mas tornei-me sportinguista. Ferrenho. Fanático. Quase verti lágrimas de alegria no dia catorze de Maio de dois mil, quando o Sporting voltou a ser campeão, tantos anos depois daquela noite em Olhão, tantos anos depois daqueles nossos pulos de alegria infantil. Nunca deixei de ser sportinguista, apesar dos sucessivos insucessos. Entusiasmei-me com aqueles inícios fulgurantes, nos campeonatos dos anos oitenta e noventa. Angustiei-me com os famigerados natais. Chorei com as derrotas. Aguentei a chacota dos colegas de escola benfiquistas, durante anos. Nunca esmoreceu o meu sportinguismo. Pelo contrário, crescia a cada ano. Quase chorei naquela dia catorze de Maio de dois mil. Pensei que morria de emoção. Pensei que morria e não via o meu Sporting campeão, que não via a recepção apoteótica aos jogadores. Mas não morri.

Não sei o que me fez sportinguista. Mas sei que o sou. Tremendamente. Intensamente. Loucamente.