28.12.06

Limite

[Andrea del Sarto - Retrato de jovem]

a C.

Queríamos morrer novos. Dizíamos que queríamos morrer novos. Se calhar queríamos. Ou não. O medo da velhice. Trinta anos era o limite. Talvez não fosse o teu. Era o meu, pelo menos. Não me queria ver velho. E trinta anos era ser velho. Era não ser novo, pelo menos. Homens de trinta anos. Os traços do rosto marcados. Eu não queria ser assim. Teria cara de menino até morrer. Mesmo que isso significasse morrer cedo. Os vincos da pele em redor dos olhos. Não. Eu não passaria dos trinta. Lembras-te. Tolo. Foi há tantos anos. Agora estou a meio caminho entre os trinta e os quarenta. Já mais perto dos quarenta. Ainda me ponho a olhar para a cara dos homens a ver como não quero ser. Quando tiver quarenta. Ou cinquenta. Ou mais.

25.12.06

As noites

[Barocci - Natividade]

Havia aquelas noites de Natal a beber copos e a fumar cigarros naquele bar enevoado pelo fumo de tantos como nós para quem o Natal significava tão pouco e que para ali se arrastavam mal terminava a ceia ou então nem houvera ceia por falta de companhia ou de vontade e tinham estado à porta do bar à espera de que abrisse.

24.12.06

A cama

[Dürer - Adão e Eva]

a C.

Não sei. Tinha medo. Acreditava numa relação com pouca carne. De contemplação. Muito espírito. Era, hoje não tenho dúvidas sobre isso, um miúdo insuportável. Dominado pelos meus medos. Impondo-os aos outros. A ti. O sexo era um dos meus medos. E a cama o seu símbolo tão óbvio. Tão vulgar. Podia ter encontrado um menos evidente. Eu era tão plano. Tão chão. É o mesmo étimo latino, sabias. A mesma palavra latina deu plano e deu chão. E eu preferia que dormíssemos no chão. Tu também preferias. Mas com medo de que te partisse a cama. Não me parece que te dominassem os mesmos medos. De espírito mais pragmático, apenas te preocupava que te partisse a cama. Não é que sejas gordo, dizias. Realmente não era. Mas era grande. Muito grande. E pesado. E a tua cama era tão frágil. Achavas que se me deitasse nela a partiria. Se calhar. Nunca parti nenhuma cama. Mas a tua era tão frágil. Já disse isto. Um dia talvez tivesse bebido mais do que o desejável. Sim, tenho a certeza. Tinha bebido muito. De outra forma não teria acontecido. Uma ida ao Frágil. De certeza. Fim de noite. Talvez exagerasse no gin tónico. Hoje não bebo. Nem fumo. Estou a tornar-me tão plano. Tão chão. Tão chato. Chegámos a casa e pedi a tua cama. Não. Não tinha perdido os meus medos. Estava demasiado bêbedo para pensar. Menos ainda em sexo. E se se parte? Não se parte. Mas e se se partir. Não se parte. Partiu-se. Lembras-te.

25.11.06

Não sair daqui

[Dürer - Auto-retrato]


Frio frio frio. E se eu ficasse mais um bocadinho. É pior. Enfiar a cabeça debaixo dos cobertores pesados e não sair daqui. E se eu nunca mais saísse daqui. Amarrado a esta cama. Como aquelas santinhas que nunca se levantam e passam a rezar o tempo todo da vida que o seu deus lhes deu. Isso não queria. Mas a ler. Enrolado nos cobertores a vida toda. A ler. Não ter de me levantar. E a dormir. Quem me dera ser santinho. Mas sem rezar. Levantar-me para quê. Outro dia. Se eu pudesse saltar os dias. Mas saltar para onde. Amanhã será a mesma coisa. E depois de amanhã. Saltar para onde. Saltar para quê. Isto nunca mais acaba. Estes dias angustiados. Não há solução. Há.

10.11.06

Publicação


Alguns textos deste blogue foram publicados na revista Sítio.
Uma correcção à notícia: a ilustração que me é atribuída não é da minha autoria, mas sim do Rui.

2.11.06

Error

[Velde - Navios ancorando]

E depois aquilo começa a apitar. Maximum heart rate. Abrandar. Mesmo que não me sinta mal. E às vezes dá erro. Error. Que quererá dizer. Levo a mão ao peito. Não parou. Sinto-o. Então que é isto. Error? Depois voltam os números. Isto não está bom. Parar e pedir outro. Não. Está-me a saber tão bem. Que se lixe. Cento e cinquenta e nove. Maximum heart rate. Bolas. Será mesmo. Isto pode não estar bom. Ou não estou eu bom. Abrandar. E se não abrandasse. Não há-de vir grande mal. E se viesse. Irónico. Nunca gostei disto. E agora que chego a meio do caminho da minha vida. E se desse erro a sério. Não na máquina. A sério mesmo. Muito me riria. Ou não.

28.10.06

uigilate quia nescitis diem neque horam

[Leonardo da Vinci - Homem com cabeleira de hera]

O que será dos meus livros. Se ainda os tiver. Tantos. Uns dois mil. Serão alguns largos milhares, a este ritmo. Se lá chegar. E se tiver um acidente. Pode acontecer. Devia fazer um testamento. Sei lá. Nunca se sabe. Um acidente. O coração. Já não tenho vinte anos. Quem ficará com eles. Com o meu corpo não me importo. Queimado. Soa melhor do que cremado. Mas os livros. Esses não os podem queimar. Cremar.

26.10.06

E depois como era

[Dürer - Estudo de mãos]

Se as pudesse cortar. Para estancar a minha loucura. Cortá-las. E depois como era. E depois não era. Ou era. Se as pudesse cortar não seria mais feliz. É que não. Talvez me tornasse mesmo profundamente infeliz. E no entanto há alturas em que me apetecia cortá-las. Para não enlouquecer.

24.10.06

Outro

[Dürer - Cinco nus]

Mas suportar esta humilhação diária. Sim, eu sei, achas que não tem qualquer importância. Para ti não terá. Mas para mim. Condiciona-me a vida. Penso nisto o dia todo. Se um dia te visses no meu lugar. Mas contigo está tudo bem. Não tens de que te embaraçar. Eu sei. Não devia ser um embaraço. Mas é. Inevitavelmente. Para sempre. Às vezes queria ter nascido outra vez noutro lugar com outro corpo com outra mente. Nascido outro. Mas como podes tu entender isto. Contigo está tudo bem. Vá, não pode ser assim tão mau, dir-me-ás. É.

21.10.06

Olim sudor Herculis

[Caravaggio - São João Baptista]

Aquela poça de suor. Ninguém sua daquela maneira. Onde estou. Onde me meti. Pagar os erros de ontem. E no entanto sabe bem. Sinto os músculos. Há qualquer coisa no meu pé direito que dói. Aquela vez, há tantos anos. Jogava à bola com os colegas. Devo ter caído. Ou torci a perna. Foi há quê. Vinte e cinco. Talvez mais. Ou um pouco menos. Nunca recuperei. Coxeio ligeiramente. Não demasiado evidente. Quase imperceptivelmente. O suficiente para destruir em pouco tempo qualquer sapato qualquer bota qualquer chinela do lado direito. E agora volta a doer-me. Pé direito. Suave dor. Corpo brilhante de suor. Aquela silhueta nos vidros espelhados. Sou eu. Não me reconheço. Camisola colada ao corpo. Quente. Húmida. Sabe bem. Não posso parar. E aquela poça de suor.

Venter meus deus erat

[Botero]

Houve aquele tempo em que deixei de me amar. Porque me deixaram de amar. Porque achei que me deixaram de amar. Houve aquele tempo em que me encerrei no meu quarto. Inchava com o passar dos dias. Voragem suicida. Afogava a minha loucura em nacos de pão com mel. Chafurdava em comida. Não queria lembrar-me desses dias, agora. Mas sou confrontado com esses dias de cada vez que arquivo em arquivo morto a roupa. A roupa desses dias. Imensa. Ofensivamente imensa. Já se foram esses dias. E eu tenho de me lembrar deles. Para não voltar a esse tempo em que deixei de me amar.

14.10.06

Somnium imago mortis

[Rui Oliveira - Auto-retrato]
à memória do Rui

Às vezes apareces-me nos sonhos. Estendo a mão e toco-te. Ouço-te. É como se nunca tivesses partido. Como aquela vez, lembras-te. Depois de tanto tempo tínhamos voltado a sair à noite. Estavas fraco, ainda. Recuperavas. Ou assim pensávamos. Toda a noite a fazer pipocas. Que tolice. Mas foi um retorno. A nossa amizade. Íamos voltar a estar juntos todos os dias. Ou quase. Parecia mentira. Receara nunca mais poder sair contigo. E agora ali estavas. Fraco, mas a recuperar. Ou assim pensávamos. Demos um abraço. Daqueles fortes. Muito. Se calhar chorei. Depois morreste. E agora só nos vemos nos sonhos.

5.10.06

Hic sunt iterum leones

[Barye - Leões]

Pensava que já tinham partido. Sentia-me seguro. Sereno. Já não tinha medo à noite. Já não adiava indefinidamente a hora de deitar. Já ria. Já não tinha medo. E depois deitava-me. E gelava outra vez. Aquele gemido cavo vindo não sabia de onde. De perto. Medonhamente perto.

29.9.06

A berma

[Saltério de Estugarda (séc. IX)]

Era muito novo ainda. Não que seja velho agora. Já me pesam as cãs, porém. Vinte anos, tinha eu. Talvez um pouco menos. Cara de miúdo. Não imberbe. Talvez por isso me tratassem de maneira diferente. Não saberei explicar como. Não era como a um igual. Não era como a um rapaz da mesma idade. Não era como a um homem jovem. Não havia aqueles olhares cúmplices. Não sei. Não havia conversas de rapazes. Não me falavam de raparigas. Não me falavam de futebol. Falavam-me em tom de entrevista. Como se fosse um espécime estranho. Fora do seu mundo. Talvez fosse. Não sei. Não se encontravam comigo a sós. Acho que tinham medo de mim. Talvez por isso tenha ficado tão surpreendido quando C. se ofereceu para me deixar em casa naquela noite, quando o grupo se desfez. É que eu até morava ali tão perto, não era preciso. Mas ele insistia. Porque não. Vamos então. Calado como sempre, eu. Ele ia falando naquele tom estranho com que todos se me dirigiam. Já disse, não sei explicar como. Não havia assunto. Não me lembro do que me dizia. O meu embaraço era angustiante. Então reparei que não nos dirigíamos a minha casa. Saíamos da cidade. Onde vamos. Não te preocupes, vamos só dar uma volta, não me está a apetecer ir já para casa, olha, vamos ver coelhos. Ver coelhos. Coisa estranha. Pareceu-me que tinha sido a primeira coisa de que se tinha lembrado. Não era isso que ele queria fazer. Mas eu não estava assustado. Não tinha medo de que me fosse matar ou raptar. Afinal conhecíamo-nos bem, há muito tempo. Sem intimidade. Porque, lá está, sempre se dirigiu a mim como se me entrevistasse. Como faziam todos. Sempre. Não estava assustado. Intrigado, sim. Excitado, talvez. Parou o carro na berma de um caminho deserto. Noite escura. Possivelmente não havia Lua. Ou é a memória que me trai. Nem havia coelhos. Ou talvez houvesse. Mas ele não os procurou. Em vez disso deixou-se estar, cigarro na boca. Não falávamos. Ou melhor, eu não falava. Ele de vez em quando olhava para mim e dizia palavras soltas. A tentar uma conversa. Não uma conversa qualquer. Isso era óbvio. O coração batia-me loucamente. Não sei quanto tempo. Uns minutos, talvez. Depois um silêncio longo. Pesado. Sentia-lhe o olhar. Vamos embora então. Havia uma nota de decepção na sua voz. Nunca entendi aquela noite. Talvez ele. Não. Não podia ser.

O jantar

[Turner - Naufrágio]

Braços cruzados sobre a mesa. Um aperto na garganta. Olhar perdido enquanto espera o jantar. A sala vazia. Tantas mesas sem ninguém. Fosse há uns anos e seria uma noite de sonho. Atrás um casal com filhos. Sussurros. Ora aqui tem, bom apetite. Come depressa para terminar a solidão. Quer voltar para casa. Onde se sente aconchegado. Onde reina o silêncio. Onde o espera ninguém. Afinal se calhar é melhor comer mais devagar.

23.9.06

O embaraço

[Tiepolo - Imaculada conceição]

à memória do Rui

Havia um embaraço no ar. Sentávamo-nos lado a lado em silêncio. Nunca falámos claramente sobre aquilo. Das consequências sim. Daquilo nunca. Chamavas-lhe "aquilo", lembras-te. E eu dizia "sim, aquilo". Nunca dissemos a palavra nefanda. Nem onde atacou primeiro. Havia um embaraço no ar. Depois eu batia-te na cabeça e chamava-te careca. E tu sorrias e chamavas-me gordo. E depois voltava o silêncio.

21.9.06

A solidão

[Goya - Fogo nocturno]

Mil novecentos e oitenta e dois. Não tinha medo de monstros. Nem de fantasmas. Nem do escuro. Não era disso que tinha medo. Atormentava-me, sim, a solidão. O silêncio. A casa estranha. A saudade. Deitava-me com o coração a bater tão depressa. Ansioso por adormecer. Por fugir. O barulho suave da televisão na sala ao lado. A mãe. Ainda não foi dormir. Está ali. Agarrava-me desesperado àquela presença. Depois o terror de ouvir a televisão ser desligada. Klik. Silêncio. Solidão. O medo.

20.9.06

E se

[Murillo - Rapazes comendo fruta]

Às vezes gostava de saber o que teria sido a minha vida se. Não. Eu disse não. Queria ter dito sim. Mas disse não. E se. Seria outro. Ou não. Não. Não me arrependo de nada. Mas e se.

18.9.06

A gaivota

[Wolgemut - Circe e Ulisses]

"Mr Leopold Bloom ate with relish the inner organs of beasts and fowls. He liked thick giblet soup, nutty gizzards, a stuffed roast heart, liverslices fried with crustcrumbs, fried hencods' roes. Most of all he liked grilled mutton kidneys which gave to his palate a fine tang of faintly scented urine."
James Joyce, Ulysses

Rim frito com manteiga. Bizarro. Um desafio. No dia seguinte obriguei a mãe a comprar rim no talho. Não era de carneiro, era de porco. Não fazia mal. Era um rim. Uma recensão do Ulisses numa revista. Falavam do senhor Bloom e do seu gosto por rim ao pequeno-almoço. Ao pequeno-almoço. Terá problemas de saúde. Não é coisa que se coma ao pequeno-almoço. É como aquelas pessoas que começam o dia com um golo de água-ardente. Eu começava o dia a ler. Fez-me mal à saúde. Costas tortas. Ulisses já eu conhecia da Odisseia. Contada às crianças, criança era eu. Mas aquele não era o mesmo Ulisses. Fascinante, ainda assim. Quis lê-lo mas não li, então. Muito difícil, diziam. E eu obedeci. Livro assustador para um miúdo. Grosso e escrito num estilo esquisito. Mais tarde ameaçaram-me com O nome da rosa: que era demasiado complicado, que não o lesse. Dessa vez desobedeci, e ainda bem. Não seria hoje o mesmo. Mas o Ulisses esperou. Muito tempo. Não me mudou, então. Comecei naquelas horas vazias enquanto terminava o turno da tarde e esperava pelo da noite. Anichava-me na esplanada e lia. Não. Passavam as letras à minha frente, mas eu não lia. Coração apertado. Já não sei o que me oprimia. Na verdade parece que há sempre algo que me oprime. Eu próprio. Por esses dias tentava ensinar nas Caldas da Rainha. Talvez fale disso em outra ocasião. Agora não. Pus o Ulisses de lado até ao Verão. Não me sentia capaz de ler. Nada. Meses medonhos. Mas eu prometi não falar disso agora. Pu-lo de lado. Até ao Verão. Ler na praia. Não há prazer maior. Sol quente nas costas. PLOP. Uma gaivota. Porventura aflita. Peixe estragado, talvez. Comem tudo o que lhes passa à frente do bico. Até cadáveres. A verdade é que se aliviou ali. Mesmo no meio da página. Uma pasta repelente. Sobre a frase que estava a terminar. Limpei cuidadosamente a página. Fechei o Ulisses. Fui ao mar. Não era ainda tempo de o ler. Oh yes.

15.9.06

Hic non sunt leones

[Villard de Honnecourt]

Acho que não olhava para lado nenhum. Figura esguia recortada na paisagem suburbana. Negra envolta em panos coloridos. Estranha. Deixava-se ficar sem olhar para lado nenhum. A angústia marcava-lhe a face engelhada. Saída da senzala. Denunciava-a o ar perdido. As roupas. Às vezes passava por ela e sorria-lhe um bom dia. Virava a cara e deitava-me o olhar mais desesperado que alguma vez vi. Não falava. Tê-la-á trazido a família. Não sei. Não veio por sua iniciativa. De certeza. Não era revolta que lhe via no olhar. Era um desespero conformado. Não era aqui que queria estar. Nunca para aqui quis vir.

9.9.06

Mais uma morte macaca

[Wouweman - Navios em mar revolto]

Como não queria morrer matei-me. Resolvido. Afinal era tão fácil. Agora já não sofro. Aliás, não sinto nada. O que é bom. Entre sofrer e não sentir, escolhi não sentir. Não me perguntem como me matei. Não é que queira fazer disso segredo. Daria a receita a quem ma pedisse. Não a guardaria só para mim. Não. Sou egoísta, mas só quando me apetece. Se me perguntassem por que raio decidi matar-me, aí sim. Passaria uma noite a contar porquê. Talvez venha a fazê-lo um dia. Agora não. Não é isso que me apoquenta. O que me apoquenta é que já nada me apoquenta. Ataraxia. Não, ainda não. Estou perto, porém. É que já não sofro. Porque me matei. Matei-me bem matado. Mas não me perguntem como. Não responderia. É que não sei como me matei. Só sei que apareci morto. Ainda tentei reanimar-me. Em vão. Morri de morte macaca. Outra vez.

7.9.06

O tubarão

[Boticelli - Divina Comédia: Inferno]


"Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita.

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!"
Dante, Divina Comédia, Inferno, I, 1-6.


Não sei se estou a meio caminho. Às vezes gostava de estar no início. Para fazer tudo de novo. Olho para trás e pouco vejo. Gostava de chegar aqui e poder dizer fiz isto. Tenho orgulho naquilo. E não. Olho para trás e vejo pouco. As trevas. Floresta densa onde não entram os raios do Sol. A cada passo torna-se mais densa. Mais negra. Caminho vergado. O cansaço. Não aguento mais. Doem-me as pernas. Estou a meio caminho, dizes tu. Dói-me o corpo. Todo. Não posso parar. Já não vejo nada. A cara sangra arranhada pelas silvas. O corpo todo. Em chaga. Não posso mais. Estarei eu cego ou são as trevas que sufocam a floresta. Tenho de parar. Os tubarões nadam até a dormir. Se param, morrem asfixiados. E se eu parar. Não podes.

5.9.06

Latet anguis in arena

[Caravaggio - Madona com a serpente]

Coisa esquisita. Levanta a cabeça ameaçadora. Não te quero fazer mal. Só quero saber se és mesmo o que pareces. Uma cobra. Pequenina. À beira-mar. Mesmo no limite da rebentação. Coisa estranha. Uma cobra na areia salgada. Muito pequenina. Será outra coisa? Toco-lhe com uma concha. É uma cobra. Não há dúvida agora. Coisa espantosa. Silva na minha direcção. Não. Já estou a inventar. Na verdade lança a cabeça, mas não silva. Deita a língua de fora. Não silva. Pego-lhe? Pode ser uma cobra de água inofensiva. Mas que faria ela aqui. Não há cursos de água doce aqui. Só mar. Não pode ser. Mas é. Esquisito.

30.8.06

A arriba

[Teniers - Tentação de Santo Antão]

a J. B.


Não é que alguma vez me tenha esquecido de ti. Há momentos em que não és mais do que uma memória doce e vaga. Às vezes és recordação viva. Pungente. Sentado no alto da arriba olhava o mar. Abraçava-me a mim mesmo, procurando o meu próprio calor. Vento frio varrendo o areal deserto. Houve aquela madrugada, lembras-te. Um Inverno tremendo. Ou seria já Primavera. É-me tudo tão gelado. Aquele início de mil novecentos e noventa e oito. Tão negro. Sem esperança. Mas houve aquela madrugada. Agasalhados, olhando o mar. Lá tão longe. Tão medonho. Calados, olhando em frente. No cimo das arribas. Não devemos ter trocado mais do que meia dúzia de palavras. Eu sabia o que queria, mas não tinha coragem. Tão ferido, ainda. Tão inseguro. Tu, não sei. Talvez já soubesses o que querias. Tinhas mais medo do que eu. Muito. Muito mais. Nascia o dia. Enregelados. Podíamo-nos ter abraçado. Mas não. Tínhamos medo. Até que um dia. Até que uma noite.

29.8.06

O rugido

[Constable - Baía de Weymouth]

Tomado ainda pelo torpor estival. Caminhadas à beira-mar, as ondas lambendo-me as pernas. Já escrevi isto. Não me consigo cansar do mar. Ontem a praia estava deserta. Vento forte. Lá em baixo um enorme bando de gaivotas. Uma longa faixa branca e negra, da arriba até ao mar furioso. Desço. Ao encontro delas. O vento ensurdece-me. Areia compacta, não pisada. Gritam à minha chegada. Uma a uma levantam voo. Eu avanço devagar. Centenas de gaivotas. Um restolhar assustado. Guinchos. Afogam o rugido do mar. E do vento. Não há mais ninguém agora. Os guinchos das gaivotas, pousadas agora a uma distância segura. À minha volta troam vento e mar. Quando era miúdo detestava o Verão.

18.8.06

Ainda aqui estou

[Velde - Praia em Schveningen]

Não me fui embora. Por aqui ando todos os dias. Calado. Mente preguiçosa aquecida pelo Sol de Agosto. Salgada do Atlântico. Sem ideias. Sem palavras. Longos passeios na areia molhada. Pensando em nada. Deixo de ouvir o rugido do mar. De sentir a sua língua gelada contra as minhas pernas. Tudo me parece já passado. Esmagado pelas décadas. Três e meia, não mais. Mas parecem oito. Nove. Às vezes paro. Mãos atrás das costas. Mirando o oceano. Ou algo por detrás dele. Não sei. Depois volto à duna onde deixei toalha e mochila. Deito-me na areia quente. E durmo. Estou vazio.

11.8.06

Falhado de novo

[Bosch - Queda dos anjos rebeldes]

Mil novecentos e oitenta e quatro. Cheira a estrume. Uma camioneta de onde saíam uns senhores mal-encarados, armados de enxadas e outras alfaias. Manhã fria de Primavera. Ou seria Inverno. Sim, final de Inverno. O céu estava de chumbo. Não gosto de me levantar cedo. Chovia. Quero voltar para a cama. Para o calor. Abraçava-me a mim mesmo, tentando aquecer-me. Mesmo que a chuva me atacasse a cara enfiada dentro do capuz. Não conseguiria nunca aquecer-me. Apesar de tudo aquele cheiro forte. Estrume e terra molhada. Mal conseguia com a enxada. Atacava a terra com fúria. Não era aquilo que eu queria. Não era esta a vida. Olhava em volta e via-os a todos. Havia gritos de alegria. Risos. O estômago encolhia-se-me. Uma vontade incontrolável de chorar. Não era aquilo. Não pertencia ali. Tragédias de um quase adolescente. Parece tudo tão negro sempre. Agora às vezes também. Apoiava-me na enxada e pensava na melhor maneira de fugir dali e nunca mais ser visto. Haveria ali alguém que gostasse de mim. De quem eu gostasse. Não sei. Misantropo. Depois atiraram-me com a pequena árvore. Já está bom o buraco, rapaz, toca a plantar. Uma árvore pequenina. E eu tão grande. Grande, desajeitado, taciturno. Depois atei a árvore ao pau de suporte. Tão frágil. Olhava-a e não acreditava que vingasse. Batida pelo vento. Se isto fosse uma história cor-de-rosa eu agora escrevia que anos depois passei pela árvore que plantei em frente da escola e que ela estava grande, desajeitada e taciturna como eu. Maior do que as dos meus colegas, pois também eu era o maior de todos. Mas não. Poucos meses depois a minha árvore continuava raquítica, desfolhada, talvez morta. Ao contrário das dos meus colegas, que ganhavam as primeiras folhas primaveris. A minha não. Sim, estava morta. Eu passava todos os dias e parava, procurando um rebento, uma folha, alguma coisa que me dissesse que estava viva. Mas rebentos e folhas só no pau de apoio. Eu não tinha um pau de apoio seco e morto, como deve ser. Como tinham os meus colegas. Não. Eu tinha um pau de apoio cheio de vida. E uma árvore morta. Nem sempre passei ao lado do que realmente interessa, porém.

5.8.06

A agressão

[Rembrand - Leão deitado]

Mil novecentos e oitenta e um. A preto e branco. Pequena. Iluminava a sala sombria onde nos acotovelávamos. Tinha-a comprado pouco antes da nossa vinda para Olhão. Alívio no inferno. Único calor daquela casa. Esquecíamos quase tudo. Ou não. Entretenimento e companhia. Alívio. O terror da pequena casa escura e silenciosa. Estranha. Deitava-me cedo. Para adormecer enquanto a televisão ainda lançasse alguma luz débil sobre a noite. Algum ruído que abafasse a angústia do silêncio. Tinha medo daquele silêncio. Daquelas trevas. Um dia falarei disto.

Mil novecentos e oitenta e dois. Talvez fosse noite. Ou não. Já não sei. Eram dias negros. Uma noite sem fim. Naquele dia. Não. Naquela noite. Houve naquela noite um lampejo de alegria. Futebol na televisão. Coisa rara naqueles tempos. Sporting Benfica. Não nasci sportinguista, fiz-me. Naquela noite já era. Naquela noite tornei-me definitivamente. Não por o Sporting ter ganho três a um e ter praticamente assegurado o título. Não foi por isso. Senti-me sportinguista a sério quando vibrei quase às lágrimas com cada um dos golos do Sporting. Três golos. Todos marcados pelo Jordão. Foi aquela alegria que me disse que a partir daquele dia eu era um sportinguista a sério. Jogo célebre, aquele. A agressão do Bento ao Manuel Fernandes. Ou ao Jordão. Já não me lembro. Mas lembro-me da expulsão e do golo de penálti. E da mãe a acordar do seu torpor e a perguntar então quem ganhou. E de nós, a minha irmã e eu, gritarmos de alegria que foi o Sporting. E de a mãe suspirar um ora bolas. E de lhe ver o olhar ainda mais triste. Como se tivesse levado outra bofetada.

4.8.06

Faz favorrr

[Capa do primero volume d'As Farpas]

Batia-se a porta. Parece-me que não havia campainha. Sim, batia-se à porta. Depois apareciam umas barbas louras. Faz favorrr. Alemão, de certeza. Cerrrteza. Não sei por que razão lhe saía sempre aquele faz favorrr interrogativo. Já sabia ao que vinha. Deixei de responder. Dava-lhe os bons dias e entrava. A luz era pouca. Apertado. Per angusta ad augusta. Isto sou eu a pensar agora, não tem nada que ver com a história. Já não sei se esta névoa é o pó que se acumula em nuvens espessas quebradas por feixes de luz fraca. Ou então é a minha memória a falhar. Já foi há tanto tempo. Subia umas escadas rodeadas de estantes embutidas nas paredes. Às vezes começava logo ali a minha demanda. Não sei o que queria exactamente. Talvez não procurasse nada em concreto. O cheiro dos livros. Do pó de décadas. Séculos. Talvez isso. Visitava regularmente o velho alemão do Bairro Alto. Às vezes levava um livro. Mas só depois de acesa batalha verbal. Tem cerrrteza de que não encontrrra nas livrrrarrrias? Uma tarde quase chorei para que me vendesse uma primeira edição do primeiro volume d'As Farpas. Não lhe vendo, pode encontrrrarrr edições moderrrnas melhorrres do que esta numa livrrrarrria. Não sei se entendeu o meu desespero. Desesperrro. Não sei se lhe consegui explicar que o meu interesse não era apenas no conteúdo. Que o que procurava era exactamente a edição original. Ter nas mãos aquele mesmo pequenino volume manuseado pelos contemporâneos do Eça e do Ortigão. Olhava-me apiedado e abanava a cabeça. Duzentos e cinquenta escudos, é o meu prrreço mínimo, mas eu se fosse a si comprrava uma edição moderrrna. Por pouco não lhe caí aos pés. Dei-lhe os duzentos e cinquenta escudos. Mãos a tremer. Depois fugi rapidamente do velho alemão. Com medo de que se arrependesse da venda. Desci a Calçada da Glória a correr. Só parei no comboio. Saltava-me o coração pela boca.

Uma destas noites cairam-me nas mãos, enquanto reorganizava a minha biblioteca. As Farrrpas.

3.8.06

O desodorizante

[Bosch - São Jerónimo rezando]

Há aqueles cheiros que nos trazem memórias sem nexo. Passou por mim uma destas noites. Um casal abraçado. Cheiro. Não sei se dele se dela. Não interessa. Veio-me à memória aquele antigo aroma. Prateleiras escuras até ao tecto. Arrumar novos livros da minha cada vez maior biblioteca. Mil novecentos e noventa e dois. Ou um. Ou três. Há um rádio com dois leitores de cassette sempre sintonizado na Antena 2. Pilhas. Pilhas de cassettes de várias cores. Passava as noites agarrado ao rádio, a gravar. Música barroca de certeza. É ao que me cheira. Mas podia até ser clássica. Há música na minha memória. E há livros. Não uns livros quaisquer. Há um dicionário de latim dedicado ao ilustríssimo e excelentíssimo Sebastião José Carvalho Melo, Marquês de Pombal. Naqueles tempos percorria os alfarrabistas do Bairro Alto, Chiado, Trindade. Por algumas centenas de escudos levava para casa livros sem valor material. Tantas selectas latinas dos séculos XVII e XVIII. E edições oitocentistas do Eça e do Herculano. Um dia achei uma segunda edição d'As Cidades e as Serras. Tinha pertencido a um inglês. Páginas repletas de palavras sublinhadas com a tradução inglesa em cima. Tantos achados. Arrumava-os ciosamente nas prateleiras escuras. O meu tesouro. Infância e adolescência. Guardei-os quase todos. Juntava-lhes os primeiros livros da incipiente idade adulta. Uns velhos catados de alfarrabistas. Outros respigados da livraria da faculdade. Mas eram as selectas setecentistas que tinham aquele cheiro. Não. Talvez houvesse no meu velho quarto aquele cheiro. Talvez eu próprio cheirasse assim. A alfarrabista e a música barroca. Ao meu velho quarto iluminado pelo Sol poente. Subiam-me o nariz aquelas memórias com quinze anos. Abrandei o passo. Era um desodorizante barato. Daqueles de spray. Talvez fosse dele. Ou dela. Tanto faz.

31.7.06

Serenidade

[Gerrit Dou - Velha regando plantas]

A maior parte da vida passei-a entre a angústia e o sobressalto. Procurando a serenidade. Ansioso. E então escrevo. E quando a encontro não mais consigo escrever. E tanta serenidade me traz a escrita. Agora parece que a conquistei. Não definitivamente. Às vezes gostava de a perder por uns momentos, só para voltar a escrever. Perdê-la e no instante seguinte recuperá-la. Só para conseguir escrever meia dúzia de linhas que me satisfizessem.

29.7.06

Falhado

[Jacob de Il Gheyn - Quatro estudos de rãs]

Livros nunca escrevi. Suponho que esporádicas publicações científicas e literárias em revistas e jornais não contem. Tem de ser mesmo um livro. Com o meu nome na capa. Não sei se algum dia o farei. Duvido. Não tenho vocação para textos longos. Prefiro as frases curtas. Concisas. Destinado às colaborações esporádicas e a este e outros blogues.

Filhos nunca os tive. Agora podia acrescentar o previsível "que eu saiba". Mas não. Não tenho mesmo. De certeza absoluta. Nem quero ter. Deus me livre, diria, se fosse crente. Não é que não goste de crianças. Gosto. Caladinhas ou longe de mim. Ou maiores de dezoito. Muitas coisas falharam na constituição do meu património genético, esta é uma delas. Não tenho nem sequer vestígios de instinto paternal. Nada. São-me indiferentes. Pequenas bolas de carne hiantes. Por vezes mordem. Não, obrigado. Respeito muito quem gosta delas, porém.

Árvores já as plantei. Ou melhor, plantei uma. Lembro-me dessa manhã. Primavera chuvosa. O cheiro a pedra molhada. Doces dias. Enfiava os botins de borracha e corria até à escola, chapinhando nas poças de água. Ainda havia campo ao pé de casa. Por isso talvez não fosse cheiro a pedra molhada. Terra. Era a aula de hortofloricultura. Havia disciplinas com nomes destes, dantes. Escolhera-a porque vivia na terra. Encharcado na lama. Para desespero da mãe. Saltavam répteis e batráquios dos meus bolsos. Uma vez uma cobra deixou um cheiro forte numa camisa. Nunca mais saiu. Mas naquele dia não havia cobras. Nem rãs. Naquele dia havia aula prática.

Mais tarde contarei o que aconteceu. Agora não me apetece. Já vai longo este texto. Demasiado.

24.7.06

O sofá

[Fragonard - Aula de música]

Estava quase na hora. Pegava num bom livro. Tinha de ser bom. Mas não demasiado bom. Não me podia absorver em demasia. A escolha era por isso difícil. Um Eça, por exemplo, estava fora de questão. Demasiado bom. Olhava desencorajado as prateleiras onde se empilhavam tantos livros que nunca teria tempo de ler. Alguns demasiado bons. Acabava muitas vezes por escolher uma enciclopédia. Ou um livro de arte. Algum que pudesse folhear indolente pela noite dentro. Com prazer. Mas não em demasia. Ou um policial. Qualquer coisa. Só não podia ser demasiado bom. Raramente o mesmo livro passava de uma noite para a outra. Ao contrário dos livros mesmo bons, que me acompanhavam durante dias sem fim. Às vezes semanas. Não, estes não podiam ser tão bons. Tinham de ser interessantes. Mas não em demasia. Não fosse ficar demasiado absorvido pela leitura. Acabava por escolher quase aleatoriamente. Tanto tempo. Tanta hesitação. Para nada. Às vezes levava dois ou três, para ir folheando, para ir lendo com sossego e sem demasiada atenção. Sentava-me no sofá castanho ao lado da aparelhagem, procurava os auscultadores, sintonizava na Antena 2. Música na Madrugada. Começava à uma da manhã, se bem me lembro. Havia sempre uma voz feminina, não demasiado doce, que declinava monótona as obras a ouvir até o dia raiar. Dava pulos o meu coração quando reconhecia algum nome barroco. Não tinha nunca grandes esperanças de ouvir nomes renascentistas. Nem medievais. A Antena 2 nunca foi muito amiga da música antiga. Os barrocos já me deixavam perfeitamente satisfeito, porém. Um J. S. Bach, um Haendel, um Vivaldi, um Couperin, um Charpentier. Às vezes havia um Monteverdi. Anotava numa folha de papel a hora prevista para as obras que mais me interessavam e lançava-me sobre o livro. Auscultadores ligados. Ouvia mais do que lia. É que não estava ali para ler. Isso fazia durante o dia. Queria ouvir música. E sentia aquela necessidade inexplicável de me fazer acompanhar de um livro. Não demasiado bom, claro. Não fosse absorver-me em demasia, não fosse distrair-me da música.

22.7.06

As mãos

[Ânfora ateniense do século V a.C.]

As luzes não se apagavam na enfermaria. Era difícil dormir. Os gemidos dos outros. Sempre aquela dor indefinida na cabeça. E a incerteza do que me ia acontecer. Às vezes adormecia. Um sono leve. Breve. Logo se me abriam de novo os olhos. À minha volta imagens difusas. Como se dentro de uma sauna. Mas sem o calor. Permanecia num estado que não era nem de vigília nem de sono. Vencido pelo cansaço. Não o suficiente para um sono profundo. Então senti que me acariciavam. Havia uma mão. Ou duas. Por cima do lençol. Não havia dúvida. Acariciavam-me. Primeiro pensei que estava a sonhar. Mas despertei e a mão continuava ali. Levantei a cabeça para ver quem era. Uma bata branca desfocada fugiu rapidamente do meu olhar. Deixei cair de novo a cabeça sobre a almofada. Tinham-me acariciado. Agora tudo era nítido. Acordara de vez. Com os olhos semicerrados tentava surpreender de novo a bata branca fugidia. Nunca ninguém me tinha acariciado daquela maneira. Um aperto no estômago mantinha-me acordado. Suava. Cheirava mal. Queria ir para casa. Maldita hora em que decidi esticar as pernas.

21.7.06

A angústia

[Bosch - Cristo carregando a cruz]

Disse-se que eu tinha morrido. Ou que estava moribundo, ligado a uma máquina. Inventaram-se os pormenores mais extraordinários sobre o meu acidente e sobre o meu estado. Vivo ainda ou já morto. Era essa a dúvida que pairava sobre a escola. E de repente eu ganhara o estatuto de assombração heróica. Foi sem capacete. Ele é dos duros. O grandalhão esquisito está entre a vida e a morte. Não, já morreu. Estão só à espera da autorização da família para desligar as máquinas. Ele até era fixe. O meu nome ecoava pelos corredores da escola. Ganhara o respeito de todos, estatuto que só se consegue quando se morre ou se está perto disso. E eu, para todos os efeitos, estava morto ou perto disso. Chegavam-me estas notícias da minha morte ao remanso do meu quarto, onde, por mera precaução, teria de permanecer uma ou duas semanas em repouso absoluto. Sem televisão. Sem música. Sem livros. As dores de cabeça eram intensas. Explicaram-me que eram os líquidos do cérebro ainda abalados pelo choque. Ou coisa parecida. A minha memória não é já a mesma. Por isso não sentia a falta de nenhuma daquelas coisas. Aborrecia-me de morte. Para me distrair imaginava o regresso à escola. Seria tudo tão diferente. Deixaria de ser um adolescente isolado. Passaria a ser apaparicado por toda a gente. Pedir-me-iam que contasse o acidente com todos os pormenores. Seria o centro das atenções. Conhecido por todos. Finalmente popular. Talvez até houvesse por fim raparigas interessadas em mim. Seria tudo tão diferente. Uma angústia invadia-me o coração. Maior do que a dor de cabeça. Enfiava-me debaixo dos lençóis. Fechava os olhos furiosamente e amaldiçoava o momento em que tinha decidido esticar as pernas montado numa mota sem capacete.

19.7.06

As pernas

[Terbrugghen - Rapaz tocando flauta]

Tinha as pernas demasiado grandes. Incomodavam-me. Já não sabia onde as meter. Mil novecentos e oitenta e sete. Encolhido. Agarrava-me a C., sem saber onde meter as pernas. Cócegas no estômago. Sabia que estava a fazer algo proibido. Ousadia. A primeira vez. E aquelas minhas pernas enormes a estragar tudo. Não sabia se as encolhia. Se as enrolava à volta das suas. Desconforto. Enorme desconforto. Quase tão grande como as minhas pernas. Suava de excitação. Talvez arfasse. Tão tolo, sem protecção. Não quisera desperdiçar aquela oportunidade. Entregara-me por completo. E agora o meu problema eram as pernas. Dormentes. Dolentes. De bom grado as teria deitado fora. Sentia-me a cair. Uma tremenda vertigem. Será que é sempre assim. Não. Tinha de me agarrar a C. com mais ardor. E depois estiquei as malditas pernas.

Abri os olhos e já estava em pé. Todo eu doía. Sobretudo a cara do lado direito. E a cabeça. A cabeça. Como me doía a cabeça. Tão tolo, sem protecção. Procurei C. com o olhar. Mal conseguia mexer o pescoço. Levei a mão à testa e retirei-a vermelha de sangue. O lado direito da cara ardia-me tanto. Devo tê-la arrastado pelo alcatrão. Sabia-me a alcatrão. Tinha o lábio rasgado. Não sei como caí. Nem como me levantei. Abri os olhos e já estava em pé. Onde estás, C.? Ali está. Parou a mota e correu na minha direcção. Caíste pá. Estás bem? Dizia-o com os olhos, não com a boca. Não respondi. Não sei se era capaz de falar. Aquela dor de cabeça. Ia morrer. Olhávamo-nos mudos. Assustados. Talvez me tenha posto a mão no ombro. Tão tolo, sem protecção. No dia seguinte acordaria com a cara inchada. Com uma dor de cabeça insuportável. Ficaria várias horas em observação no hospital. Seria transferido para Lisboa. Ficaria internado em observação. Passaria semanas com aquela dor insuportável na cabeça. Pensaria que morria. Mas agora apenas tentava perceber o que me acontecera. Levava a mão à cara ardente e olhava C. nos olhos. Não sei durante quanto tempo. Se calhar nenhum. Mas pareceram horas.

Rapaz de brinco de arame

[Bruegel - A queda dos anjos rebeldes]

Era uma daquelas alturas do ano em que recebemos prendas. Não sei se foi quando fiz quinze anos. Se foi no Natal desse ano. Sei que me perguntou a mãe que prenda queria eu. Já tinha a resposta há muito preparada. Aliás, já há muito me passeava pela cidade com orgulhosas argolas de arame apertadas na orelha esquerda, que retirava cautelosamente enquanto subia as escadas de casa. Parecia mesmo furado. Mas não. E no entanto era um escândalo. E eu adorava escândalo. Hoje, quando os rapazes exibem grossos brilhantes em ambas as orelhas, parecerá ridículo. Em meados dos anos oitenta, na província portuguesa, era um escândalo tremendo. Uma ousadia, uma afronta às regras da sociedade. E eu, como qualquer adolescente, passava os dias a inventar novas maneiras de afrontar a sociedade. Essa entidade então abominada, mas que hoje não consigo sequer identificar. Naquela idade era tudo tão mais fácil. Havia a sociedade opressora e chata. E havia eu. Desafiador. Adolescente. Recusava-me a vestir roupas normais. Tinham de ser esquisitas. De preferência negras. Depois valia tudo. Botas militares. Calças rotas. Penteados bizarros. Tudo o que pudesse chocar. E usava argolas de arame na orelha esquerda. Era eu mesmo quem as fazia, enrolando arame num marcador. Com uma tesoura forte cortava-as, e ia variando o número a cada dia. Não tivera, no entanto, a audácia de as usar na orelha direita. No rígido código indumentário dos anos oitenta usar brincos na orelha direita implicava homossexualidade assumida. Coisa que na altura não me apetecia nada fazer. Rebelde dentro de limites estreitos. Mas agora dava o passo mais difícil. Deitar fora as argolas de arame. Furar de facto a orelha. Definitivo. Não mais poderia arrancar os brincos a subir as escadas. Não ouviria mais condescendentes "ah, não são brincos a sério, não está furado". Não. Agora queria mesmo furar. Usar brincos a sério. Era, repito, um passo arriscado, na província portuguesa de meados dos anos oitenta. Já sabia o que me esperava. Já tinha diariamente uma pequena amostra, na escola. Já não seria apenas o grandalhão esquisito de ar deprimido vestido de preto com cabelo cheio de gel (outra novidade na época). Passaria a ser o grandalhão esquisito dos brincos. Com todas as conotações que isso tinha na província portuguesa dos anos oitenta. Ganharia fama de maricas. Talvez até de drogado. Perderia quase todos os poucos amigos. Seria um pária na escola, admirado por uma minoria, gozado e excluído por quase todos. Os pais dos amigos sobreviventes proibi-los-iam de se dar comigo. Acabaria só. Pensava nisto todos os dias, enquanto subia as escadas de casa e tirava os brincos de arame. Imaginava-me sozinho. Vestido de negro. Com brincos a sério na orelha esquerda. Expulso de todo o lado. Isolado. Portanto, quando a mãe me perguntou que prenda queria eu, não hesitei. Quero furar a orelha.

17.7.06

O rapaz do sorriso

[Caravaggio - São João Baptista]

Ginga rua acima sorriso aberto. É quase um riso. Um sorriso a perder o sub. De que se ri. Ninguém sabe. Nem ele. Saberá, afinal ninguém se ri de nada. Não. Juro que não sabe. Não olha para ninguém, avança decidido. De vez em quando leva o cigarro aos lábios semperssorridentes. Abana a cabeça expele o fumo. Abana a cabeça chupa o cigarro. Sempre a sorrir. Sempre a rir. Nunca o vi de outra maneira. Todos os dias. Há anos. Pode lá ser. Juro. Todo ele ri. Os olhos. A boca. Os caracóis. É sorriso sentido. Mas não sabe do que ri. Não sabe por que sorri. Como sabes que não sabe. Porque ninguém sorri se não está feliz. E ninguém está feliz todos os dias. Lá vai ele gingando. O rapaz do sorriso. Que se ri não sabe de quê.

Ei-lo

[Bosch - Estudo de animais]

Ei-lo. Estava à minha espera. À espera de um deslize. De uma fraqueza. E no entanto era previsível... Podia ter-lhe fugido. Senti-lhe o cheiro gorduroso. Pensei que lhe escapava. Que já não me podia fazer mal. Mas ele sabia. Sikhr. Ei-lo. Demasiado poderoso para ser vencido. E eu imprudente. Ouvi-lhe os gemidos. Não podia ser. Já o tinha vencido. Não. Achava-me seguro. Caminhava na escuridão e senti-lhe o fedor. Suave fedor. Olhos frios cravados em mim. É ele. Sinto um arrepio horrendo. Já sei. Não preciso de olhar. Já sei. Ei-lo. Enorme. Salta-me de novo ao caminho. Não preciso de virar a cara. Já sei que está ali. Outra vez. Agora maior. Pronto para me devorar. Sikhr.

15.7.06

Et si uolueris attendere magna pars uitae elabitur male agentibus maxima nihil agentibus tota uita aliud agentibus

[Nicolaes Maes - Anciã]

Não me viu. Nariz vulturino apontado para um grosso livro de capa azul. Segurava-o afastado dos olhos. O livro, não o nariz. Inclinada reverentemente. Como se uma relíquia. Ou um livro sagrado. Mais severa do que o habitual. De vez em quando assentia com a cabeça. Lentamente. Com aquele velho ar aristocrático que tanto me fascinava. Os lábios apertados, exangues. Pronta a beijar as páginas amareladas. Anciã tão sábia. Sento-me no banco em frente. Não deu por mim. Nem eu me atrevo a despertá-la. Completamente absorvida. Uma travagem mais apertada, e desvia o olhar. Oh, está aí, não tinha dado por si. Ouça isto. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente (*). Espantoso nao é? Voltou a mergulhar o livro dos olhos e esqueceu-se de novo de mim. Não. De vez em quando virava os olhos na minha direcção e sorria cúmplice.



(*) Séneca, Epistulae morales ad Lucilium, 1. Tradução de J. A. Segurado e Campos (edição da Gulbenkian), de quem tive a honra e o prazer de ter sido aluno.

12.7.06

Perdu



Longtemps, je me suis couché trop tard. Je lisais comme un fou. En portugais, en français, en espagnol, en anglais. Comme un fou. Je ne dormais pas, je lisais. Le lit, c'était pour continuer à lire. Pas pour dormire. Je lisais trop. Longtemps. Maintenant je suis fatigué. Je me couche et je ne lis que deux ou trois pages. Après je m'endors. Comme un enfant. Trop fatigué. Pourtant il m'appelle. Proust. Il faudra qu'il m'attende. Longtemps.

Iterum amentia

[Goya - Prisioneiro acorrentado]

Já não sei o que faço. Já não sei o que digo. O que escrevo, não sei. Não, não estou louco. Isso não. Sinto uma lucidez nova. Nítida. Sei que não estou louco. Tudo me parece agora tão claro. Primeiro sintoma da loucura.

8.7.06

Iterum noctua

Não faz barulho. Sombra branca cortando a noite. Parece que me olha. Que crava os olhos nos meus. Deliro. Não. Parou. Vira lentamente a cabeça. Cruzamos os olhares. Não sei durante quanto tempo. Não sei. Sinto que me devora por dentro. Quero fugir mas não consigo. Em vez disso corro na sua direcção. Desvia o olhar e levanta voo. Sombra branca fugitiva. Corro atrás dela. Arfante. Não me vais escapar. Há quanto tempo estou a correr? Há quanto tempo te persigo? Gato e rato. Coruja e rato. De novo paras. Outra vez me miras. Gelada. Estou quase a apanhar-te. São os teus guinchos que tenho ouvido. Que me têm avivado as noites. Que lhes quebram o silêncio opressor. Sombra branca silenciosa. Cola-se-me a camisola ao corpo. Suo. Coração descompassado. Só quero chegar ao pé dela. Tocar-lhe. Sinto o peso das gotas de suor abrindo caminho na minha testa. Estou quase. Abrando a corrida. Está ali. No ramo mais baixo. Lança-me um último olhar vítreo. Uma brisa abana os ramos. Parece hesitar. Desvia o olhar. Não fujas. Parece que me ouviu o pensamento. Abre as asas e voa em silêncio. Fora do meu alcance. Eu fico ali. Parado. Encantado. Olhos presos nas estrelas.

6.7.06

Iterum antiquus amor

[Baciccio - São João Baptista]

a C.

Julgava que tudo era passado. Apenas uma memória. Doce memória. E eis que de novo me sai ao caminho. Inesperada. Matéria viva. Tangível. Não pensei que me saltasse tão descontrolado o coração. Que se me entaramelasse de novo a língua. Tanto tempo. Tanto. Será possível? Não é. Talvez seja melhor assim.

3.7.06

Não vi

[Parmigianino - Estudo]

Houve aquela madrugada em que te beijaram. E eu quase morri. Não me lembro de quem foi. Aliás, eu não vi. Talvez tivesse ido buscar uma bebida naquele momento. Foste tu que me contaste. Viste a lata do gajo, beijou-me! Não sei se soubeste o quanto me doeu. Naquela madrugada o regresso a casa não foi como era costume. Não havia em mim a habitual alegria pacífica de ter estado contigo. De te ter sentido o calor do corpo. O teu hálito. A paz felicíssima. Tudo isso me fora roubado por aquele beijo. Chorava por dentro. Por dentro. Por fora a esfinge de sempre. Falavas-me eu eu não te respondia. Não estava zangado, como pensaste. Estava vazio. Inerte. Não sabia o que fazer. Mal te ouvia. Um beijo, imagina tu!, um beijo!, nos lábios, assim de fugida, mas foi um beijo! Desesperado. Não sei o que sentia. Ciúmes? Não. Alimentava a fantasia de que me amavas como eu te amava. Imaginava que só eu te poderia ter, que não te darias a mais homem nenhum no mundo. E tu parecias dizer-mo todos os dias. Sem palavras. Na maneira como me olhavas. No teu sorriso. No carinho que me dispensavas. Nos ciúmes. Ou então não. Ou então era eu que via o que não era, à força de tanto desejar. De tanto te desejar. Tantas vezes sentados lado a lado muito juntinhos. E eu com vontade de te beijar. Mas não. Deixava-me ficar. Bastava-me a tua companhia. Foi assim que percebi que te amava. Quando estar contigo se tornou mais importante do que ter-te. Um beijo, vê lá tu. Eu via. E doía. Tanto, tanto. Rias-te com um brilho diferente nos olhos. Preferia que não mo tivesses contado. Alguém tivera a coragem de fazer aquilo que tanto me martirizava. E que eu tanto queria. E tu rias-te. Como seria, se tivesse sido eu a beijar-te? Rir-te-ias? A dúvida devorava-me. Olhava-te e não sabia o que te ler nos olhos. Beija-me, parvo, já viste que não me importo. Não, isto era eu a sonhar. Nos teus olhos apenas a habitual traquinice. Beijou-me, o tipo, vê lá tu! Mas eu não via nada. Não percebia a tua voz. Parecia-me gozona. Ou fascinada. Ou talvez... Não sei. Tinha medo. Caixa de Pandora entreaberta. Roía-me as entranhas. Até então mantivera-me numa confortável inacção. Amava-te em segredo e tu sabia-lo. Não ousava avançar, com medo de te perder. Sentia que nunca te teria. Era impossível. Sonhava que me amavas mas que nunca terias força para dar o passo decisivo. Nem eu a tinha. Estava, ainda assim, satisfeito. Não te teria nunca, mas não fazia mal. Bastava-me a tua presença. A tua companhia. Satisfazia-me aquele namoro espiritual não confessado. Porque achava que era o máximo que me poderias dar. Mas não. Agora tudo parecia mudar. Talvez estivesse enganado. Talvez tivesse constuído o meu sonho sobre fundações que se esboroavam. Alguém se me tinha antecipado. Alguém dera o passo decisivo. E esse alguém não era eu. E eu não tinha coragem nem forças. Podia ter avançado. Tentar ser feliz. Contigo. Podia ser o homem mais feliz do mundo. Mas tive medo. Acobardei-me. Não sabia se tu querias ser feliz dessa nova maneira. Não sabia se eu queria ser feliz dessa nova maneira. Talvez preferisse a felicidade cómoda em que me banhara até então. Ou não. Ensandecia. Invadia-me a tentação. Mas também o medo. Medo de tentar. Não conseguia perceber o que me dizia o teu olhar. Já viste que é possível, não desistas de mim. Isto era eu a sonhar. Na verdade nunca percebi o teu olhar. Naquela madrugada quase morri, e tu não deste por isso. Viste-me o gajo, a beijar-me? Não, não vi. Posso dormir em tua casa? Podes, claro.

1.7.06

Cem

[Rembrandt - Leão]

Foi há cem anos. Podíamos ter feito batota, como outros, e teríamos comemorado os cem anos em dois mil e dois. Mas não. Comemoramos na data certa. Dois mil e seis.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. É provável que não. Tenho uma ideia muito vaga de ter sido do Belenenses, e há poucos meses descobri uma fotografia de mil novecentos e setenta e quatro, em que, ao colo da mãe, seguro na mão uma bandeira do Benfica. Não tinha ainda três anos, não tinha vontade, não tinha livre arbítrio. Só isso pode justificar semelhante opróbio. O sorriso da mãe é efusivo. Não sei se foi antes se depois do jogo. Era um Sporting - Benfica. O Benfica parece que ganhou, mas o Sporting foi campeão, e é isso que interessa. O meu ar desconsolado reconforta-me. Sentir-me-ia incomodado com aquela bandeira na mão, certamente ali posta pela mãe. Eu devo ter chorado, devo ter feito birra. Espero que assim tenha sido. Não quero perguntar à mãe se assim foi. Já me bastou o choque de ter visto aquela fotografia.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Não devo ter sido. Gostava de ver futebol. Queria ir ver um jogo ao estádio. Pedi ao meu pai que me levasse. Ele disse que sim, que me levava, mas só se eu fosse do seu clube. Eu não sabia qual era o clube do meu pai. Não sabia quase nada do meu pai. Nem hoje, três décadas depois. Corri para a minha mãe, perguntei-lhe qual era o clube dele. Respondeu-me com desprezo, como se lhe apontasse um defeito. Eu corri para o meu pai. Sou do Sporting. Levas-me à bola, agora? Prometeste! Não levou. Nunca.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Possivelmente não. Mas um dia fui ao velho Estádio de Alvalade. Não com o meu pai, mas num passeio da escola. Mil novecentos e oitenta, provavelmente, ou mil novecentos e oitenta e um. O Sporting tinha sido campeão naquele ano. Lembro-me de quase nada. Escadarias que então me pareciam enormes. Não era dia de jogo. Passearam-nos pelo Estádio. Naquele dia treinavam as estrelas do atletismo. Olha o Carlos Lopes! Havia também jogadores da equipa de futebol, que nos autografavam "posters" e cadernos. Eu tinha um "poster" da equipa campeã, cheio de autógrafos. Perdi-o.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Talvez não. Mas houve aquele jogo, em mil novecentos e oitenta e dois, contra o Benfica. Ganhámos. O Bento foi expulso, depois de agredir um jogador nosso. Não tenho a certeza do resultado. Três a um, talvez. Exultávamos, a minha irmã e eu. A mãe abatida. Não lhe bastava o pesadelo que vivíamos, migrados em Olhão. Agora o seu Benfica perdia, e os dois filhos mais velhos pulavam de alegria. Fomos campeões. Depois veio o longo, longo interregno.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Mas tornei-me sportinguista desde muito cedo. Porquê? Não sei. Talvez para o meu pai me levar à bola. Não levou. Talvez por ter sido hipnotizado pelas listas verdes. Não sei. Mas tornei-me sportinguista. Ferrenho. Fanático. Quase verti lágrimas de alegria no dia catorze de Maio de dois mil, quando o Sporting voltou a ser campeão, tantos anos depois daquela noite em Olhão, tantos anos depois daqueles nossos pulos de alegria infantil. Nunca deixei de ser sportinguista, apesar dos sucessivos insucessos. Entusiasmei-me com aqueles inícios fulgurantes, nos campeonatos dos anos oitenta e noventa. Angustiei-me com os famigerados natais. Chorei com as derrotas. Aguentei a chacota dos colegas de escola benfiquistas, durante anos. Nunca esmoreceu o meu sportinguismo. Pelo contrário, crescia a cada ano. Quase chorei naquela dia catorze de Maio de dois mil. Pensei que morria de emoção. Pensei que morria e não via o meu Sporting campeão, que não via a recepção apoteótica aos jogadores. Mas não morri.

Não sei o que me fez sportinguista. Mas sei que o sou. Tremendamente. Intensamente. Loucamente.

28.6.06

Música

[Rembrandt - Tito lendo]

à memória do Rui

Três anos quatro meses e dezanove dias depois da tua morte consegui ouvir a música que me deixaste. Não deixei de te sofrer. Não amainou a dor. Não deixaste de estar nos meus pensamentos. Não. Estás mais presente do que nunca. Agora sim. Ainda há dias se me enchia o coração de angústia quando te recordava. Via-te morto. O teu corpo coberto pelo lençol. Apertava-se-me a garganta. Morria eu de saudades. De vontade de te ter aqui de novo. Engolia lágrimas desesperadas. Não sei o que aconteceu entretanto. Alguma coisa mudou. Agora vejo-te vivo. Ouço o teu riso. O piscar de olhos malando. Estás aqui ao meu lado. Não, não acredito na vida depois da morte. Mas a verdade é que estás aqui. Ou eu estou aí. Agora sinto-te presente. Vivo. Talvez por isso tenha conseguido finalmente ouvir a música que me deixaste.

25.6.06

Partida

[Murillo - São João Baptista]

a J.

O pior eram as partidas. Acompanhavas-me ao terminal de autocarros. Quase sempre em silêncio. Nunca fui homem de chorar. Talvez quando era criança. Mas nunca em adulto. Ou quase nunca. E agora era aquele aperto na garganta. Não conseguia falar. Balbuciava. Prendia o choro. Sentia-o pronto a rebentar. Tinha de me calar. Olhava-te e tu indiferente. Para que é isso, estás assim porquê? Eu virava a cara. Não compreendias. Não era culpa tua. Se calhar nunca te devia ter saído ao caminho. Devia ter-te deixado em paz. Na tua vidinha. Não sei. Não conseguia aproveitar aqueles raros momentos juntos. Estar contigo deveria ser um momento de felicidade. De plenitude. Mas não. Assim que te via assaltava-me a dúvida doentia. Será que nos veremos de novo. Fartar-se-á de mim. Vai chatear-se comigo. Arranjará outro. Deixar-me. Será que já arranjou outro e não me quer dizer. A dúvida devorava-me a felicidade de te ver. Estar contigo era um tormento quase tão grande como não estar. Porque te adorava desmesuradamente. Arrojava-me aos teus pés. Vivia no terror de que me deixasses. Media as palavras. Os gestos. Cada minuto contigo era um suplício. O terror de fazer ou dizer algo que me fizesse perder-te. Interpretava cada silêncio teu como sintoma de ruptura inevitável. Enlouquecia.

O pior eram as partidas. Perscrutava a tua face à procura de zanga. De enfado. E se te descobrisse enfado. A zanga ainda se podia resolver. O enfado não. Roía-me uma angústia indizível. Devorava-me lentamente. Aos bocados. E tu não compreendias. É tão duro separar-me de ti, só tenho vontade de chorar. És um exagerado. Não acreditavas na minha paixão. Achava-la excessiva. Achavas que não te amava. Por isso não compreendias a minha angústia. Nem os meus soluços contidos. Nem o nó na minha garganta. Olhavas repetidamente para o relógio, enquanto esperávamos o autocarro que me havia de levar para casa. Eram facas cravadas no meu peito. Em silêncio passava em revista todos os minutos que havíamos passado juntos. Procurava algo que tivesse dito ou feito. Ou que não tivesse dito nem feito. Algo que justificasse a tua indiferença. O teu enfado. Sentia-me morrer. Depois chegava o autocarro. Despedias-te rapidamente e voltavas para casa. Eu mordia os lábios para conter o choro. Via-te desaparecer ao longe, ainda antes de o autocarro partir. E depois era aquela hora de viagem. Revivendo cada momento. Cada palavra. Cada gesto. Enfiado num turbilhão de angústia e desespero. Não. Nunca te amei. Aquilo não era amar. Não, nunca te amei. Mas na altura não o sabia. E quase morria. Morria de amor.

24.6.06

Puluis et umbra sumus

[Bosch - A floresta que ouve e o campo que vê]

à memória do Rui

Depois íamos sair. Não importava para onde. Podia ser o bar do quarteirão vizinho. Desse gostávamos muito. Não sei porquê. Era um café com pouca luz e muito fumo. E tinha "shots". E copos de "shot". Lembras-te. Cheguei a ter uma bela colecção. Num deles amareleceu durante anos a flor de papel que me fizeste. Já contei isto. Mas foi tão importante. É tão importante. Revivo estes momentos diariamente. Se calhar não devia expor a nossa amizade desta forma. Há quem ande por aqui e nos leia. E me leia. Monólogo. Tu não falas. Não respondes. Não podes fazê-lo. Às vezes gostava de ter fé. De acreditar na vida depois da morte. Mas não. Céptico empedernido. Ainda assim vou falando contigo. Não tens de falar. Não tens de me responder. A tua memória basta-me. A tua saudade. Imensa. Por isso falo contigo e não me importo que me leiam. É em ti que penso nos momentos de maior solidão. É em ti que penso nos momentos de maior desespero. Fazes-me falta.

21.6.06

Tigre!

[Münch - Mulher vampiro]

Nunca lhe soube o nome. Nem quem era. Via-a na noite. Ao longe. Olhava-me fixamente. Desafiadora. Poderosa. Eu desviava o olhar. Agarrava-me ao cigarro. Aflito. Quem és tu. Enchia a sala. Não precisava de a ver para saber que estava ali. Sentia-a. Um abraço sufocante. Depois varria a sala com o olhar. Até a encontrar. Sempre ao longe. Cravando os olhos em mim. Não a queria ver. Queria apenas ter a certeza de que estava ali. Saber onde estava. Para me esconder.

Que vibração era aquela. O meu coração. A música. Não sei. Dançava. Nunca gostei de dançar. Mas ali no meio da multidão era difícil ser visto. Fugia-lhe. De que tinha medo. Não sei. Sei. Sei. Às vezes sentia um aperto. Um roçar sôfrego. Era ela. Nem sempre a pista de dança era um lugar seguro. Fugia. Enfiava-me na casa de banho. Uma vez quando abri a porta para sair estava ela à minha espera. Muda. Gelei. Hesitei uns momentos e fugi. Seguiu-me com o olhar enquanto eu me escondia no meio da multidão. Não se mexeu. Para quê. Era com os olhos que me agarrava.

Uma noite atacou. Não lhe tinha sentido a presença. Ou melhor, só a senti quando já estava sentada ao meu lado. Não sei o que terá feito para se esconder. A verdade é que não dei por ela. Olhava-me sorridente. Agora parecia humana. Alívio. Desta vez não tinha medo. Não se apresentou. Simplesmente começou a falar comigo. Como se nos conhecêssemos desde sempre. Trocámos bebidas. Fumámos cigarros. Enfiados no sofá. Ela aproximava-se perigosamente. Sentia-lhe o hálito alcoólico. Excitante. Já sei do que tinha medo. Agora queria fugir. Mas não conseguia. Não era capaz. Tomava-me um pânico desesperado. Fico doido com um hálito com um suave travo a álcool. Não me consigo controlar. Ela sabia-o. De certeza. Lançava-se sobre mim. Bafejava-me. Felina. Lugar comum. Mas ela era felina. E eu desisti. Ébrio. Entreguei-me. Não me controlo. Língua com língua. Um desespero ardente. Apertava-a contra mim. Com violência. Percorria-lhe o corpo palpitante. Quem és tu, o que queres de mim. És lindo sabias. Não não sabia até tu apareceres. Há tanto tempo que te desejava. E eu fugia de ti. Eu sei, és um tolo.

Vimo-nos mais algumas vezes. Sempre à noite. Fora-se o medo. Agora olhava-a como a todas as minhas vítimas. Desprezo. Sugara-lhe a alma. Deitava fora as sobras. Não me compadecia do seu olhar desesperado. Fugia. Mas agora por repulsa. Obtivera o que queria. Ou o que achava que queria. E ela olhava-me implorante. E eu fugia. Não queria mais. Uma noite chegara. Adeus. Continuava à procura da plenitude. Viria a senti-la pouco tempo depois, numa noite no Frágil. Mas naquelas noites não a tinha ainda encontrado. Tigre que mata a presa e não a come porque não é aquilo que procura. Tentou mesmo dar-me o número de telefone. Recusei delicadamente. Não sei se chorou. As luzes da discoteca cegam-me. Não era aquilo que eu procurava. Nunca lhe soube o nome. Nem quem era.