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18.4.13

nothing´s right If you ain´t here


nothing´s right
if you ain´t here,
I´ll give all that I have,
just to keep you near
(Massive Attack)

Queria dizer-te ainda que às vezes parece que se me vão desatar as palavras e te vou por fim dizer o terramoto que me devasta as entranhas e que me vai torturando devagar devagar porque me é cada vez mais difícil estar ao teu lado sem te dizer que quando abro os olhos de manhã já os meus pensamentos viajaram para ti e que quando os fecho de noite é a ti que vejo até que a escuridão me embale num sono povoado de sonhos teus. Mas depois as palavras enrolam-se de novo umas nas outras e apertam-me a garganta até me sufocarem de novo neste medo que não me abandona nunca.

31.3.13

Like cortisone

[Bartolomé González y Serrano - São João Baptista]

can you lick my wounds please
can you make it numb
and kill the pain like cortisone
and grant me intimacy
(
 Massive Attack)

Ouça. Talvez o senhor se tenha enganado. Talvez eu não seja quem o senhor pensa. E este sítio. Sabe onde está? Tem a certeza de que? Porque eu tenho estado a ouvi-lo com tanta amizade. Amizade sim. Não me olhe dessa maneira.

8.11.08

Kill the pain . XLII . Explicit



Cortizona. Se lhe pudesse matar a dor com. Mas não. Tenha calma. Não há tubarões. Aqui. Aqui não. Mas no mar. No mar há. No mar há tantos. São bichos espantosos. Sabe. Não podem parar. Se param morrem. O ar não lhes passa pelas. E morrem. Tenha calma. Isso. Isso. Vamos. Quer um copo de água. Então. Juro-lhe que não há tubarões. Já imaginou. Um tubarão num copo. Não pode ser. Vamos. Para a semana. Quero vê-lo para a semana. Sem tubarões. Nem tijolos. Que ideia. Tijolos e tubarões. Quer ajuda. Mais um bocadinho. Deixe-se estar. Se lhe pudesse matar a dor. Se lhe. Venha cá. Não. A sério. Venha cá.

explicit
deo gratias
والحمد لله

9.6.08

Kill the pain . XIX . nondum explicit

[Andrea del Sarto - Madona e o Menino, com as Santas Catarina e Isabel e João Baptista]

And everything you got hoi-poloi like
Now you're lost and you're lethal
(cantado por Massive Attack)

'Já acabou senhor.'
'Já acabei o quê.'
'De sonhar.'

Sonho sono somnum. Habes somnum. Por isso as luzes nos olhos. Pirilampos picantes. E o anel de fogo. Nos meus olhos. Não agora. Agora não. Agora só os pirilampos pic pic pic. Por todo o lado. Dizem que é porque. Mas na altura. Se calhar porque me levantava tão cedo. Quê. Seis da manhã. Noite. E o frio frio. Depois fechava os olhos. Com força. Apagar o fogo. Que me esmagava as pálpebras. O anel de fogo. O que era aquilo. Uma doença. Não sei. Não sei nada. Depois abria. Os olhos. Entornava-me cama abaixo. Escorria pelo chão. Quarto tabágico sabes. O fedor das beatas destilando putrefacções. Sim e os pulmões amachucados doíam devagarinho. Uma morrinha negra de القطران pinga pinga. Negro viscoso. Que nojo. O que é. Alcatrão. Se me abrissem ai o cheiro. Abro a janela de noite e não serve de nada. Este fedor. Que me mastiga os pulmões. Já não tenho forças. Custa tanto. Respirar.

Se eu fechar os olhos. Embalado pelo ronronar do esquentador. Enquanto a banheira enche. E o estômago resmunga. Na cozinha há pão. Se eu. Não. Agora fechar os olhos. Sonhar que o dia acabou. E que isto é a minha cama. Não a borda dura da banheira. E que já cozi as minhas carnes na água quente. Cozi. Cozer parece um bacalhau. Quero dizer. O z. Era assim que eu pensava. O z manuscrito parece um bacalhau cortado ao meio. E o bacalhau coze-se. Não se cose. Porque o s parece uma agulha com a linha pendurada. O manuscrito. E o botão cose-se. Não se coze. E que a água já me arrancou as remelas teimosas. Para quê toda esta teoria de. Tirar os cheiros. Que ofendem o senhor militar. Já contei isto. Não me lembro. Abrir os braços e a cara de incómodo. Que foi. Cheiro mal. Eu sei. Não me deixaram tomar duche. Que queria o senhor. Acordaram-me com caralhos foda-se toca a despachar. Nem a cara me deixaram. E depois ontem sabe ontem estava tanto calor e à noite houve copos. Assim tome lá este fedor de suor e álcool requentado. Absinto. Podia ser pior. Imagine que entrei neste quartel nos braços de dois militares. Não não não se assuste. Eu não gosto de fardas. Mas não me aguentava em pé. Por isso tome lá este fedor de suor e álcool temperado com uma valente dor de cabeça. Mas eu não cheiro mal. Este gelo. Com a cara sobre a água quente. O vapor lambendo-me a pele. Entrar. De joelhos. O calor sonolento que me envolve as pernas. Como se fosse rezar. Até de manhã. Ficava aqui até amanhã.

7.3.08

Kill the pain . XVI . Spitting out

[Bacchiacca - Pregação de São João Baptista (pormenor)]

we're like identical twins
sucking on the same teat
spitting out the same things
Cantado por Massive Attack)

Enquanto me enrola a mão os mesmos medos de ontem. E no ar o funga funga onde estás tu. Aqui. Onde tu não me vês. E se cheiras não me cheiras. Porque o medo que te alimenta as narinas há muito o esfreguei por este chão sem cor. Cala-te. Eu estou aqui. Onde me morre o cheiro do medo. Morde. Mata.

11.2.08

Kill the pain . XV . Neutralize

[Fra Angelico - Visitação]
her eyes
she's on the dark side
neutralize
every man in sight
Como as cobras que deitam a língua de fora provando o ar. A que te sabe o meu ar. A musgo a bolor. A ondas de sangue e de tédio. De quantos tijolos vais precisar. Para me esmagares o crânio e de lá me arrancares καὶ ἐκβαλόντες ἔξω τῆς πόλεως ἐλιθοβόλουν καὶ οἱ μάρτυρες ἀπέθεντο τὰ ἱμάτια αὐτῶν παρὰ τοὺς πόδας νεανίου καλουμένου Σαύλου (*). Trinta e cinco. Um a um.





(*) quod interpretatur et eicientes eum extra ciuitatem lapidabant et testes deposuerunt uestimenta sua secus pedes adulescentis qui uocabatur Saulus (Act 7:58)

7.2.08

Kill the pain . XIV. Falls

[Boticelli - Virgem e o Menino com dois anjos e São João Baptista]

weightless falls honeysuckle

(Cantado por Massive Attack)

Não há nada. Nem luz nem trevas. Mas ele está ali. O homúnculo. Sinto-lhe o nariz a fungar assim como um rato. Provando o ar. Para ver onde eu estou. Musgo. O meu cheiro sabe a musgo. Sinto-o na língua e nos dedos. E ele funga. À minha procura. E de repente o terror. Esmagando-me as tripas. É ele. O corpo enrolado e a boca fechada. Como se pudesse matar o cheiro. E ficar indetectável neste vazio neste nada. Enganou-me. Mas agora eu sei. É ele.

'Senhor'

Funga funga. Não me apanhas. Porque agora eu já não quero. Porque agora eu sei quem tu és.

15.1.08

Kill the pain . XIII . Lonely

[Andrea del Sarto - Estudo para O Baptismo do Povo]

ain't it lonely out there?
(Cantado por Madonna e Massive Attack)


Eu subi e não havia nada. Nem luz nem trevas. Nem o velho de barbas negras. Depois aquele zumbido ensurdecedor. Como uma broca rasgando-me o cérebro. Sem dor. Porque ali não havia nada. Só a broca. Deve ser assim quando.

'Senhor'. Há alguém aqui. Quanto tempo quanto. Um dia dois. Trinta e. Os tijolos. E se for o tubarão. Si je vois un requin. Si vous voyez votre requin. E se aquilo que eu vi é. Não que eu tenha visto alguma coisa. Ali não havia nada. Nem luz nem trevas.

'Senhor'. Digo não digo chamo não chamo. Respondo não respondo. Há dias em que não sei que fazer. Que dizer. Se isto tudo acabasse. Mas acaba. Ai acaba. Só depende de mim. Afinal o que me falta. O nada. O tubarão. Mon requin. Chamá-lo.

'Senhor'. É ele. É o rato. O homúnculo. Não fui eu que o chamei. Foi ele é ele. Esta voz. Não. Sou eu. Louco. Consumatur. De que me serve o latim agora. Quando não dou por mim mesmo a chamar. Tinha de ser quando eu. Não não. Não estou pronto.

'Chamou?'
'Chamei. Acho. Não sei.'
'Chamou?'
'Era a minha voz e a minha boca. Mas eu não. Eu estava a sonhar. Não sei. Não vi ainda o meu tubarão nem. Nunca lhe aconteceu? Ouvir-se a si mesmo e pensar que é outra pessoa. Eu juro. Estava a dormir e havia uma rampa e uma escada. E depois eu subi. É incrível. Porque não parecia. Sabe.'
'Não sei. Repito: chamou?'

Que é isto. Chamei. Não chamei. Porque eu quero acabar com isto. Não sei. Se chamei. Se não. Se quero.

30.11.07

Kill the pain . XII . Stride

[Caravaggio - São João Baptista]
I take a small step now it's a giant stride
'O que é aquilo que brilha e me cega e me mostra as entranhas. As minhas.' E o velho de barbas negras olha para mim e abre a boca que é apenas um rasgão na cara feia e não diz nada. Levanta um braço e aponta. E o gancho oscila e eu com ele. Na direcção do braço. Como se não apontasse mas empurrasse. Para ali para aquele fogo imenso de onde saltam gafanhotos com cara de cobra hic delirat e se ergue uma escada. Sem degraus. Uma rampa. E de um lado e do outro machados e facas e garfos e espadas passionem legit Perpetuae e ganchos que se me agarram à pele e à carne mesmo sem lhes ter tocado. 'Anda sobe'.

E agora já não há gancho e eu ando sobre o fogo assim como. E ao longe a escada e eu não sinto as chamas que me devoram os pés e as pernas. Porque os meus olhos estão pregados na escada na rampa. Como vou conseguir subir. Atrás o velho das barbas negras rasga a cara num sorriso atrás de mim. Como é que eu sei. Se tenho os olhos pregados na rampa na escada. Mas sei. Ele ri-se.

Já está. 'Anda sobe'.

3.11.07

Kill the pain . XII . Supplikant

[Caravaggio - São João Baptista]

nearly worn
kneeling like a supplicant
(Cantado por Massive Attack)

No guts. No blood. Depois chegou-se a mim scilicet senex atra barba e deu-me a cheirar o naco de carne e cheirava a mim. Quer dizer. Não cheirava a nada. Portanto era meu. Porque o meu cheiro não me cheira. A que cheiras tu. A mim. Pois claro. Talvez a quente. Sim sim cheirava a quente. Fígado. Ou estômago. Não sei. Não se deviam confundir assim. Mas eu não vejo nada neste talho. Só o cheiro a morte. E a sangue. Imundo. Tira-me deste gancho por favor.

E agora onde está o talho. Nesta história não se pode fechar os olhos. Porque isto é um sonho. Ou não. E quando fecho os olhos. É que eu não dei por adormecer. E se isto fosse um sonho. Então e esta dor.

Livre الحمد لله quod dicitur al-hamdu lillah ac interpretatur Deo gratias fora do talho da morte. Balanço no ar e ele tem-me por ele pelo gancho. Como um pêndulo. Assim. Deste lado para aquele. O da Escola Politécnica. E para aquele. E se eu caio. Lá em baixo. Naquele rio vermelho e negro.

27.10.07

Kill the pain . XI . Honeysuckle

[Caravaggio - Decapitação de São João Baptista]

weightless falls honeysuckle
strangers (strange this)
lights from pages
paper thin thing
(Cantado por Massive Attack)

Do chão saíam línguas de cobra e o bafo de dragões de fogo verde (1). Assim. Devagarinho lambendo-me os pés. E eu não sei se estava deitado. Porque o bafo me aquecia costas e pernas e pés e eu não me conseguia mexer. E assim se eu estivesse de pé. Ou deitado. Tanto faz. E isto. Veneno (2) duro rasgando-me a pele - cravando-me fundo na carne e nos ossos. E a dor era tanta e eu abri os olhos e não vi nem línguas nem bafo. O velho. O das barbas negras. E na mão um naco de carne vermelha morta. Oozing bloodgouts (3)

Ganchos. O cheiro. A morte e sangue. Um talho. Porcos esventrados e vacas. E eu. Peito e barriga. Sem nada. Abertos. Assim. No chão o lago plinc plinc vermelho escuro. Debaixo de mim do meu corpo. Oozing bloodgouts from my absent guts. E as moscas são tão grandes. Metidas dentro de mim. Daqui a nada as larvas e eu serei. Não há ninguém neste talho imundo. Eu. Os porcos e as vacas. E as moscas. Comido. De fora para dentro. Guts. I have no.


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(1) Quoniam uiridis frigidior ignis flauo rubroque et in terra illa non aestus sed frigor sentiendus. Quia dracones nescio at scire nollo.
(2) Scilicet draconum.
(3) Iacobus Joyce ut patet omnibus hoc scripsit.

12.10.07

Pele

[Bosch - A tentação de Santo Antão (pormenor do painel esquerdo)]

I wrote you a letter and tried to make it clear

that you just don't believe that, I'm sincere.
(cantado por Massive Attack)

Se eu pudesse parar os dias e saltar as noites. Se eu pudesse fechar os olhos e vazar a alma. Se eu pudesse saber se ainda estás aí. E se posso sonhar. E se um dia. Ou não. Se devo ir embora. Desistir. E esquecer. Porque de noite há fantasmas que me arrancam a pele.

5.10.07

Kill the pain . X . Keep me tasking

[Bosch - São João Baptista no deserto]

why you keep me testing, keep me tasking
you keep on asking
(cantado por Massive Attack)

E depois o vento ardente morreu e eu abri os olhos e o velho de barbas negras estava ali. Levantou o braço direito e com a mão tomou o punho da espada. Depois puxou devagarinho. Assim. E o crânio chiou e o seu gemido era insuportável. Como se a espada lhe fosse um órgão e lha arrancassem à força. E quando a espada saiu foi como se nunca lá tivesse estado. Porque não havia sangue nem ferida. Onde antes tivera rasgão agora tinha uma boca. Com lábios e dentes. E dela escorria pasta negra de sangue podre. E eu desmaiei. O cheiro.

E depois acordei e o velho de barbas negras estava ali. Numa mão oferecia-me a espada e dizia. Tolle. Lege (1). E eu pus-me de pé e com a mão esquerda tomei a espada. Era fria como gelo. Percorria-lhe a lâmina negra uma escritura que não pude decifrar. Porque as letras saltavam e mudavam de lugar quando começava a custo a delas tirar sentido. E o velho dizia. Lege. Mas eu não podia. E deitei a espada ao chão e o estrondo foi maior que mil trovões. Fechei os olhos e depois não sei. Se dormi. Se morri.

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(1) Vt Augustinus. Sed non librum sed gladium ostendens. Nescio cur id faceret.

1.10.07

Kill the pain . IX . Carbunculus

[Andrea del Brescianino - Madona com menino Jesus e São João Baptista]

toy-like people make me boy-like
(cantado por Massive Attack)

E antes de cegar. Se ceguei. Já não sei. Porque a verdade é que o que agora é treva já antes. Mas não. Havia um homem. Um velho. De barbas negras. Longas. Pelos pés. Sem roupas. Só barbas. E uns olhos vermelhos de sangue. Ou de fogo. Chamas. Ou carvões. E a luz daqueles olhos era tão pesada. Mais do que. Quando a luz me inundou a cela. Pensei que cegava. Porque era tão tão. Sabes. Assim. Como quem olha para o Sol e lá deixa ficar os olhos. Ou mais forte. E depois apareceu aquele homem. Assim. vulto negro no meio da luz. E eu não via mais nada. Nem paredes. Nem porta. Só luz. E o homem. Como num sonho. Por isso. Não. E a boca era rasgada. Sem lábios. E dela saía uma espada (1). Negra como a barba que o cobria. E da ponta pingava sangue. Podre. Por causa do cheiro. E da cor. Não era vermelho. Pastoso. Negro. Petróleo. Mas era sangue. Porque eu sei. Como se a espada. Se lhe entrasse pela nuca. E lhe rasgasse a boca que não tinha e abanava em fúria. E a espada a cada esticão rasgava-lhe um pouco mais a boca. E espirrava-lhe o sangue e guinchava assim como ferro quente em água fria. E das ventas vento ardente. E eu tapava os olhos com as mãos para não cegar. E o vento ardia e abria caminho por entre os meus dedos. E as chamas entravam-me nos olhos e eu gritava de dor e ninguém me ouvia (2).

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(1) Υἱὸς ἀνθρώπου ut in Apocalipsi Iohannis. Sed hic de quo scribitur non hominis.
(2)
آخر الليل بتسمع اليعات

30.9.07

Kill the pain . VIII . Maridhtu

[Domenico Beccafumi - Virgem com menino Jesus e São João Baptista]

you light my ways through the club maze

we would struggle through the dub daze
(cantado por Massive Attack)

Enrolei-me em mim mesmo e não sei se dormi. Se vigilava (1). Se dormia (2). Se isto é sonho. Se é vigília. Se os tijolos. Os trinta e cinco. Se já os puseram. Um a um. E me deixaram aqui. Sem luz. Sem dor. Livre por fim (3). E se aquilo que eu vi. Se o vi se o sonhei.

Às vezes é como se enlouquecesse. Pois se eu sou são. Se fosse. Não sou (4).

Primeiro havia as trevas. E eu não via nada. E depois veio a luz. Assim tão. Assim como o Sol de manhã. Fria. E havia raios e estrondos. E não havia nem porta nem parede. Só luz. E depois fiquei cego.

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(1) Quia nesciebam diem neque horam.
(2) Habui somnum imaginem mortis.
(3) ان شــاء الله
مــرضــت (4

27.9.07

O chá

[Honthorst - Jovem bebendo]

by the light of dawn

a midnight blue ... day and night ...
I've been missing you

I've been thinking about you baby

almost makes me crazy

(cantado por Massive Attack)


Aqui. Toca aqui. No peito. Vês. Sentes. Dói. Por isso não falo. Ainda que os teus olhos me toquem. E me digam o que é o que foi o que tens. Não tenho não foi não é. E devia olhar-te e dizer-te que me custa levantar da cama de manhã. Porque dói tanto. E o dia não acaba. E se pudesse deitava-me e não voltava a. O resto da minha vida. Havia de se me colar ao corpo a cama. Faltam-me as forças. E cada dia que passa. Sabes. Quando o Sol nos martela a cabeça. E os segundos são dias. Não. Tu não sabes. Porque eu não falo. E agito a chávena devagarinho. Assim. Para não entornar o chá. Para te distrair os olhos. Tirá-los de mim. Noli me tangere. E se um dia.

20.9.07

Kill the pain . VII . Cold mirror

[Geertgen - Os ossos de São João Baptista]

I seen you go down to a cold mirror
it was never clearer in my era so
you lick a shine upon your forehead or
check it by the signs in the corridor

(cantado por Massive Attack)

Há quanto tempo. Uma semana. Duas. Ou mais. Um mês. Trinta dias. Trinta e cinco. Não interessa. Aqui o tempo não foge. E eu já não sei se isto é um sonho grande grande. Porque eu não vejo não ouço nada. Só negrume vazio. Como se já. E ainda não vi o meu tubarão. Pour faire mon requiem. Nem pedi que pusessem o primeiro tijolo. Porque se isto é um sonho. Então ontem. Se eu estiver a dormir. Se isto é um sonho grande sem fim. Então ontem era verdade. E aquela luz. E as chamas. E os. Não. Não. Ontem foi um sonho. Não. Foi. É. Tem de ser. Porque se não.

16.9.07

Kill the pain . VI . Kaputt

[Andrea Solari - Salomé com a cabeça de São João Baptista]

I turn a stone I'll find you there
into reflected light I'll stare

(cantado por Massive Attack)

Tubarão em cela escura. Si je vois un requin je fais mon requiem. Le mien. A sério. Se o vir passar à minha frente levanto-me e peço o primeiro tijolo. Se eu conseguisse ver alguma coisa. E quando os trinta e cinco tijolos. Sem luz sem ar sem dor sem. Agora ainda posso apalpar a parede achar a porta. Sair. Como se tudo não tivesse passado de um engano. Com licença eu estava enganado agora com licença sim sim vou-me embora espero que não lhe faça diferença com licença. Podia levantar-me. Sim. Ir embora. Esquecer esta loucura. Porque é verdade que dói dói tanto. E vem-me à boca o sabor a sangue. É o peito que me apertam e me esmagam. Alguma coisa se abriu lá dentro. E dói tanto dói tanto. E não vai parar não vai morrer. Já não é tempo. Já não é tempo de esperança. Nunc est tempus moriendi. O que é que me aconteceu. É que eu dantes acreditava. E nunca me passaria pela cabeça. Achava sempre que um dia passava. E sustinha-me. Que não havia coisa nenhuma definitiva. Que agora doía mas amanhã já não. Que cedo ou tarde alguma coisa. Mas esta dor é tanta e é tão grande.

Ontem tive um sonho. Foi o meu primeiro sonho desde que aqui cheguei. As noites têm sido brancas. Ou negras. Porque adormeço e não vejo. E acordo e está tudo negro. Às vezes penso se me terão cegado. Porque não vejo nada. Nem se estreitar os olhos e fizer força força. Vai ser assim quando puserem o último dos trinta e cinco tijolos. Será a fome. Ou a sede. Ou tudo. Porque agora ainda vou comendo e bebendo. Deve ser enquanto durmo que eles. Talvez abram a porta devagarinho. Assim. Para eu não ouvir nada. Depois acordo e ponho o nariz no ar e fungo como um rato. Chego-lhe pelo cheiro. Pão. Leite. E água. A água também cheira. A rã e a lodo. Quando eu chegava a casa cheio de lama. E a mãe gritava onde é que tu andaste. Num charco a apanhar rãs. Água grossa enjoativa. Depois nem isto. Deve ser a sede. Porque sem comer aguenta-se tanto tempo. Sem beber não. Talvez devesse repensar. Ou. Porque vejamos. A dor da sede e da fome. Alguns dias. Não mais. Posso aguentar. Sim. Pior do que a outra dor não será. E depois acabou tudo. Acabam-se as dores. Kaputt. Mas e se. Porque nada me garante. E talvez um dia. Aquilo que tanto me dói hoje. E que sempre doeu. Trinta e seis. Não. Já chega.

Foi um sonho bonito. Se foi um sonho. Porque às vezes já não sei onde estou. Nem quando. Nem se ainda. Mas agora estou tão cansado. Depois conto. Conto a quem. Com quem estou a falar. Louco. Só me faltava. Não. Primeiro a dor. Agora isto.

10.9.07

Kill the pain . V . Syllables

[Caravaggio - Salomé com a cabeça de São João Baptista]
you blind me with flash bulbs
and puzzle me with syllables
(cantado por Massive Attack)

Fechar os olhos. Já estava. Foi-se. A dor. Seria tão fácil. Mas não. Há sempre uma escolha. E o homúnculo não me largou os olhos enquanto eu não. Escolhi a parede. Porque veneno não. Muito rápido. E eu quero gozar cada momento. Sentir-me ir. Suportar a dor. Finalmente. Desprezá-la. Porque vai acabar. Tudo. E agora já nada tem importância. Sofrerei. Paciência. Não mais do que me tenho doído. Uma última fome. Assim seja. Não me importo. Porque só dói quando não se vê fim.

'Os tijolos serão colocados à razão de um por hora. A cada badalada. Trinta e cinco. Porque se o senhor se arrependesse. Não não. Eu sei que não. Mas é um pro forma. Sabe? Sabe. Eu sei que sabe latim. Já não há muitos. Período irreal. Se se arrependesse. Não. Não se arrependerá. Porque se puxou a corrente e fez soar a sineta. Se entrou. Se me seguiu até aqui. Tão decidido. Não se vai arrepender. Mas suponhamos. Se se arrependesse. Está a ver. Teria trinta e cinco horas para se arrepender. Mas não tem. Porque não se vai arrepender. Sabe? Quando colocarem o trigésimo quinto tijolo. Acabou-se. Até ao trigésimo quarto ainda poderia. Sabe? Dizer qualquer coisa. Que já não queria. Que tinha sido um engano. Que queria voltar àquela dor que lhe esmigalha o peito. Mas não quer. Sabe? Porque lá fora está frio. Tanto frio. E aqui não. Aqui não terá frio. Nem fome. Nem sede. Nem dor. Aqui encontrará o repouso que tanto procura. Requies aeterna. Sabe latim não sabe? Sabe. Requiem aeternam dona eis Domine.'

Depois calou-se e enfiou a cabeça numa manga imunda. Como se procurasse. Não sei. Qualquer coisa. Não me interessa já. Tirou a cabeça para fora e voltou a fungar à maneira dos ratos. Voltou-se para sair. Virou a cabeça uma última vez. E agora vejo-lhe os dentes brancos ardendo no escuro. Já não abafa o escárnio. E se eu me. Porque.

'Já viu o seu tubarão? Sabe que em francês se diz requin? Si vous voyez un requin faites votre requiem. Avez-vous vu votre requin? Pas encore? Chame quando o vir. Eu virei.'

9.9.07

Kill the pain . IV . Bloodstains

[Bernardino Luini - Salomé com a cabeça de São João Baptista]
more sweet
more sweet

iconography fucks with me

you look great in bloodstains

(cantado por Massive Attack)

Sicut ouis. Sinto-lhe os olhos miúdos lambendo-me o corpo. E os lábios esmagados para não soltar o escárnio. Torce o nariz de rato e cospe um 'venha' quase inaudível. E eu vou. Porque não tenho para onde ir. E por isso tanto faz.

A dor. Lá está. Outra vez. Esmagando-me o peito. Nem aqui. Porque eu pensava que. Afinal. O frio. E a dor. Como lá fora. E o medo. Não. Isto sou eu. É o medo. O medo de. Basta. Tem de ser. Não há nada lá fora. Só o escuro. E o frio. Já chega. Que tenho eu a perder. Ou a ganhar. E a dor. E se um dia tem de ser. E a angústia. E este aperto que me rebenta as entranhas. Que seja agora. Para quê esperar. É a mesma coisa. Agora ou depois. Não. Não é. Se for agora custa menos. Não aquilo. Porque aquilo é igual. É sempre igual. Custa menos o resto. Se for agora. Porque se não podem ser anos. Décadas. De aperto. De medo. De dor. Mas e se. Não. Se até agora não. Trinta e seis. Mais outros tantos de acordo com as estatísticas. E eu não aguento. Não dá.

'Entre. Não tenha medo.'

Vai ser aqui então. Achava que ia ser diferente. Uma masmorra. No fundo de um poço fundo. Com correntes presas em argolas pregadas na parede. E musgo. Muito musgo em pedras gigantes. Não sei. Carceri d'invenzione na minha cabeça. Não era isto. Decepcionante. Uma cela nua. Nem uma corrente. Nada. Nem catre. Para quê. Se eu não vou dormir. Só vou. E depois acaba-se esta dor. As entranhas calcadas pisadas sem dó. Tudo. Ou não. Porque. E se. Não sei. Já não sei. Nada. E por isso o melhor é. Porque voltar lá para fora. Para a dor que me arranca as tripas. Não não não. Ad occisionem.