27.6.10

Ruminação de ideia antiga

[Michiel Sweerts - Rapaz de turbante]

Sempre a remoer o medo sempre a remoer o medo. As tripas a gritar. E os degraus a cair esmagados debaixo do fedor do meu medo. E quando tu me apareceres de pé no cimo das escadas em pijama e isqueiro na mão e o teu riso flamengo a pingar do plástico do maço de tabaco. Não tenhas medo. Fecha os olhos. E quando os abri o plástico não estava lá. Só os teus lábios e os teus olhos de aço. Lembras-te. Lembras-te de como puxei a cara para o lado e tu beijaste o ar. E hoje quando me abrirem a porta e disserem sobe, está lá em cima. Não vou ter medo nem vou abrir os olhos.

22.4.10

Pulsar


e os músculos das pernas a pulsar e de vez em quando é como se deixasse de as ter. Porque saber que nunca mais te vou ver a balouçar por cima da minha cama. E o teu hálito rijo a roer-te os dentes amarelos de. E é por isso que. É também por isso que os meus dias. E é por isso que me vês a andar sempre a andar

21.2.10

Memento


Não é que me tenha esquecido de ti. Eu nunca me esqueço de ti. Não. O meu terror é que nunca me esqueço de ti. Nem quando fechava os olhos com força e te dizia desaparece. E tu não desaparecias. E quando os abria. Tu lembras-te. Do meu mau feitio matinal. A voz agarrada ainda à nicotina e ao alcatrão da noite de ontem. E depois tu chegavas-te a mim. Sentavas-te na cama e arranhavas-me a cara com a tua voz baixinha baixinha. rise and shine. E depois eu já não fechava os olhos nem dizia. Não. Eu nunca me esqueço de ti. Nunca. Nem agora. Quando. Os miolos espalhados na areia seca do meu cansaço. Destas queixinhas pequeninas. Porque os meus dias ainda são isto. Esta procissão interminável de insignificâncias. E é por isso que eu nunca me esqueço de ti.

8.2.10

A espera

obiit 2003.02.08

Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

Sophia de Mello Breyner Andresen