30.6.08

Kill the pain . XXIV . Tepidus

[Bassano - Madona com o Menino e João Baptista]

sed quia tepidus es et nec frigidus nec calidus incipiam te euomere ex ore meo

mas porque
és morno, e não és nem frio nem quente, começarei a vomitar-te da minha boca
Apoc. 3:16

Um morcego. Assim. Com umas asas tremendas. Escondidas. Claro. Como. Sei lá. Escondidas. Não interessa. Depois abria. Sítio alto. Uma casa uma árvore uma pedra uma montanha. As asas. E ficavam todos a olhar. Olha é ele. O puto gordo. Gordo não. Magro. Sem músculos. Quer dizer. Normal. E tinha uma cauda. Como um macaco. Morcego-macaco. Saltava de árvore em árvore e ninguém se chegava a mim. Eu não queria. Enroscar-me escondido nos ramos nas folhas no. Às vezes aparecia. De repente. Não era para salvar ninguém. Super-herói não não. Salvar-me a mim. Não. Abria as asas e voava. E ficavam todos a olhar sem saber quem eu era. E havia uma menina que se apaixonava por mim. Sempre. Menina. Imagine. Tenho-o tratado por tu. Desculpe. Eu. Eu que. Claro. Uma menina. Houve aquela. Meninas. A voz grossa. Eu lembro-me. E a. Sim. E eu era gordo e tinha a cara cheia de. Diziam que era a barba que as borbulhas que. Que não me preocupasse que. Barba na testa. Morrer. Já. Eu tão feio e olhar para o espelho e ver a testa cheia de barba. Morrer. Já. Depois o repuxo baixava e eu montado na baleia à porta da escola. Sorvendo guloso os olhos espantados. Mas não. Sem carne esta baleia. Sem água sem repuxo. Goela escancarada. Já está. Um ronco oleoso. Um arroto. Depois engasgou-se. Tossiu. Escarrou. Escarrou-me. Assim. Como quem vomita uma cartilagem de frango entalada na garganta. Por isso deixei de comer empadas de. Ninguém me viu. Deo gratias. Puxar enrolar-me no casaco. Nadar no ar pesado de gelo. Cada passo cada braçada.

Stella petrea



Leonard Cohen, I'm your man

26.6.08

Kill the pain . XXIII . Frigidus

[Caravaggio - Salomé com a cabeça de João Baptista]
the place where I stand gives way to liquid lino
underneath the weeping willow lies a weeping wino
(Tricky)

Um arroto metálico um suspiro e já está. A baleia de ferro abriu a goela e já está. Se ao menos como o da história. Um repuxo. E eu lá em cima. Para cima e para baixo. Em baixo os miúdos da escola e os colegas. Cuspindo-me olhares invejosos. Como se voasse. Quando era miúdo queria ser um. Espera. Às vezes não sei se acreditas em mim. Enquanto enlouqueço neste sossego pastoso. Sabes um dia eu vou. E depois ninguém me vem ver. Tu vens não vens. Não tens medo dos loucos. Eu tenho. E às vezes. Talvez não fosse pior. Acabava-se-me o medo. Olhar para o espelho e morrer. Ver-me morrer. Há quem queira ver um orgasmo. Abre os olhos. Lembras-te. A luz. Para te ver os olhos e a boca quando. Tu vens não vens. Não me vais deixar doido e sozinho. Ver-me a morte nos olhos. Em vez de medo. Tenho medo dos loucos. E de ti. De que me deixes aqui sozinho.

21.6.08

Kill the pain . XXII . Please

[Andrea del Sarto - Madonna della Scala]
I'll be beggin' please
(Tricky)

Vomitado. Assim. Como um prato mal comido. Mas antes. Lá vamos. Abrindo a boca em cada paragem. Tragando mulheres de mamas fartas que rebolam escada acima arrastando pachorras bovinas de vacas cansadas. E ainda não morreu a noite. Amanhã. Amanhã outra vez. Ruminando terrores de olhos nas mãos. Se os fechasse. Ficava só eu. E o ronco indisposto do autocarro. O silvo dos gases cuspidos e o guincho da porta a fechar-se. Mais uma. Enrolada num tédio indiferente. Os olhos virados para dentro para ontem. E depois as mochilas e os miúdos. Pendurados em remelas sonolentas. Esfregando bochechas inchadas contra as janelas. Escarrando âncoras na paragem. Para não se perderem. Quando o dia morrer. E o monstro voltar. Boca aberta. A custo. Entre arrotos metálicos. E os cuspir. Caroços babados. Isto não acaba. E a noite não morre.

16.6.08

Bloomsday . III

[Cézanne - Les baigneurs]

«Nice smell these soaps have. Time to get a bath round the corner. Hammam. Turkish. Massage. Dirt gets rolled up in your navel. Nicer if a nice girl did it. Also I think I. Yes I. Do it in the bath. Curious longing I. Water to water. Combine business with pleasure. Pity no time for massage. Feel fresh then all day.»

James Joyce, Ulysses

Bloomsday . II

[Hans Holbein o Jovem - Vénus e Amor]
«he was clever enough to spot that of course that was all thinking of him and his mad crazy letters my Precious one everything connected with your glorious Body everything underlined that comes from it is a thing of beauty and of joy for ever something he got out of some nonsensical book that he had me always at myself 4 and 5 times a day sometimes and I said I hadnt are you sure O yes I said I am quite sure in a way that shut him up I knew what was coming next only natural weakness it was he excited me»

James Joyce, Ulysses

Bloomsday . I

[Iluminura do Book of Kells]

«Rhythm begins, you see. I hear. A catalectic tetrameter of iambs marching. No, agallop: deline the mare.»
James Joyce, Ulysses

14.6.08

Kill the pain . XXI . Hic cetus

[Botticelli - Salomé com a cabeça de João Baptista]

أَفَأَنتَ تَهْدِى الْعُمْىَ وَلَوْ كَانُوا۟ لَا يُبْصِرُونَ

e não podes tu guiar os cegos mesmo não vendo eles?
Alcorão, 10:43


Já está. O Sol sonolento. Rasgando caminho por entre pálpebras trancadas. E o restolhar das mulheres remoendo remoques. Arrastando conversas dolentes suspiros resignados. Olhos largados no colo e as mãos bocejam o tédio de um dia que vai demorar a morrer.

Je remercie ton corps



gracias a tu cuerpo doy
por haberme esperado
tuve que perderme pa'
llegar hasta tu lado

gracias a tus brazos doy
por haberme alcanzado
tuve que alejarme pa'
llegar hasta tu lado

gracias a tus manos doy
por haberme aguantado
tuve que quemarme pa'
llegar hasta tu lado

12.6.08

Cérelac

[Bosch - O caminhante (pormenor)]

«Não é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata amargura habitual.»
António Lobo Antunes, Os cus de Judas

Kill the pain . XX . Cras fortasse

[Giovanni Bellini - Madona com o Menino, João Baptista e um Santo (pormenor)]

Cada uno es como Dios le hizo, y aún peor muchas veces.

Cervantes


Sete. Ou seis. Não sei. As trevas engolem-me o corpo lambido. A água quente. Puxo uma perna e agora a outra e agora. Dói-me tanto tirar o pé do chão. E pô-lo à frente do outro. Sicut ouis ad occisionem. Será que sabem. Que. As ovelhas. Eu sei. E vou. Sicut ouis. Arranca-me uma a uma as memórias mornas que ainda me abraçam a pele. O gelo. Já está. Paragem do autocarro. Vazia. Como ontem e amanhã. As pedras ondeiam-me debaixo dos pés. Estou louco. E o ar é um licor um líquido grosso que me rasga a boca e me esmaga a traqueia e me arranca os pulmões. E me enche os ouvidos e me rouba os sons. Se isto é viver. Fechar os olhos com muita força. Assim. Desistir. Para casa. Para quê. Enredar-me em medos. Vomitar paranóias. Basta. O autocarro. Entrar. Sozinho. Ondulando. Jonas. Sim. Rebola como uma baleia. Fechar os olhos dormir. Mas não. Não dá. Não quero. Morder rasgar mastigar cada momento. Ruminar terrores. Olhos abertos queimados do Sol nascente. Para quê. E amanhã outra vez. A tosse asmática e as tripas dormentes. O meu corpo pingado entornado no chão do quarto. O anel de fogo nos olhos.

9.6.08

Kill the pain . XIX . nondum explicit

[Andrea del Sarto - Madona e o Menino, com as Santas Catarina e Isabel e João Baptista]

And everything you got hoi-poloi like
Now you're lost and you're lethal
(cantado por Massive Attack)

'Já acabou senhor.'
'Já acabei o quê.'
'De sonhar.'

Sonho sono somnum. Habes somnum. Por isso as luzes nos olhos. Pirilampos picantes. E o anel de fogo. Nos meus olhos. Não agora. Agora não. Agora só os pirilampos pic pic pic. Por todo o lado. Dizem que é porque. Mas na altura. Se calhar porque me levantava tão cedo. Quê. Seis da manhã. Noite. E o frio frio. Depois fechava os olhos. Com força. Apagar o fogo. Que me esmagava as pálpebras. O anel de fogo. O que era aquilo. Uma doença. Não sei. Não sei nada. Depois abria. Os olhos. Entornava-me cama abaixo. Escorria pelo chão. Quarto tabágico sabes. O fedor das beatas destilando putrefacções. Sim e os pulmões amachucados doíam devagarinho. Uma morrinha negra de القطران pinga pinga. Negro viscoso. Que nojo. O que é. Alcatrão. Se me abrissem ai o cheiro. Abro a janela de noite e não serve de nada. Este fedor. Que me mastiga os pulmões. Já não tenho forças. Custa tanto. Respirar.

Se eu fechar os olhos. Embalado pelo ronronar do esquentador. Enquanto a banheira enche. E o estômago resmunga. Na cozinha há pão. Se eu. Não. Agora fechar os olhos. Sonhar que o dia acabou. E que isto é a minha cama. Não a borda dura da banheira. E que já cozi as minhas carnes na água quente. Cozi. Cozer parece um bacalhau. Quero dizer. O z. Era assim que eu pensava. O z manuscrito parece um bacalhau cortado ao meio. E o bacalhau coze-se. Não se cose. Porque o s parece uma agulha com a linha pendurada. O manuscrito. E o botão cose-se. Não se coze. E que a água já me arrancou as remelas teimosas. Para quê toda esta teoria de. Tirar os cheiros. Que ofendem o senhor militar. Já contei isto. Não me lembro. Abrir os braços e a cara de incómodo. Que foi. Cheiro mal. Eu sei. Não me deixaram tomar duche. Que queria o senhor. Acordaram-me com caralhos foda-se toca a despachar. Nem a cara me deixaram. E depois ontem sabe ontem estava tanto calor e à noite houve copos. Assim tome lá este fedor de suor e álcool requentado. Absinto. Podia ser pior. Imagine que entrei neste quartel nos braços de dois militares. Não não não se assuste. Eu não gosto de fardas. Mas não me aguentava em pé. Por isso tome lá este fedor de suor e álcool temperado com uma valente dor de cabeça. Mas eu não cheiro mal. Este gelo. Com a cara sobre a água quente. O vapor lambendo-me a pele. Entrar. De joelhos. O calor sonolento que me envolve as pernas. Como se fosse rezar. Até de manhã. Ficava aqui até amanhã.

Cold sweatin' as I dwell in my cell



Martina:
I got a letter from the government
The other day
Opened it and read it
It said they were suckers
They wanted me for their army or whatever
Picture me givin' a damn, I said never
Here is a land that never gave a damn
About a brother like myself
Because I never did
I wasn't wit' it, but just that very minute...
It occurred to me
The suckers had authority
Cold sweatin' as I dwell in my cell
How long has it been?
They got me sittin' in the state pen
I gotta get out, but that thought was thought before
I contemplated a plan on the cell floor
I'm not a fugitive on the run
But a brother like me begun, to be another one
Public enemy servin' time, they drew the line y'all
They criticize me for some crime

I got a letter, I got a letter, I got a letter
Picture me given' a damn, I said never
Mmm...mmm...mmm
It occurred to me
The suckers had authority
Cold sweatin' as I dwell in my cell
How long has it been?
They got me sittin' in the state pen
I gotta get out, but that thought was thought before

I got a letter from the government
The other day
Opened it and read it
It said they were suckers
They wanted me for their army or whatever
Picture me givin' a damn, I said never
Here is a land that never gave a damn
About a brother like me and myself
Because I never did
I wasn't wit' it, but just that very minute...
It occurred to me
The suckers had authority
Cold sweatin' as I dwell in my cell
How long has it been?
They got me sittin' in the state pen
I gotta get out, but that thought was thought before
I contemplated a plan on the cell floor
I'm not a fugitive on the run
I'm not a fugitive on the run

Tricky:
Many switch in, switch on, switch off X5

Martina:
Nevertheless they could not understand
That I'm a black man, and I could never be a veteran.
On the strength of situations, I'm real.
I got a raw deal, so I'm lookin' for the steel
Looking for the steel.

I got a letter from the government
The other day
Opened and read it
It said they were suckers
They wanted me for their army or whatever
Picture me givin' a damn, I said never
Here is a land that never gave a damn
About a brother like me and myself
Because they never did
I wasn't wit' it, but just that very minute...
It occurred to me
The suckers had authority
Cold sweatin' as I dwell in my cell
How long has it been?
They got me sittin' in the state pen
I gotta get out, but that thought was thought before
I contemplated a plan on the cell floor
I'm not a fugitive on the run
I'm not, I'm not
I'm not a fugitive on the run
But a brother like me begun, to be another one
Public enemy servin' time, they drew the line y'all
To criticize me for some crime

I got a letter from the government
The other day
Opened it and read it
It said they were suckers
They wanted me for their army or whatever
Picture me givin' a damn, I said never
Here is a land that never gave a damn
About a brother like me and myself
Because I never did
I wasn't wit' it, but just that very minute...

Mmm...mmm...mmm...mmm
I got a letter from the government
The other day
Opened it and read it
It said they were suckers
They wanted me for their army or whatever
Picture me givin' a damn, I said never
Here is a land that never gave a damn

7.6.08

A noite

[Rogier van der Weyden - Políptico do Dia do Juízo (pormenor)]

Ainda se me zanga o sangue nos ouvidos. E os móveis protestam de tédio em soluços aflitos. Esta noite nunca mais acaba.

A zanga

[Pieter Bruegel o Velho - Dulle Griet]

Um dia pensei que se me rebentava a cabeça. Não de dor. Naqueles tempos ainda não me doía a cabeça. Era só o zumbido. O rezingar do sangue mastigando o silêncio da noite. Vazando zanga de um ouvido para o outro. Dois ouvidos sussurrantes. Zangados. Um com o outro. Os dois comigo. A seguir sim a seguir doeu-me a cabeça. Quando me deitava e parecia que os miolos se lançavam sobre os lençóis. Como se o osso se abrisse. E me abandonassem. Entregue aos meus terrores. Sozinho. Sempre sozinho. Mas então não. Era só o zumbido. Sempre sempre mais alto. A subir-me pelas entranhas acima. Até não conseguir ouvir mais nada. Só a zanga do sangue a ferver-me a cabeça. Um dia rebenta. Pensava eu. E depois haverá miolos a pastar no branco enojado do meu lençol.

6.6.08

An itch of death

[Dürer - Pássaro morto]


«Coffined thoughts around me, in mummycases, embalmed in spice of words. Thoth, god of libraries, a birdgod, moonycrowned. And I heard the voice of that Egyptian highpriest. In painted chambers loaded with tilebooks. They are still. Once quick in the brains of men. Still: but an itch of death is in them, to tell me in my ear a maudlin tale, urge me to wreak their will.»
James Joyce, Ulysses

4.6.08

Seruum tuum

[Caravaggio - O martírio de São Mateus (pormenor)]

I guess this is it. We're gonna die today.
Yeah, I've never even kissed anybody. Have you?

Elephant
, de Gus Van Sant


Com os olhos remexia os lençóis. Vincos doridos vazios de uma cama acabada de acordar. E eu sabia que estavas ali. Ele está ali quer que o acorde. Não quero não quero. Onde é que. Porque um dia me disseste enquanto durmo não sinto a dor. A dor que agora te rasga em silêncio as tripas. Indiferente ao teu sono invisível. Já não vejo nem ouço. Ai o calor violento do teu quarto. E a cama a cama onde me sentava e me agarrava e doía sabes e doía para não te agarrar para não te abraçar com toda a força do meu terror e te dizer adoro-te adoro-te não me deixes. Adoro-te. Onde estás. Há uma mão que agarra o lençol como se. Estás ali. Como se lhe acusasse um a um os dias os anos os meses de medo da morte. Mais nada. E umas pernas. Agora sim agora consigo ver-te. Não eram vincos em lençóis enrodilhados. És tu. Uma ruga retorcida de dor. Recolhi os olhos. Não não não o acorde. Eu só queria ver-te.

A noite

[Goya - Fogo nocturno]
«Cada vez mais fui prolongando as madrugadas e encurtando os dias, na esperança de que uma noite perpétua me lançasse um púdico véu de sombra nas bochechas esverdeadas: esta cidade absurda, onde os azulejos multiplicam e devolvem a mínima parcela de claridade num jogo de espelhos sem fim, e onde os objectos vogam suspensos na luz como nos quadros de Matisse, obrigava-me a tropeçar de quarto em quarto à maneira de uma borboleta entontecida, passando uma palma mole pela lixa repelente da barba.»
António Lobo Antunes, Os cus de Judas

1.6.08

Nunc dimittis

[Caravaggio - O chamamento de São Mateus]

nunc dimittis seruum tuum domine secundum uerbum tuum in pace
Lc 2:29

Via-te em sonhos agora vejo-te em ruas pisadas de um tédio desesperado. Não é figura de. Não. Vejo-te mesmo. Os olhos brilhantes a barba dura de dois dias o andar gingão. E eu sei que és tu porque tu páras e deitas-me um sorriso perdido. Como quando me sentava ao teu lado na cama e te olhava e te via nos olhos o medo a comer-te as entranhas. Depois desistias. O corpo caído na cama fechavas os olhos para eu não te ver. Às vezes escorriam-te da boca sussurros roucos que eu não entendia. Depois viras a cara e então já não és tu. É outro. Tão diferente. Por isso eu sei que és tu. Não é uma miragem. És tu. E sabes. Nesses momentos em que me deitas o teu sorriso perdido. E te vejo de novo nos olhos a dor que te. A sério. Já não estou cá.