29.3.13

Lisboa anos 90

E depois o táxi a cambalear rua acima. A porta tombada à espera de que eu mergulhe lá dentro. O cheiro da cerveja a escorrer dos teus lábios. E depois as luzes mortas da rua afagam a janela e a música abafada a lembrar-nos que a noite vai funda funda porque de dia não a rádio não toca assim. Já está. Saio eu primeiro. Acabou. Trocar um olhar dormente. Não há beijo nem aperto de mão. Segues para casa. Sim. Até amanhã. E amanhã vou trepar outra vez até à rua da rosa e conter o sismo que me arrasa a razão quando chegas e me olhas com os teus lábios finos cerrados a trancar o sorriso.

28.3.13

a lonjura do nosso afastamento



Não te vás embora tão depressa. Ainda não te disse o que queria e não sei se um dia to direi. Por isso fica mais um bocadinho. Vês este livro que me deu o. Não interessa. Toma, lê. A dedicatória. Nunca ninguém me escreveu coisas tão bonitas. Não costumo mostrar a ninguém. Nem a ti. A ele todos o lêem. A mim ninguém. O que eu te diria e te escreveria se não fosse este terror que me esventra os dias. Por isso não te vás embora tão depressa. Pode ser que de repente se me desenrolem as palavras. Ou não te diga nada. E te pegue na mão e ta aperte na minha. E te diga por fim que.

26.3.13

saxa loquuntur

A solidão das noites em que acordo e o corpo seco sem pinga de suor. Levantar os olhos deixá-los cair pelo quarto. Esta pinga de luz a escorrer da janela. Pica pica pica. E eu levantava os cobertores e despejava-me na alcatifa. Há tanto tempo. Agora é chão nu. Os pés aram as roupas espalhadas porque eu estava tão e só queria era. E pica pica pica as pedrinhas a cantarem na janela. Agora não. Remar remar. Não. Bambolear como um petroleiro oxidado comido pelo tempo. Até à janela. Na solidão destas noites em que acordo e queria ouvir pica pica pica as pedrinhas a cantarem na janela.

8.2.12

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

13.3.11

Delito

[Orazio Gentileschi - Lot e as filhas]

Depois veio aquela noite em que a cerveja escorria mais devagar. E os teus dedos pendurados enrolados na torneira diziam-me que logo quando a noite estiver a morrer e a madrugada. Pára. Já me lembro. Quando a música se misturava com o meu copo molhado a pingar a cerveja que tu me entornavas dededevagarinho. Ofereço-te. E eu enroscado no banco sem costas. Com costas. Lembras-te. Sim. Sem cost. A cair enquanto as horas passavam. E tu de vez em quando desenrolavas os dedos da torneira e a cerveja morria lá dentro. Punhas a música mais alta e enxotavas a patroa para me aqueceres a orelha com coisas que eu já não te ouvia. A afundar-me e a cuspir os olhos lá para cima para o relógio de parede de ponteiros a tremer a ver quanto tempo faltava até a noite começar a morrer e a madrugada. Já não te lembras.

27.6.10

Ruminação de ideia antiga

[Michiel Sweerts - Rapaz de turbante]

Sempre a remoer o medo sempre a remoer o medo. As tripas a gritar. E os degraus a cair esmagados debaixo do fedor do meu medo. E quando tu me apareceres de pé no cimo das escadas em pijama e isqueiro na mão e o teu riso flamengo a pingar do plástico do maço de tabaco. Não tenhas medo. Fecha os olhos. E quando os abri o plástico não estava lá. Só os teus lábios e os teus olhos de aço. Lembras-te. Lembras-te de como puxei a cara para o lado e tu beijaste o ar. E hoje quando me abrirem a porta e disserem sobe, está lá em cima. Não vou ter medo nem vou abrir os olhos.

22.4.10

Pulsar


e os músculos das pernas a pulsar e de vez em quando é como se deixasse de as ter. Porque saber que nunca mais te vou ver a balouçar por cima da minha cama. E o teu hálito rijo a roer-te os dentes amarelos de. E é por isso que. É também por isso que os meus dias. E é por isso que me vês a andar sempre a andar

21.2.10

Memento


Não é que me tenha esquecido de ti. Eu nunca me esqueço de ti. Não. O meu terror é que nunca me esqueço de ti. Nem quando fechava os olhos com força e te dizia desaparece. E tu não desaparecias. E quando os abria. Tu lembras-te. Do meu mau feitio matinal. A voz agarrada ainda à nicotina e ao alcatrão da noite de ontem. E depois tu chegavas-te a mim. Sentavas-te na cama e arranhavas-me a cara com a tua voz baixinha baixinha. rise and shine. E depois eu já não fechava os olhos nem dizia. Não. Eu nunca me esqueço de ti. Nunca. Nem agora. Quando. Os miolos espalhados na areia seca do meu cansaço. Destas queixinhas pequeninas. Porque os meus dias ainda são isto. Esta procissão interminável de insignificâncias. E é por isso que eu nunca me esqueço de ti.

8.2.10

A espera

obiit 2003.02.08

Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

Sophia de Mello Breyner Andresen

1.12.09

Do Quinto Império

Faz hoje 369 anos.

Excerto de um sermão de Fr. Luís de Sá, pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, logo a 16 de Dezembro de 1640, um dia depois da aclamação de D. João IV como novo Rei de Portugal.

«Dizei-me, animosos Lusitanos, qual de nós duvidou nunca de que havíamos de vir a ter Rei natural, que restaurasse este Reino próprio, Império de Deus, depois daquela célebre promessa, que Jesus crucificado nosso Deus fez na noite antes da memoranda batalha de Ourique àquele raio da guerra, que ali jaz (*), sempre testemunha viva desta promessa, e verdade nunca morta, o nosso primeiro Afonso, e primeiro Rei deste Reino: volo in te (lhe disse o Senhor falando de rosto a rosto com ele) et in semine tuo imperium mihi stabilire: quero em ti, e em teus descendentes fundar um Império (não Reino só não) próprio para mim, e se este reino e império do Senhor havia de ter esta larga interpolação de sessenta anos em que o governou Castela, também a restituição dele ficou profetizada logo deste tempo, pelo ermitão santo, nosso Samuel Evangélico, que naquela mesma noite falou ao nosso Rei: vinces, et non vinceris: posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque in sextam decimam generationem in qua attenuabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit (**), quem depois destas palavras (que no próprio original se guardam no cartório do real mosteiro de Alcobaça, cabeça da minha religião Cisterciense nestes reinos) firmadas com a própria mão Real daquele Rei que ali vedes: duvidou nunca, que havíamos de ter Rei Português, que nos livrasse do jugo de Castela? Ninguém certo: é bem verdade, que para em tudo ser profecia, e figura David do nosso felicíssim Rei, assim como os Hebreus variavam nas palavras, assim nós éramos vários nos discursos, acerca da pessoa, e mais do tempo, sendo, porém, sempre entre nós tão caseira esta profecia de nossa Restauração que havia quem a não tivesse pela primeira verdade.»

in João Francisco Marques (org.), A Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração. Quasi, 2007.
pp. 84-85 (emendei apenas os erros crassos no latim)

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(*) Recordemos: o sermão foi pronunciado no Mosteiro de Santa Cruz, onde está o túmulo de D. Afonso Henriques, para onde provavelmente o pregador estaria mesmo a apontar.

(**) Vencerás e não serás vencido: na verdade [Deus] pôs sobre ti e sobre a tua descendência os olhos da sua misericórdia, até à décima sexta geração, na qual se atenuará a descendência, mas sobre ela, atenuada, ele deitará os olhos, e verá.

29.11.09

Rise and shine


Se eu acreditasse que depois te achava outra vez posto deitado entornado sobre mim e os teus olhos quase a fechar e a tua voz bruta. rise and shine. então há muito teriam parado estes dias pastosos de me arrancarem as tripas.

16.10.09

you just don't believe


e quando não eras tu e era o cheiro a cerveja refogada a acordar-me a meio da noite e os teus lábios eram duas cobras grossas que se remexiam e de cada uma não de cada um pingava a tua indiferença e as tuas mãos as tuas eram duas tenazes que me pregavam aos lençóis e me esmagavam uma as tripas a outra a garg e quando tu acordares eu já não estou cá


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[este texto faz parte da sequência The carpeted stairs of terror e não pode ser entendido fora dela]

12.10.09

Pentecostes


Subir as escadas do teu sótão e à espera de te ver outra vez à porta a deitar fogo às calças de pijama. E tu sabes que isto não é uma metáfora de mau gosto. Tu lembras-te do isqueiro e das tuas gargalhadas e das chamas azuis. Do meu susto a escalar os degraus e do coração a cair-me no estômago e afinal não era nada. Nunca me explicaste como o fazias. Porque as chamas morriam sozinhas em poucos segundos. E eu já não sei se vou conseguir arrancar os pés da plataforma da estação. E subir a rua e depois desenterrar os dedos dos bolsos e picar a campainha da tua casa. Subir as escadas do teu sótão e agarrar o coração para não se afogar nas tripas.


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[este texto faz parte da sequência Kussen e não pode ser entendido fora dela]

11.10.09

Alsjeblieft

ANTHONISZ, Cornelis
depois vi-o abrir a porta e descer as escadas do teu sótão e cuspir-me na cara um riso sacana porque ele sempre teve um riso sacana. E tu não soubeste nunca o ódio que lhe tive e a mim. Porque a culpa foi. Se te tivesse dito que. Não. Em vez disso rastejei até casa com os teus olhos de chumbo a furar-me a cabeça a martelar-me os sonhos a. Isso. A arrancar-me as tripas. A culpa foi minha. E quem ficou contigo foi. Tem paciência. Ouve-me até ao fim. Alsjeblieft. Porque eu nunca tive força para te dizer nem agora. A saltar do comboio ainda em andamento e a deixar cair os olhos na plataforma sem força sem coragem.

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[este texto faz parte da sequência Kussen e não pode ser entendido fora dela]

14.9.09

Deserto

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen