28.10.06

uigilate quia nescitis diem neque horam

[Leonardo da Vinci - Homem com cabeleira de hera]

O que será dos meus livros. Se ainda os tiver. Tantos. Uns dois mil. Serão alguns largos milhares, a este ritmo. Se lá chegar. E se tiver um acidente. Pode acontecer. Devia fazer um testamento. Sei lá. Nunca se sabe. Um acidente. O coração. Já não tenho vinte anos. Quem ficará com eles. Com o meu corpo não me importo. Queimado. Soa melhor do que cremado. Mas os livros. Esses não os podem queimar. Cremar.

26.10.06

E depois como era

[Dürer - Estudo de mãos]

Se as pudesse cortar. Para estancar a minha loucura. Cortá-las. E depois como era. E depois não era. Ou era. Se as pudesse cortar não seria mais feliz. É que não. Talvez me tornasse mesmo profundamente infeliz. E no entanto há alturas em que me apetecia cortá-las. Para não enlouquecer.

24.10.06

Outro

[Dürer - Cinco nus]

Mas suportar esta humilhação diária. Sim, eu sei, achas que não tem qualquer importância. Para ti não terá. Mas para mim. Condiciona-me a vida. Penso nisto o dia todo. Se um dia te visses no meu lugar. Mas contigo está tudo bem. Não tens de que te embaraçar. Eu sei. Não devia ser um embaraço. Mas é. Inevitavelmente. Para sempre. Às vezes queria ter nascido outra vez noutro lugar com outro corpo com outra mente. Nascido outro. Mas como podes tu entender isto. Contigo está tudo bem. Vá, não pode ser assim tão mau, dir-me-ás. É.

21.10.06

Olim sudor Herculis

[Caravaggio - São João Baptista]

Aquela poça de suor. Ninguém sua daquela maneira. Onde estou. Onde me meti. Pagar os erros de ontem. E no entanto sabe bem. Sinto os músculos. Há qualquer coisa no meu pé direito que dói. Aquela vez, há tantos anos. Jogava à bola com os colegas. Devo ter caído. Ou torci a perna. Foi há quê. Vinte e cinco. Talvez mais. Ou um pouco menos. Nunca recuperei. Coxeio ligeiramente. Não demasiado evidente. Quase imperceptivelmente. O suficiente para destruir em pouco tempo qualquer sapato qualquer bota qualquer chinela do lado direito. E agora volta a doer-me. Pé direito. Suave dor. Corpo brilhante de suor. Aquela silhueta nos vidros espelhados. Sou eu. Não me reconheço. Camisola colada ao corpo. Quente. Húmida. Sabe bem. Não posso parar. E aquela poça de suor.

Venter meus deus erat

[Botero]

Houve aquele tempo em que deixei de me amar. Porque me deixaram de amar. Porque achei que me deixaram de amar. Houve aquele tempo em que me encerrei no meu quarto. Inchava com o passar dos dias. Voragem suicida. Afogava a minha loucura em nacos de pão com mel. Chafurdava em comida. Não queria lembrar-me desses dias, agora. Mas sou confrontado com esses dias de cada vez que arquivo em arquivo morto a roupa. A roupa desses dias. Imensa. Ofensivamente imensa. Já se foram esses dias. E eu tenho de me lembrar deles. Para não voltar a esse tempo em que deixei de me amar.

14.10.06

Somnium imago mortis

[Rui Oliveira - Auto-retrato]
à memória do Rui

Às vezes apareces-me nos sonhos. Estendo a mão e toco-te. Ouço-te. É como se nunca tivesses partido. Como aquela vez, lembras-te. Depois de tanto tempo tínhamos voltado a sair à noite. Estavas fraco, ainda. Recuperavas. Ou assim pensávamos. Toda a noite a fazer pipocas. Que tolice. Mas foi um retorno. A nossa amizade. Íamos voltar a estar juntos todos os dias. Ou quase. Parecia mentira. Receara nunca mais poder sair contigo. E agora ali estavas. Fraco, mas a recuperar. Ou assim pensávamos. Demos um abraço. Daqueles fortes. Muito. Se calhar chorei. Depois morreste. E agora só nos vemos nos sonhos.

5.10.06

Hic sunt iterum leones

[Barye - Leões]

Pensava que já tinham partido. Sentia-me seguro. Sereno. Já não tinha medo à noite. Já não adiava indefinidamente a hora de deitar. Já ria. Já não tinha medo. E depois deitava-me. E gelava outra vez. Aquele gemido cavo vindo não sabia de onde. De perto. Medonhamente perto.