31.8.08

O monstro . 7 . Pitão

[Delacroix - Apolo matando a Pitão]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.
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«Esta me obrigou a acharme em varias montarias, que se fizeraõ no termo desta Cidade, para evitar o damno, que todos os dias padeciaõ os Camponezes; mas naõ tiveraõ o effeito, que se esperava estas diligencias, porque apenas o poderaõ affugentar para a parte de Jerusalem, onde emboscado nos matos circunvisinhos, sahia a fazer os mesmos insultos nas estradas, e nos campos. Só a figura deste animal impunha medo aos que a viaõ: a violencia com que acometia, desanimava o valor dos que o buscavaõ; e como todos na sua visinhança tinhaõ o perigo por certo, todos procuravaõ vello, mas de longe; e assim se naõ podia reconhecer a sua especie.

Entendia-se ao principio, que era algum Leaõ, que tinha sahido das terras da Hircania, obrigado pela indigencia do sustento: a outros lhes parecia ser Urso; porem a grandeza do seu corpo desmentia estas opinioens; porque era mayor, que nenhuma destas feras. Depois de morto nos confins de Jerusalem, se me mandou o seu retrato, de que vos envio a copia. Por ella vereis, que naõ tem semelhança com algum dos animaes, que nos descreve Plinio, e retrataõ Gesnero, e Aldrovando. Naõ faltou quem quizesse persuardirme, que era Grifo; animaes, que ainda que façaõ grande figura nos brazoens, tenho por taõ fabulosos, como a Ave Fenix. Tambem houve quem dissesse, que era Serpente, ao que eu me inclinava mais, porque como estas naõ multiplicaõ a sua especie, cada uma póde ter differente fórma; mas he necessario capacitarme primeiro, que ha Serpentes. Bem me lembro de haver lido, que produzio a terra huma, depois do diluvio de Deucalion, a que se deu o nome de Pithon, cuja prodigiosa grandeza, e deploraveis estragos referem os Poetas antigos, decantando o triunfo de Apollo, e a origem dos jogos Pithios; mas tambem sey, que os Naturalistas, comprovando a sua thesi com a significaçaõ da palavra Pithon, que na lingua Grega significa podridaõ, dizem, que a origem desta fabula foraõ os grossos vapores, e densas exalaçoens, que sahiraõ da terra depois daquele diluvio, e faziaõ morrer infinito numero de Povo; com que ja la vay esta Serpente, e este exemplo.»

[continua]

30.8.08

O monstro . 6 . Autor de tanto estrago

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota
H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.
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«Traducção de huma carta escrita da Cidade de Alepo em 10. de janeiro de 1726.

Ha muito tempo, que desejava merecervos o gosto de me dar novas vossas, por meyo da diligencia de volas pedir; mas os embaraços, em que me tem posto os meus negocios, obrigandome a fazer hum giro por varias escalas da Asia, me impossibilitaraõ o procurar satisfaçaõ deste desejo. Naõ duvido, que esta carta depois de hum silencio taõ profundo, em que havemos estado, e de hum intervallo taõ grande, que tem tido a nossa correspondencia, vos parecerá, que vay do outro mundo; principalmente se por essas partes tem soado os estragos, que por estas tem feito taõ repetidas vezes o contagio; levando hum infinito numero de gente; mas para que vejaes, que ainda estou vivo, e que naõ quero estar morto na vossa memoria, me quero aproveitar da via do Capitaõ Justiniano, que aqui chegou de Alexandreta, onde se acha o seu navio de partida para esse porto; e dizervos, que depois de vos haver escrito de Astrakan os prodigiosos progressos de Mohaidin, me foy preciso atravessar a Georgia, ir a Asia Menor, e passar à Syria, e ao Egypto, donde voltey de Alexandria a esta Cidade, que he a mais populosa, e mais mercantil de toda a Syria; onde me parece, que farey huma residencia dilatada, por haver feito sociedade com huns negociantes Armenios, de cabedaes grossissimos, e vastissimas correspondencias; e assim espero nella largas noticias vossas, e de todos os amigos.

Naõ faltaõ desta banda algumas, que poderaõ ser do vosso agrado; mas darvos-hey huma ao meu parecer muy rara; que he o haverse visto nesta Provincia hum animal monstruoso, que dos montes da Cilicia passou aos deste Paiz, e assim nas estradas, como nas Povoaçoens devorava todo o animal vivente, que encontrava, enchendo de consternaçaõ a todos estes moradores. O que se referia da ferocidade deste Bicho, a quantidade de gado, que despedaçava, o numero de pessoas, a que tirava a vida; ao mesmo tempo, que influia espanto, e causava terror, punha em mais alto grao a curiosidade de reconhecer o author de tanto estrago.»

[continua]

28.8.08

[Piotr Sokolov - Tchítchikov e Koróbotchka]

«- A sério, paizinho, nunca na vida me calhou ainda vender mortos. Vivos, isso sim, já tenho cedido alguns; ainda há dois anos vendi ao arcipreste duas raparigas, por cem rublos cada uma, e ele agradeceu-me muito, são boas trabalhadeiras, tecem-lhe as toalhas.
- Olhe, não se trata de vivos, os vivos que vivam com Deus. Estou a pedir-lhe mortos.
- A sério, como é a primeira vez, tenho medo de ser prejudicada. Tu, paizinho, às tantas estás a enganar-me, e o preço deles... de qualquer maneira... é superior.
- Oiça, mãezinha... irra, como a senhora é! O que podem eles valer? São simplesmente pó. Pegue numa coisa qualquer, um simples farrapo, e o farrapo tem o seu preço: ainda pode ao menos ser comprado por uma fábrica de papel, mas aquilo é perfeitamente inútil. Diga-me lá a senhora, que utilidade pode ter aquilo?
- É verdade, é mesmo isso. Não têm utilidade nenhuma, a minha dúvida, precisamente, é estarem mortos.»
Nikolai Gógol, Almas Mortas
Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio e Alvim, 2002

27.8.08

Kill the pain . XXX . Sombra

[W. Blake - A descida da cruz]

Depois houve aquela vez. Aquelas vezes. Aquelas noites na avenida dos. E a cama era tão grande e fazia uma cova no meio onde nos entornávamos em poças de suor e saliva fermentada. Em silêncio xiu que se ela nos ouve. Ela era a velhota. A velhota que lhe alugava o quarto. Nunca a vi. Eu não via nada. Entrava de coração esmagado e lábios latejantes. Sentava-me na beira da cama e bebia-lhe o perfil. Sombra raiada pintada da luz que empurrava a persiana para dentro do quarto da cama. E ali eu já não sabia se eras homem se mulher. Os cabelos crescidos dançando danças de ventre de pêlos nas tuas costas pequeninas. Todo tu pequenino. Depois rastejavas para dentro dos lençóis. Arfando a cerveja azeda da noite. Não. Espere. Eu sei. Já contei. Repetir. A minha vida. A minha vida é um repetir de coisinhas pequeninas. Mas espere.

12.8.08

Kill the pain . XXIX . Mão

[Barent Fabritius - Circuncisão]

I remember you well in the Chelsea Hotel,
you were talking so brave and so sweet,
giving me head on the unmade bed,
while the limousines wait in the street.
(Leonard Cohen)
Moía-me uma dor pequenina e eu cruzava as pernas sem conforto. Mas com força. Para a esganar. Assim. Como se faz aos tordos. Depois mordia. Mordia-me. Primeiro devagarinho. Como quando as bolhas no fundo da cafeteira. Crescendo. E já não era aquele desconforto. Era assim como disse. Dentadinhas. De periquito. Assustam mais do que doem. E às vezes já não mordia. E eu descruzava as pernas e depois zás. Trinca. Afinal. Com mais força. Como. Ah. Lembras-te. Fugiam e depois eram horas. Aprenderam a abrir a porta da gaiola. Com os focinhos. Força força força já está. A mãe não gostava e dizia malditos ratos. Não eram ratos. Sem cauda. Lembras-te. Não eram ratos. Duas faquinhas com bigodes por cima. E doía. Sabe. Um dia sangrou. E nunca mais lhes peguei. E agora era assim. Só que não sangrava. Ainda. Apertar as pernas com força. O sangue zum zum nos ouvidos. Quando a noite me esmaga de silêncio. Só que agora. Autocarro. Não é noite. E há esta gente que me cospe os olhos no colo aflito. Sabem não sabem. Não podem saber. Impossível. Não se vê. Debaixo da roupa. Não se vê. A minha vida tem sido feita disto. De pequenas coisas pequeninas. E o calor senhor. O calor na cara e na testa. E esta dentada que já não é dentada. Porque agora era uma garra que me agarrasse e arrancasse a pele. Sem parar. Sem relaxar. Sempre a crescer. Torcendo-me no banco. A senhora do lado roncando suspiros obesos. Tocar. Ferrão. Verificar. Ajuda. Por favor. Pôr lá a mão. Sempre a mão. Morta. Maldita. Maldita mão.