29.12.07

Limo

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel esquerdo)]

Pousou o copo no parapeito e despejou os olhos no rio. Gostava de os ter ali. Bebendo o limo e a lama enquanto a noite morria devagarinho. Depois respirou fundo. A mão procurou o copo. Ali. Está ali. Baixo e largo. Um gole. Dois. Já chega.

Não devia beber tanto nesta noite tão. Mas quê. Olhar as estrelas e beijar a Lua como se fosse um romance cor-de-rosa. Não. Os meus olhos bebem o limo e a lama. Habituem-se ao gosto. Para quê olhar o céu. E o cheiro. Água morta. Buaaaaaaaaaaaach. Buaaaaaaaaaaaaach. Como se me chamasse. Ouve. Buaaaaaaaaaach. O mar é mais bruuuuuum bruuuuuum. Aqui as ondas são tão. E o cheiro. Eu entrava em casa com lama até ao pescoço. Uma rã na mão. E a água quente quente na banheira cheia. Sabia tão bem. Se aqueles dias. A pele a ficar vermelha e o vapor tão espesso. Aqui não há rãs. Tê-las-ia ouvido. Só morte. Às vezes penso em ti e choro. Depois os dedos engelhavam e a mãe gritava sai já do banho. Se agora me engelharem os dedos. E os olhos de te chorar. Tantos anos. E ainda. Eu acreditava que amanhã era sempre melhor. E agora quando acordo de manhã. E se me estende este dia sem fim. Porque eu gostava da noite eterna. Sabes. Dormir. Quando durmo não dói. E depois não acordar. Para não ter de enfrentar outra vez esta luz medonha. É limo. Cheira a limo. Não é morte. As forças começam a faltar. Não é por. Não. Isso já não me mata. É esta falta de. Este vazio. Mas não. Hoje não.

Recolheu os olhos e empurrou o copo para fora do parapeito. Ficou a ouvi-lo estilhaçar-se com um som negro contra a falésia. Depois o silêncio.

Talvez amanhã.

27.12.07

In memoriam

بینظیر بھٹو

Carceri d'Invenzione . III . Doppler

[Piranesi - Carceri d'Invenzione]

Na manhã em que foi libertado coçou a barriga e ouviu um estrondo lá dentro. Da barriga. Claro. Porque mais nada poderia estoirar daquela maneira. Assim. Ouviste? Deixou-se ficar um bocadinho a pensar. O que seria aquilo. Um estrondo dentro da sua barriga. Podia ter morrido. O perigo. E terem-lhe saltado as tripas cá para fora. Não. Que disparate. E coçou outra vez, só por via das dúvidas. E de novo um estrondo. Mas agora. Sim, sem dúvida. Agora estava mais grave. Como se a barriga se estivesse a ir embora. Mas se realmente estivesse. Não. Impossível. Ora deixa lá ver. Ora essa. Estava. Vermelha. A sua barriga estava vermelha. No lugar onde a coçara. Ora se estava vermelha. Então abriu a mão e colocou-a devagarinho. Assim. Sobre a pele da barriga peluda. E pensou: e se eu coçar outra vez. Afagou a barriga. Mas sem coçar. Só afagar. E vinha de dentro da barriga um rosnar rnh rnh assim rnh rnh como um tigre zangado. Zangado. Mesmo zangado. É que se não estivesse zangado não era bem assim. Era mais como. Então levado talvez por estes pensamentos coçou distraidamente a barriga. E fez-se ouvir outro estrondo. Assim. Agora mais grave. E se o som do estrondo era agora mais grave. Pronto. Não havia mais dúvidas. A sua barriga estava a fugir-lhe. Cada vez mais longe. Cada vez mais vermelha. E isso era óbvio para qualquer pessoa que soubesse um bocadinho de astrofísica.

25.12.07

Exitus

[Goya - Três homens cavando]

Quando o peso da noite se me lança pesado sobre o pescoço. E a luz das estrelas me rasga os olhos de tanto gritar. Quando o luar me dilacera as costas geladas e me beija os lábios de sangue. E o frio me incha a cama e me molha os lençóis. Quando os sonhos me arrancam as tripas. E relógio tic tic me esmurra as orelhas. Fumegantes. E as trevas me arrastam sozinho até. Quando os móveis estalantes murmuram a minha morte. E o sangue me ferve na cara. E os dedos se esmagam uns contra os outros. E o estômago ardente me rebenta o ventre. E o dia já não nasce.

وصية

لأمي خروقي
لأختي كتبي
لأخي كمبيوتري

24.12.07

Regista no Livro as palavras do Ateu

[Alcorão do século XVI, Lahore. Sura de Maria]

وَٱذْكُرْ فِى ٱلْكِتَبِ مَرْيَمَ إِذِ ٱنتَبَذَتْ مِنْ أَهْلِهَا مَكَانًۭا شَرْقِيًّۭا ١٦
فَٱتَّخَذَتْ مِن دُونِهِمْ حِجَابًۭا فَأَرْسَلْنَآ إِلَيْهَا رُوحَنَا فَتَمَثَّلَ لَهَا بَشَرًۭا سَوِيًّۭا ١٧
قَالَتْ إِنِّىٓ أَعُوذُ بِٱلرَّحْمَنِ مِنكَ إِن كُنتَ تَقِيًّۭا ١٨
قَالَ إِنَّمَآ أَنَا۠ رَسُولُ رَبِّكِ لِأَهَبَ لَكِ غُلَمًۭا زَكِيًّۭا ١٩
قَالَتْ أَنَّىٰ يَكُونُ لِى غُلَمٌۭ وَلَمْ يَمْسَسْنِى بَشَرٌۭ وَلَمْ أَكُ بَغِيًّۭا ٢٠
قَالَ كَذَلِكِ قَالَ رَبُّكِ هُوَ عَلَىَّ هَيِّنٌۭ ۖ وَلِنَجْعَلَهُۥٓ ءَايَةًۭ لِّلنَّاسِ وَرَحْمَةًۭ مِّنَّا ۚ وَكَانَ أَمْرًۭا مَّقْضِيًّۭا ٢١

سورة مريم ١٦-٢١


E regista Maria no Livro, quando ela se afastou da sua família para um lugar virado a Leste, e então colocou entre eles e ela um véu, e então enviámos-lhe o nosso espírito, e ele então apresentou-se-lhe com a aparência de um homem. Ela disse: “Na verdade refugio-me de ti junto do Misericordioso, se és piedoso”. Ele disse: “Eu sou apenas um mensageiro do teu Senhor, para te anunciar o nascimento de um menino sem mácula”. E então ela disse: “Na verdade, como posso eu ter um menino, se não fui tocada por homem nenhum, se não sou desonesta?”. Ele disse: “Assim disse o Senhor: 'Isso é fácil para mim, e tornamo-lo sinal para os Homens, e nossa misericórdia, e isto é ordem já cumprida' ”.
Alcorão, Sura de Maria (19), 16-21

O cadafalso

[Goya - Mulher batendo noutra com um sapato]

«Ele receava da mesma maneira um terramoto e um dia de sol em que pássaros desconhecidos parecem iniciar uma amizade eterna com casais de apaixonados que não conhecem. Nestes dias calmos, Lenz via uma saúde falsa, uma preparação da maldade - alguém, com cuidado, limpava o cadafalso na véspera de a vítima o pisar.»

Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Ténica

22.12.07

Os pés

P9120109
[Painel de azulejos do século XVIII - Convento da Graça (Torres Vedras)]
à memória do Rui

Passos curtos pensados. Se dás um passo mal dado. É a dor que te come por dentro. Outra vez. Sempre. E agora vai acabar. ما شاء اﷲ . Porque tu estás morto há muito tempo e esse não é o teu corpo.

Se eu te abraçasse agora com tanta força. Como naquela noite. Só que agora eu não te largava nunca mais.

Não te cabem nos sapatos. Dos tratamentos. Os vómitos. As dores. A fraqueza. E agora os pés. Inchados. Não te cabem nos. Sabes. O que a ti te rasga as entranhas. A mim arranca-me a alma.

17.12.07

الغيب

[Marcantonio Bassetti - São Sebastião]


‏أَمْ عِندَهُمُ ٱلْغَيْبُ فَهُمْ يَكْتُبُونَ
Alcorão.
Sura da Montanha.
Quarenta e um.

à memória do Rui

Devagarinho. Como se ainda.
_ estavas a dormir
_ estava
Tinhas a barba de quê. Dois. Três dias. Com esforço erguido. Sentado. A mão nas costas. Ou na barriga. E o terror nos teus olhos. Aquilo. Outra vez. E agora. Mas não. Não pode ser. Porque se afinal.
_ quando durmo não tenho dores sabes
_ sei
A dor que te arranca as entranhas. Aquilo.

E a cada dia eu subia as escadas e pensava é hoje que te digo. E depois secava-me a boca e o terror nos teus olhos. E deixava os meus caídos no chão.
_ quando durmo é como se morresse sabes


Um molho de ossos sobre a cama. E a pele. Devagarinho. Como uma concertina. Assim. Fininha. Para cima para baixo. E havia um silvo quase mudo.

A luz morta e eu mal te via. Depois morri-me escadas abaixo. E nunca mais te vi.

15.12.07

الباب

[Petrus Christus - Vir dolorum]

Se te pedir que me agarres a mão. E me abraces e me bebas as lágrimas. A mão que me espia as entranhas. Porque os dias não morrem e as noites.

6.12.07

Morte

[Chagall - Aleko e Zemphira ao luar]


المَوت

afogar-me no teu mar
الغَرَقُ في بَحْرِك


A galinha

[Cristofano Allori - Judite com a cabeça de Holofernes]

Se eu pudesse agarrar um machado e depois levantá-lo afiado à altura da minha cabeça. Assim. E deixá-lo cair sobre as mãos. O problema é que. Repara bem. Como posso cortar as mãos. As duas. E ao mesmo tempo segurar o machado. Olha. São Luís. A quem cortaram a cabeça. E ele não se ficou. Levantou-se e andou. Como as galinhas. Eu nunca vi. Mas parece que sim. Que correm depois de lhes cortarem o pescoço. E um santo não é uma galinha. Diz que pegou na cabeça com as mãos e a beijou. Se um santo consegue. Eu que não sou santo. Talvez consiga cortar as mãos as duas e ao mesmo tempo segurar o machado.