25.4.09

Ácido

[Balthasar van der Ast - Lagarto e concha]

E eu fiquei. E enquanto me entornavas beijos enfadados eu pensava que se não fosses tu mais ninguém me levaria escada acima para me calado não faças barulho. E eu não fazia e engolia devagarinho os passos nos degraus e sustinha a asma e chegava à tua porta roxo e com picos de luz nos olhos. E depois o despir das roupas fumadas e a cama xiu cuidado não faças barulho que se range e a velha nos ouve. E eu não fazia. Depositava devagarinho o corpo nos lençóis suados e os teus olhos pingavam nos meus mas era só porque eu estava em cima de ti e tu em cima de mim. E em vez de me encherem a barriga de bichos aos pulos

há quem diga que são borboletas e eu acho que não pode ser
miriápodes
centopeias
gorgulhos
escaravelhos
até besouros
porque eu gostava de miriápodes
e de centopeias e de outros bichos com muitas patas e cascas rijas
porque as borboletas eram coisas
mariquinhas
de menina que se me entrassem na barriga então eu era um
mariquinhas
portanto eram bichos peludos patudos de casca grossa

eram sumo ácido de limão. Sabes. Um ácido feio a cheirar a cerveja rasca e que me comia os olhos e me arrancava aos repelões os últimos nacos de sossego. Porque esta noite era sempre a última e havia sempre outra e outra e outra e outra. E isto nunca mais acabava.

23.4.09

Alone

[Marcantonio Bassetti - São Sebastião]

nothing is more exactly terrible than
to be alone in the house,with somebody and
with something)
...
e. e. cummings

Sabes. Não é do corpo nem é das. Não é. Eu ia escrever que era das tuas mãos. Vinha para casa a pensar eu vou escrever que é das tuas mãos que. Mas não é. É do teu cheiro a cerveja rasca. Aquela noite na cozinha do. Da. De quem era. Não interessa. Não interessa. Era tarde e eu não tinha onde ficar. Tu bebias o quê. Uma cerveja um copo de água. Uma cerveja. De certeza. Não interessa. E eu tinha passado a noite à procura dos teus olhos e eles pingavam sempre ao meu lado. E depois não me olhaste e disseste hoje ficas comigo. Assim mesmo. Sem ponto de interrogação. O teu cheiro a cerveja rasca.

20.4.09

A prisão do ético

O Clube das Clássicas regressou, trazendo agora autores jovens ao nosso convívio. O primeiro é Paulo Rodrigues Ferreira, que lança o seu primeiro livro, com a chancela Livrododia Editores. É já no dia 22, no átrio da Biblioteca da FLUL. Confirmada está também a visita, ainda durante este semestre, de José Mário Silva e Luís Filipe Cristóvão.

19.4.09

the carpeted stairs of terror

[Caravaggio - João Baptista]
...
(carefully climbing carpeted flight after

carpeted fight. .. in stillness,climbing
the carpeted stairs of terror)
...
e. e. cummings

Foi quê. Há vinte anos. Ou menos. Não sei. Foi há tanto tempo. Lembras-te. Os teus olhos pingavam ao meu lado. Ao lado. Não me tocavam. Em mim nunca pingavam. Nunca. Nunca entendi. Se me podias ter dito não. Porque é que não me disseste não. Porque é que em vez disso me chupaste as noites e os dias e o. Lembras-te. E depois que querias que acontecesse. As coisas que tu me fazias. Queres uma toalha. Não. Quero que desapareças que me deixes os pensamentos que vás para o. Quando podias ter continuado a fingir que eu não estava ali. Quando podias não ter entrado no táxi bêbedo ao meu lado quando podias não ter dito dá-me um beijo bêbedo se fores capaz. Bêbedo. Quando podias não me ter levado para aquele canto escuro e quando podias não te ter sentado ao meu colo. Daquela maneira. E depois. Tu sabes. Não me faças dizer aqui em frente as estas pessoas aquilo que me fizeste na primeira noite. Arrojando-te ao meu colo no castelo de São. Já era madrugada e cheiravas a cerveja rasca. E eu tinha quê não sei. Vinte. Ou menos. Não sei. Foi há tanto tempo. Podias ter continuado a olhar-me de longe e a rosnar-me olás indiferentes. Em vez de. E eu não te teria provado a pele e os cabelos e os teus cabelos compridos e eu dizia-te que não os cortasses e a minha pele rasgada na lixa da tua cara rude. Mas provei. Naquela noite e na outra e na outra e em todas as outras noites medonhas. E os meus dedos esmagados no látego dos teus cabelos e a pele a minha pele queimada. E eu chegava a casa e olhava-me ao espelho e passava a mão nas bochechas no queixo arranhado e vinha-me o teu cheiro o teu cheiro a leite azedo. E depois era um murro na barriga. Uma garra que me esventrava. Porque cada vez era sempre a última e eu sabia que não te voltaria a ter os cabelos e as mãos grossas na boca. Nem o perfil ondulante contra a luz feia do candeeiro da rua. A tua sombra pequena em arco e as mãos a entornar os boxers difíceis primeiro de uma perna depois da outra já está até se afogarem bêbedos no chão negro do quarto. E depois cuspias o corpo enfadado ao lado do meu e rebolávamos para dentro do buraco a meio da cama. Sem nos mexermos. E às vezes chegavas lá já a dormir e se tivesse havido um tempo bom. Se aquilo fosse só o morrer da paixão mas não era. Foi sempre assim. Foi assim na primeira noite quando me disseste adeus e não te vi durante. Durante muito tempo. E depois voltaste. Uma vez e outra outra outra outra. Porque nunca era a última. Havia sempre mais uma.

14.4.09

Cova

[Giovanni Bellini - Falsidade (ou Sabedoria)]

Não te lembras. Da carta e das saudades cuspidas. Porquê. Imagine-se. Saudades. Se não as tinhas. Tu não as tinhas. Porque se as tivesses. Faz um esforço. Lembras-te. Não. Se as tivesses. Mas escreveste. Te echo de menos. Joder. Se eu acreditei. Não. Me echabas de menos. Yo a ti sí. Joder. Te echaba tanto de menos. Mas tu a mim. Não. x x x x x. Agora ouves-me. Como eu te ouvi. A carta a escorrer da ranhura na porta e os dedos encharcados de medo abrindo caminho devagar devagarinho porque eu não queria rasgar o envelope para não te perder nem um bocadinho percebes para te poder guardar inteiro o papel e a tinta e o cheiro já que não te podia guardar a ti porque tu me tinhas fugido tu tu tu que nunca foste meu tu que nunca tu que sempre me viste como o mal menor sabes não sabes enquanto não te aparecia nada melhor e eu queria abrir o envelope devagarinho para não te rasgar. E agora. As tuas letras a pingar o suor das nossas noites. Te echo de menos. O suor da tua cama torta. Disso lembras-te. Claro. Da cova que fazia no meio e para onde caíamos e estava tanto calor. E onde tu uma noite me perguntaste queres uma toalha. Se eu queria uma toalha. Imagina. Se eu queria uma toa. Uma toalha. Se eu queria. Sair dali cagar para a velha que me ouvisse que te ouvisse cagar para a velha. Cagar para a velha e para ti. Sabes. Não sabes. Tu nunca soubeste. O medo a vergonha o desespero. Uma toalha. Se eu queria uma toalha. Não quero. Não quero nada. Adoro-te. Eu adorava-te.

12.4.09

raise the shade

[Sofonisba Anguissola - Bernardo Campi pintando S. Anguissola]

raise the shade
will youse dearie?

rain

wouldn’t that

get yer goat but

we don’t care do

we dearie we should

worry about the rain

huh

dearie?

yknow

i’m


sorry for awl the

poor girls that

gets up god

knows when every

day of their

lives

aint you,
...................................oo-oo...................dearie

not so
hard dear

you’re killing me


e. e. cummings

Espera

Se tu pudesses. Não não. Ouve. Não te vás já embora. Se tu pudesses. Espera.

10.4.09

Harto de tanta porfía

[Teniers - Dulle Griet]

περίλυπός ἐστιν ἡ ψυχή μου ἕως θανάτου
Mc. 14:34

É quando despejo os lençóis em cima da cara. E mordo os dedos e as unhas me morrem entre os dentes. E o zunzum nos ouvidos. Que é o sangue a gritar no silêncio do meu terror. Da noite que nunca mais. E amanhã vou acordar إن شاء الله encharcado em poluções estranguladas de raiva. Outra vez.

9.4.09

لعينيك العزيزين

[Gian Lorenzo Bernini - Auto-retrato em jovem]

Enxugar-te as algas dos olhos e bebê-los como se faz à água salgada pelo Sol. Não agora. Quando era miúdo. Punha-lhe as mãos devagarinho e deixava-as secar ao Sol e depois bebia-lhes o sal e a areia. E doíam-me os pés moídos das lapas que pingam das rochas pretas e dos mexilhões. Lembras-te. Da tarde a morrer e a tua mão e a minha mão. Não te lembras. Já ninguém se lembra. E por isso já me tem passado pela cabeça.

4.4.09

Prólogo

[Fra Bartolomeo - Casamento de Santa Catarina de Siena]

E se não é nada. Se o que as mãos aflitas. Se as pudesse cortar. Se me pudesses cortar. Em postas grossas. Poucas. Para dar menos trabalho. Menos porcaria. Menos tripas menos sangue. E depois embrulhavas-me em sacos pretos. Não. Azuis. Sacos azuis. Porque pretos. Preto sempre fui eu. Os olhos e os terrores diurnos. Pretos. Que de noite não dói. Ou dói e eu não sei porque quando durmo não dói. E cada noite é um prólogo de terror. Preta. E há quem diga que nunca mais acaba. A noite. E eu digo que ela nunca mais chega. Porque o dia é tão. Tu sabes. Nunca mais acaba. Procissão de terrores. E depois tu chegas. Vens salvar-me. Tu vens sempre salvar-me. Mesmo agora. Depois de. Tu sabes. E eu estou sentado a olhar para ti e para as lesmas das palavras que te escorrem dos olhos e as mãos não me param. Não param nunca. À procura. Aflitas. E se não é nada. Vês. Estou doudo.