26.12.05

Calmaria

[Jan van de Capelle - Calmaria]

Liberdade


Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A praia

[Caspar David Friedrich, 1809 - Monge junto ao mar]

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A ilha

[Richard Parkes Bonington, 1826 - No Adriático]

Acho que já contei isto. Havia um barco que nos fazia passar para a praia de areia fina, na ilha. A viagem era curta. Meia hora, talvez. Não tirávamos os olhos da água. Barbatanas dorsais de pequenos tubarões acompanhavam o barco. A água era escassa e transparente, víamos perfeitamente o fundo. Um dia a maré baixou tanto que ficámos presos nos bancos de areia, talvez a meio caminho. Tivemos de esperar que voltasse a encher. A praia nesse dia foi mais curta, mas a viagem foi muito mais excitante. Não, ainda não tinha contado isto.

24.12.05

Noite de Natal

[Ostade - Taberna de aldeia com quatro figuras]

Na noite de Natal a minha irmã e eu jantávamos, abríamos as prendas, telefonávamos a uma amiga, e íamos, a partir das dez horas da noite, para um bar, beber copos. Nunca fomos natalícios. Eu sou ateu, a minha irmã não me consta que seja crente (tem graça, sei que ela é do Sporting, mas não sei se acredita em deuses). Assim passávamos a parte mais substancial da noite de Natal, a beber copos, a rir, entre gente a quem, como a nós, o Natal não dizia grande coisa. Agora ela mora longe, tem a sua própria família. Provavelmente bebe copos e ri com o marido. Eu envelheci, amoleci. Não sou ainda natalício, mas já não me custa tanto.

23.12.05

O calor

[Karl Blechen, 1829 - Gruta no Golfo de Nápoles]

O Verão tarda. Não é só do calor que tenho saudades. O que queria era sentar-me de novo a ver o mar, confortável, quente. Terei de esperar mais uns meses. Até lá, vou lendo Sophia.


Mar

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.


Sophia de Mello Breyner Andresen

O frio

[Karl Blechen, 1833 - Passagem alpina no inverno com monges]

Já não passo sem o aquecedor. Não era assim, quando era miúdo. Lembro-me de passar um Inverno inteiro sem vestir um casaco, de me bastar uma boa camisola de lã. Agora o frio é mais intenso. Ou assim me parece. Se calhar não está mais frio. Se calhar sou eu que penso que está. Mas a verdade é que já não passo sem o aquecedor.

17.12.05

Sebastianus

[El Greco - São Sebastião]

Ainda assim continuo. Já não interessa, mas ainda assim continuo. Já devia ter parado, já devia ter percebido. Ainda assim...

10.12.05

Sísifo

[El Greco - Soplón]

Não era surpresa. Contei com isto desde o primeiro momento. Ainda assim, mantenho sempre a chama acesa. Não arrisco, e ainda bem. Não atinjo a felicidade, mas também não sofro. Anos de desilusão criaram crosta dura, difícil de quebrar. Arrisco pouco. Não, não arrisco nada. Já não me desiludo. Espero, fico sempre à espera, sem desesperar. Um dia parece que vai acontecer. Alimento a ilusão, parece que chego lá perto. Estou quase. Saboreio já os doces frutos. Mas logo desaparecem mal me afloram os lábios. Tântalo! Um aperto breve no estômago, e recomeçar, tudo de novo. Uma, duas, três vezes. E mais outra. E outra. Procurar, esperar. Afinal não me posso queixar, eu decidi assim. Podia ser tudo tão mais fácil. Prefiro manter-me no meu mundo de ilusão. Irreal. Esta chama, apesar de tudo, não se apaga. Espero, fico sempre à espera. Sem desesperar.

2.12.05

Não sei


[Caravaggio - São João Baptista]

Não quero mais. Não estou preparado para isto de novo. Já penei demasiado, ao longo dos anos. Agora, que me achava livre, liberto de tudo. Agora regressa. Não estou preparado para isto de novo. Ou então estou. Se calhar já passou tempo suficiente, talvez agora esteja pronto. Ou não. Se calhar não estou preparado para isto de novo. Não sei.

Partem tão tristes, os meus olhos


[Leonardo da Vinci - Cabeça de rapariga]

Cãtygua sua partindosse

Senhora partem tã tristes
meus olhos por vos meu bẽ
que nũca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguem.

Tam tristes tam saudosos
tam doentes da partyda
tam canssados tã chorosos
da morte mays desejosos
çem myl vezes que da vida.
partem tam tristes os tristes
tam fora de desperar bem
que nunca tam trystes vistes
outros nenhũs por ninguem.

Joam Rroiz de Castellbranco

30.11.05

Que nenhuma estrela queime o teu perfil


[Leonardo da Vinci - La Scapigliata]

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Não, não é cansaço


[Turner, 1845 - Norham Castle, Sunrise
]

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...


Álvaro de Campos

1.11.05

Iris



[Albrech Dürer, c. 1503 - Iris]

De novo. Devia lutar contra. Mas não quero. É torturante, mas ao mesmo tempo agradável. Não leva a nada. Não me interessa.

29.10.05

Chuva

[Albrecht Dürer, 1503 - Tufo de erva]

Volta a chuva. O cheiro da pedra molhada, os dias frescos. Os passeios pelo campo em tempo de Outono. Comprávamos botins de borracha, que fazíamos questão de baptizar chapinhando nas poças de lama. Às vezes, á tarde, íamos aos Cucos. Com que prazer corríamos pela erva húmida, saltando para ouvir a terra molhada chiar e borbulhar debaixo dos nossos pés. Passávamos a mão pelas ervas encharcadas, e corríamos, corríamos sempre.

31.8.05

Pescadores


[Hendrick Avercamp - Paisagem fluvial]

Estava a passar uns dias no Baleal com uns amigos. Naquela noite tínhamos decidido não dormir. Depois de algumas horas em casa, a ouvir música, fartámo-nos, e decidimos ir até Peniche. Naqueles anos 80 não havia praticamente vida nocturna, em Peniche. Assim fomos para o porto de pesca, ver chegar os barcos. Ali nos deixámos ficar horas, sentados no molhe, a ver chegar e partir os barcos de pesca. Entusiasmados, implorámos a vários pescadores que nos levassem com eles para o alto mar. Todos recusaram, alguns argumentando que o mar estava muito agitado e que não se responsabilizavam por um bando de adolescentes com vontade de experiências novas.

30.8.05

Barco à vela



[Arkhip Kuindji - Mar com barco à vela]

Íamos para a praia de barco. Tínhamos ido viver para o Algarve, mas por azar naquela cidade não havia praia. Assim, apanhávamos o barco, e íamos para a ilha. O caminho era curto, as águas tão baixas que em dias de maré viva baixa o barco encalhava, e tínhamos de esperar que voltasse a encher. Quando as coisas corriam bem, o barco sulcava as águas baixas, cortadas pelas barbatanas dorsais dos cações, pequenos tubarões inofensivos. O barco era feio, chato, largo. Quando espreitava para baixo, para as águas cheias de peixe, pensava que bom seria entrar num barco à vela, e sulcar aquelas águas frescas. O barco deixáva-nos do lado interior da ilha - do lado da cidade. Às vezes atravessávamos a ilha, e íamos ver as praias do outro lado, as praias oceânicas. E era então mais forte o meu desejo por um barco à vela. Eram dias cheios.

29.8.05

As ondas


[Turner, 1833 - Quillebeuf na foz do Sena]

O mar já está no Inverno. As ondas estão violentas, cinzentas e espumosas. Em terra o Verão continua, mas em fase decadente.

21.8.05

Война и мир


[Vassili Tropinin, 1815 - Retrato do Príncipe Bagration]

Já devia ter lido este livro há muitos anos, mas a minha convicção em preferir sempre traduções directas do original obrigou-me a esperar estes anos todos. Agora vou lendo, poucochinho por dia, saboreando cada palavra desta obra belíssima, com medo de que acabe. Há livros que, quando os acabamos, nos fazem ficar com saudades das personagens, dos lugares, das situações. Que nos deixam um vazio, durante dias, às vezes semanas. Desconfio de que este será um desses. Ganhei o hábito de ler à noite, na cama. Ando a deitar-me cada vez mais cedo, com vontade de pegar nele e ler. Sempre com medo de que acabe. Guerra e Paz, de Lev Tolstói.

15.8.05

O rio


[Turner, 1835-1840 - Paisagem com rio e baía]

Sinto-me muito perto do pânico, quando estou demasiado longe do mar, quando o calor é muito. O calor do interior espanhol é próximo do insuportável. Salamanca parecia então um enorme forno a céu aberto. Do pequeno terraço da pensão podia ver o céu sufocantemente azul. Quente. Demasiado quente. O silêncio opressivo do calor. Os sons são abafados por este intenso silêncio, parecem sair de um recipiente fechado. Os edifícios ocres parecem fumegar. Nas ruas pouco mais se ouve do que o silêncio escaldante e abafado. Há um rio nas margens de Salamanca, atravessado por uma velha ponte romana. É o rio Tormes, que desde logo me cativou pelas ressonâncias queirosianas do nome. No dia anterior já havíamos atravessado a ponte. A vista era magnífica, com a velha Salamanca erguendo-se maravilhosa. Mas hoje o que nos preocupava era a vista de baixo: as margens arenosas e convidativas do Tormes. Descemos por uma encosta, e fomos dar a uma pequena praia fluvial, rodeada de mato denso. O cenário era espantoso. Havia arbustos e árvores de médio porte, que nos forneciam a desejada sombra. Deitámo-nos na areia grossa, apanhando o Sol que agora já nos parecia convidativo. Quando o calor era excessivo, chapinhávamos nas águas mornas do Tormes, por entre peixes e lagostins. Ou refugiávamo-nos na sombra da vegetação. E ali nos deixámos ficar toda a tarde, quase sempre sem falar, esmagados pelo silêncio estival, apenas quebrado pelo monótono ciciar dos insectos e pelo rumorejar das águas mornas do Tormes.

9.8.05

As cegonhas


[Albrecht Dürer, 1515 - Cegonha]

O Sol inclemente queimava, assava-nos vivos. Vínhamos fugidos de Madrid, onde os termómetros subiam acima dos 45 graus. Ali, em Salamanca, estava um pouco mais fresco. Mas apenas um pouco. Refugiámo-nos na pensão que acabáramos de contratar, depois de uma primeira noite numa espelunca que só com muito boa vontade podia merecer o nome de "pensão", em plena Plaza Mayor. Esta nova pensão tinha o convidativo nome de "Lisboa". Era asseada e acolhedora. O meu quarto tinha um extra surpreendente: situado no último andar, aquilo que de início me pareceu ser a porta de acesso a uma varanda era na verdade o acesso a um terraço bastante grande, com vista para a parte velha da cidade - a Plaza Mayor ficava a poucas dezenas de metros. Ainda me sentei lá fora, debaixo do chapéu-de-sol, durante uns minutos. O calor era, porém, insuportável, e não sentia condições para me manter muito mais tempo ali, a admirar a bela cidade ocre. Voltei para dentro, e deitei-me, pronto para uma retemperadora (assim o esperava) "siesta". Não tardei a adormecer, ainda atordoado por uma noite mal dormida na espelunca da Plaza Mayor, onde não conseguira descansar de uma esgotante viagem de comboio desde Madrid. No entanto, passado algum tempo fui despertado por um barulho que na altura me pareceu de castanholas. Achei estranho. Era verdade que estava em Espanha, mas... Não precisei de ir para o terraço, bastou-me espreitar pela janela para perceber de onde vinha: numa torre sineira de uma igreja (ou assim me parecia, vista do quarto), um casal de cegonhas, que ali tinha feito o seu ninho, era o responsável pelo barulho, abrindo e fechando rapidamente os bicos, numa espécie de dança. Até hoje é essa a imagem que me vem é mente, sempre que vejo cegonhas ou os seus ninhos.

3.8.05

A casa do lago


[Albrecht Dürer, c. 1496 - Casa no lago]

Gostava de ter uma casa no meio de um lago. Um lago cheio de vida, com peixes, rãs, tritões, cobras de água, tudo. De águas frescas, para poder mergulhar quando acordasse, nos dias de quentes Verão. Em cujas margens cheias de vegetação alta me pudesse sentar, a ouvir os ruídos dos insectos estivais, sentindo o calor intenso, com os pés mergulhados na água fresca.

2.8.05

A cigana


[Caravaggio, c. 1596 - Leitora da sorte]


Esperávamos pelo início de uma aula, ou talvez tivéssemos faltado. Passeávamos pelo Campo Grande, de braço dado, como habitualmente. Uma cigana fez-nos parar, para nos ler a sorte. A minha primeira reacção foi a habitual nestes casos: um "não" rosnado e um passo em frente. Mas tu achaste que era capaz de ter graça. Acedi, contrariado. A primeira vítima fui eu. A cigana perscrutou longamente as linhas da minha mão, e anunciou sentenciosa que o amor da minha vida era uma mulher morena de longos cabelos encaracolados. Olhei para ti, que rias abertamente, abanando os teus longos cabelos encaracolados, um sorriso travesso na cara morena, e não consegui evitar também eu uma gargalhada. A cigana deu-nos a ambos uma "noz da sorte", que foi dar sorte ao caixote do lixo mais próximo.

1.8.05

Bacche bene uenies


[Guido Reni, 1615-1620 - Baco]

Naquele primeiro ano de faculdade, em 1990, o Rui Vau chamava-me "plessiossauro" ("carinhosamente", dizia-me ele), o Miguel dizia que eu parecia um Baco - pelo aspecto físico, não pelos desvarios etílicos. Na altura achava mais simpático o "plessiossauro" do que o "Baco", eu que então cultivava uma imagem fria e distante. Há muito que abandonei a pose gélida, esfíngica, de então. O que não quer dizer que me tenha tornado dionisíaco.

24.7.05

Sam Simiom


[Caspar David Friedrich, 1809 - Monge junto ao mar]

Sedia-m' eu na ermida de Sam
Simiom
e cercarom-mi as ondas que grandes som
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Estando na ermida ant' o altar
cercarom-mi as ondas grandes do mar
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

E cercarom-mi as ondas que grandes som
nom ei i barqueiro nem remador
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

E cercarom-mi as ondas do alto mar
nom ei i barqueiro nem sei remar
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Nom ei i barqueiro nem remador
morrerei eu fremosa no mar maior
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Nom ei i barqueiro nem sei remar
morrerei eu fremosa no alto mar
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Meendinho (s. XIII)

21.7.05

A osga


Na minha antiga casa havia uma osga. Não era só uma, eram várias, filhas e netas umas das outras. Mas para mim todas elas eram uma só, aquela que vi ao longo dos anos a passear pelas paredes e tecto do meu quarto. Sempre gostei de répteis, de osgas sobretudo. Graças à minha osga nunca tive problemas com insectos no meu quarto: nem moscas, nem traças, nem mosquitos, nem melgas. A minha osga devorava tudo o que lhe passasse ao alcance da língua. Há dias regressei à minha antiga casa. Lá estava a minha osga, ainda consegui entrevê-la, correndo pelo tecto a esconder-se de mim. Não me reconheceu.


11.7.05

Litore quot conchae...


[J. J. N. A. Spalowsky, Prodromus in Systema Historicum Testaceorum, 1795 (tabula VIII)]

Percorrer a beira-mar a apanhar conchas e seixos rolados pelas ondas. Não há para mim maior prazer balnear do que esse. Por isso não gosto de praias sem rochas e com muita gente. Quando era pequeno às vezes encontrava grandes búzios. Diziam-me que os pusesse ao ouvido, para ouvir o mar. Nunca mais encontrei grandes búzios na praia.

10.7.05

8.7.05

Aue maris stella


[Antonello da Messina - Virgem da Anunciação]

Um dia fomos a Fátima. Não para rezar. Eu não sou cristão, tu creio que também não eras. Não me lembro de alguma vez termos falado de religião. Mas fomos a Fátima, por alturas de um 13 de Maio. Para tirar fotografias. Pedimos uma autorização especial para podermos estar na zona da imprensa, na procissão das velas. Lembras-te? Eu fiquei registado como teu ajudante. Mas antes estivemos em Coimbra. Tínhamos ido com muita antecedência, e aproveitámos para passear. Encontrámo-nos com umas amigas em Coimbra, e passámos uma noite atribulada, entre bebedeiras e sobressaltos.

No dia seguinte regressámos a Fátima. Era Maio, e aproximava-se a procissão das velas. Comprámos dezenas de velas. Lembras-te? Éramos doidos por velas. Levámos vários sacos cheios delas. Depois andámos a passear no santuário, à procura de boas fotografias. Fiquei chocado com aquela religiosidade excessiva, com aquelas mulheres (eram quase só mulheres) com ar sofrido, percorrendo de joelhos o recinto. Com aquela devoção pagã, os ex voto deitados em enormes fornos. Regressámos a Torres Vedras nesse dia.

Alguns dias mais tarde, na noite da procissão das velas, regressámos, com os teus pais. Eles ficaram num restaurante, e nós fomos para o recinto do santuário, com as nossas credenciais ao pescoão. Foi uma noite que não hei-de esquecer. Apesar de ser ateu, fiquei profundamente impressionado com toda aquela religiosidade. Vista de dentro, da escadaria da basílica, a que tínhamos acesso graças às credenciais, mais impressionante ainda se tornava. Fizeste nessa noite fotografias extraordinárias. Mas a imagem que me ficou foi a daquela senhora com lágrimas escorrendo cara abaixo, alegria extática no sorriso, acompanhando com o olhar o andor onde seguia a imagem da Senhora de Fátima.

Tenho muitas saudades tuas.

3.7.05

Parua Noctua


[Albrecht Dürer, Coruja]

Em miúdo a minha casa estava cheia de pequenos animais, como tive já a oportunidade de contar. Nunca tive os animais que era normal os miúdos terem, porém. Para horror da generalidade dos meus amigos - e sobretudo das minhas amigas - em minha casa havia animais de todo o género:

- rãs, muitas rãs e girinos.

- tartarugas, o que na altura era uma relativa novidade.

- tritões, coloridos e bizarros tritões que causavam sempre o maior espanto entre as visitas. Por causa das suas cores, a generalidade das pessoas achava-os "queridos".

- licranços, curiosos répteis que parecem representar um estádio intermédio entre a cobra e o lagarto, e que me exigiam uma enorme agilidade para os apanhar, pois deslizam velocíssimos por entre a erva. O truque consistia em saltar com as mãos em concha em direcção à relva que restolhava com a passagem dos ágeis bichos.

- cobras de água, que passeava dentro do bolso das camisas, apenas com a cabeça de fora, para horror dos transeuntes com quem me cruzava.

- lagartixas, difíceis de apanhar, e portanto um troféu sempre apetecido. O truque mais popular era fazer um laço com nó corredio a partir de ervas compridas, e passá-lo cuidadosamente pela cabeça das lagartixas: quando elas se mexiam, o laço fechava-se, e já estava.

- hamsters, que na altura não tinham a popularidade de hoje, e provocavam sempre gritinhos nas amigas a quem os mostrava sem pré-aviso. Cometi o erro de juntar um casal, e fui premiado com ninhadas mensais, até me conseguir desfazer de todos e resolver assim o problema.

Dos animais mais comuns apenas tive duas cadelas, a quem nunca me afeiçoei, peixes, a quem nunca liguei demasiado, e pássaros.

Mas nunca tive uma coruja nem um mocho nem um morcego, animais que sempre me seduziram. Nocturnos, misteriosos. Difíceis de manter, animais que dificilmente resistiriam às mãos e à falta de cuidado de um miúdo curioso que se deitava depois de jantar. Hoje seria mais fácil. Eu próprio me tornei um animal nocturno.

Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος


[Gerrit Dou, c. 1630 - Velha lendo a Bíblia]

Nesta Páscoa comprei a novíssima tradução da Ilíada, do Frederico Lourenço. Não é necessário repetir aqui os merecidos e generosos elogios que esta tradução tem recebido. O trabalho do Frederico não precisa de mais louvores. O nome dele ficará na história dos estudos clássicos portugueses, não tenho quaisquer dúvidas sobre isso. Tem feito mais pela divulgação dos estudos clássicos com a mediatização do seu excelente trabalho do que mil colóquios e congressos feitos à maneira tradicional. Já lho disse, e repito-o aqui. Mas não é da enorme qualidade da sua Ilíada que quero falar.

A tradução do Frederico é volumosa, encadernada com capa dura, vermelha de sangue, brilhante. No dia em que a comprei decidi regressar a casa de comboio, o que não fazia há anos. A viagem é mais longa do que se feita de autocarro, mas muito mais cómoda e agradável. Assim, sentei-me numa carruagem quase vazia, recostei-me no banco confortável, e passei aquela hora de viagem a ler o Canto I da Ilíada, deslumbrado. Notei, porém, que uma senhora de alguma idade, no banco do lado, me olhava demoradamente, com um sorriso aprovador. Na minha ingenuidade achei que talvez fosse alguma classicista que tinha reconhecido em mim um companheiro. Havia, com efeito, um certo ar cúmplice na forma como me olhava. Quando o comboio chegou a Torres Vedras, saí, e apressei-me a abandonar a plataforma. Mas uma voz fraca reteve-me. Olhei para trás: era a senhora de idade, com um sorriso enorme nos lábios. Apontou para a Ilíada, que eu apertava contra o corpo, e perguntou, com ar afirmativo: "Vai muito bem acompanhado! É a Bíblia, não é?" Fiquei tão estupefacto que só consegui responder "Bom, é uma bíblia, realmente, mas não é aquela em que está a pensar". O sorriso franco depressa se transformou num esgar de surpresa, e de novo num sorriso, agora de confusão. Virei-me e apressei o passo, entre as gargalhadas incontidas da minha mãe e a confusão da senhora de idade. Depois arrependi-me de ter sido tão brusco, mas em situações inesperadas reajo sempre desta forma.

2.7.05

et finita est pugna in die illo porro rex Israhel stabat in curru suo contra Syros usque ad uesperam et mortuus est occidente sole


[Albrecht Dürer, Estudo de mãos com a Bíblia]


Já fui cristão, agora não sou nada. Mas tenho um grande fascínio pela Bíblia. Tenho várias em casa: uma tradução portuguesa dita "dos Capuchinhos"; duas edições da Vulgata Latina; uma Septuaginta (ainda que o meu grego esteja muito esquecido); várias edições do Novo Testamento. Portanto hoje não podia faltar à "Bíblia Manuscrita", em Torres Vedras. Calhou-me o segundo livro das Crónicas, 18:34-19:1.

Hic sunt leones



Há 99 anos atrás nascia o Sporting Clube de Portugal. Não sei por que sou do Sporting. Tenho uma ideia vaga de um dia ter pedido ao meu pai para me levar à bola. De ele me ter dito "só se fores do meu clube". De lhe ter perguntado qual era o clube, e de me ter sido respondido "não posso dizer, se não é batota". De ter corrido para a minha mãe e lhe ter perguntado "qual era o clube do pai". De me ter agarrado às pernas dele a gritar "sou do Sporting". Eu devia ter 6 ou 7 anos. Mas só mais de 20 anos depois é que consegui ir ver o primeiro jogo do Sporting em Alvalade. O meu pai nunca me levou, apesar de eu ter acertado na sua preferência clubística (para desgosto da minha mãe, benfiquista ferrenha). A desilusão pela quebra da promessa paterna foi grande, mas nunca deixei de ser sportinguista. Não deixei nunca de vibrar com cada vitória, nem de suspirar em cada derrota. Penei durante o longo interregno dos anos 80 e 90, sonhando em cada início de época e abanando a cabeça de desilusão de cada vez que a esperança se desfazia. Senti uma alegria indescritível quando se quebrou o jejum, em Maio de 2000, tão grande que nem tive forças para sair à rua a festejar. Fiquei em casa, profundamente emocionado. Achei que ia chorar, mas não chorei. Não consigo chorar quando me emociono profundamente.


26.6.05

Vox clamantis in deserto II


[Caravaggio, 1603-1604 - São João Baptista]

Naqueles dias eu achava que a sensualidade não existia. Que podia passar o resto da vida casto. Que a beleza física podia ser apreciada de forma exclusivamente intelectual. Que amor sem carne era possível e desejável. Naqueles dias eu era muito novo.

Antiquus amor


[Caravaggio, 1608 - Cupido dormindo]

Não há amor como o primeiro, diz o povo. Não foste o meu primeiro amor, foste talvez o segundo. Mas foste o mais duradouro. Durante anos pensei em ti, sem esperança. Saíamos à noite. Íamos a sítios de que não eu gostava particularmente. Mas ansiava por que chegasse a noite para poder ir para esses sítios de que não gostava. Tu também ias: íamos os dois, e por isso eu queria ir a esses sítios de que não gostava, desejava-o até, ardentemente. Também tu o sentias, mas não o demonstravas, ou então eu não o percebi. Durante meses (anos?) a fio jogámos este jogo. Nenhum de nós tinha coragem de dar o primeiro passo. E assim nos torturámos durante tanto tempo. Foi preciso vir uma terceira pessoa dar o empurrão, fazer de moderna alcoviteira. Lembras-te? Depois aconteceu o que sempre acontece. O tempo passou, a paixão esmoreceu. Fartaste-te de mim. Eu era um miúdo. Tinha quê, 20 anos? Imaturo, inconstante. Tu tinhas só uns poucos anos a mais, mas era o suficiente. Quantos anos passaram? Nunca deixei de gostar de ti, dou-me conta disso enquanto escrevo. Hoje cruzámo-nos. Não te via há pelo menos dez anos. Não soube o que fazer. Não parei, estava com pressa. Que estupidez. Pressa? Pressa de quê? Ter-me-ás visto? Ter-me-ás reconhecido? Tenho saudades tuas.

21.6.05

ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ





[Ulisses cegando Polifemo - fragmento de cerâmica. Argos, século VII a.C.]

Teria uns 10 anos no máximo. Dedicava-me a um dos meus passatempos preferidos: enfiar-me na nossa despensa, e vasculhá-la. A nossa despensa não tinha produtos alimentares. Era antes uma pequena divisão, entre a cozinha e a casa de jantar, onde a minha mãe guardava livros que já não cabiam em mais lado nenhum, roupas, objectos diversos que não tinham já préstimo ou lugar onde serem arrumados... Eu adorava vasculhar essa autêntica mina de coisas velhas e surpreendentes. Todos os dias descobria alguma coisa excitante. Naquele dia descobri uma "Odisseia contada aos mais novos", de João de Barros. Se não era assim o título, era parecido. Já lá vão muitos anos. Na capa um gigante de um só olho - eu não sabia quem era Polifemo. Sentei-me em cima de alguma coisa, provavelmente um monte de roupa dobrada, e deixei-me ali ficar, horas seguidas, a devorar as aventuras de Ulisses e companheiros, comovido com a fidelidade de Penélope, cujo verdadeiro significado não conseguia entender na inocência da minha infância. Impressionou-me sobretudo o episódio de Polifemo. Sonhei, durante anos, com o gigante de um só olho, devorando os companheiros de Ulisses. Com o tronco afiado e endurecido no fogo com que o filho de Laertes cegou o ciclope. Com Ulisses e os companheiros sobreviventes saindo da caverna de Polifemo agarrados às barrigas dos carneiros do gigante. Com os urros de dor do ciclope. E sobretudo com o ardiloso estratagema de Ulisses, que à perguntas "como te chamas" respondeu "Ninguém". Muito me impressionei, na inocência da minha infância, com a astúcia de Ulisses. E como achei parvo o Polifemo, que, quando os outros ciclopes lhe perguntavam quem o matava, respondia "Ninguém me mata". Tolo, não percebeste logo a artimanha?

Lembro-me de que perguntei à minha mãe que história era aquela, e de ela me dizer que era uma história da Grécia antiga. Naquele dia não decidi que ia estudar Clássicas, pois não sabia o que era um curso superior. Mas decidi que queria saber mais, muito mais sobre a Grécia antiga e sobre Ulisses.

Muitos anos mais tarde decidi aprender latim - não havia grego na minha escola. Apaixonei-me pela língua, e não descansei enquanto não consegui também aprender grego. Mas isto contarei noutro dia. Aos 18 anos entrei no curso de Línguas e Literaturas Clássicas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Senti um arrepio indizível, quando, já no 2º ano do curso, na cadeira de Grego II, traduzi na íntegra o Canto IX da Odisseia, precisamente onde se conta como Ulisses enganou Polifemo.

20.6.05

Otium sine litteris mors est et hominis uiui sepultura


[Giuseppe Maria crespi, 1725 - Estante de livros]

Se tivesse de escolher algo meu para salvar, se tivesse um dia de fugir de casa com as coisas que me são mais queridas... As coisas mais preciosas que tenho em minha casa são os meus livros. A minha biblioteca, construída ao longo dos últimos vinte e tal anos. Trato-a com carinho e veneração, como a um familiar já velho, que conhecemos desde sempre, que nos educou, que nos formou. Quem sou hoje está ali naquelas estantes. Livros que me ofereceu a minha mãe quando eu não tinha ainda idade para ter gostos literários, e que me moldaram como homem. Os livros que amigos me ofereceram. Os livros que eu mesmo escolhi e comprei, ou pedi à minha mãe que comprasse. Ali estão os exemplares sobreviventes de "Os cinco", que devorava quando era miúdo. O Eça, que li na íntegra durante a adolescência. O Umberto Eco, que venero, leio e releio desde que o descobri em 1990. O Joyce, difícil e fascinante. Tantos, e tantos ainda que me falta ler. Há quem ame o seu carro. Eu amo a minha biblioteca.

Quod uix contingit ueram uoluptatem parit


[Vermeer, 1657 - Rapariga lendo carta]

Quando ouvia os passos do carteiro a subir a escada precipitava-me para a porta. Em silêncio. Como se fosse fazer algo proibido, tinha medo de que ele me ouvisse. Aguardava que se abrisse a portinhola metálica por onde ele lançava as cartas. Era uma casa antiga, a nossa, não tinha caixa de correio - em vez disso, havia uma pequena abertura na porta da rua, pudicamente coberta por uma tampa metálica, que fazia um característico estalido quando, depois de por ela lançadas as cartas, se fechava. Lançava-me então, sempre no mais absoluto e inexplicável silêncio, para o molho de cartas e rebuscava freneticamente, à procura de alguma que me fosse destinada. Se havia alguma, recolhia-me no meu quarto, abria voluptuosamente o envelope, e saboreava durante o resto do dia o manuscrito que me tinha sido enviado. Há anos que não recebo cartas. Tenho saudades.

Quanto recebi o meu primeiro e-mail tive uma sensação parecida. Talvez mais voluptuosa ainda. Porque na altura usava um cliente de e-mail que não fazia previsão do texto: era obrigado a abrir de facto o ficheiro, para o poder ler. Assim foi enquanto tive poucos correspondentes. Hoje é com algum enfado que abro o Thunderbird, e selecciono os e-mails que realmente me apetece ler - e são cada vez menos.

Tenho saudades de receber e enviar correio manuscrito.

18.6.05

Stultifera Nauis


[Bosch - A nau dos loucos]


Há dias assim. Não sei aonde vou parar nesta vida. Por enquanto estou descansado, porém. Enquanto recear estar louco, não estou de facto louco.

O morcego


[Trophîme Bigot - Rapaz chamuscando as asas de um morcego]

Sempre tive animais de estimação, quando era miúdo. Cobras, lagartos, rãs, tritões, tartarugas, licranços, peixes, bichos da seda, piriquitos, pintassilgos, hamsters, porquinhos da Índia... Mas nunca tive um morcego. E gostava de ter tido um. Não para lhe chamuscar as asas com uma vela, mas para o ver, para o ter na minha mão. Acho que nunca o tive por ser difícil de manter. Bichos nocturnos, que precisam de voar e caçar o seu alimento. Hoje talvez já pudesse ter um. Vivo sozinho, e eu próprio me transformo lentamente em morcego humano - cada noite que passa me deito mais tarde. Poderíamos assim, eu e o meu morcego de estimação, viver um com o outro, partilhando horários e melancolia. Mas não as presas.

17.6.05

Vox clamantis in deserto I


[Andrea del Sarto, 1528 - São João Baptista]

Naqueles tempos eu queria viver isolado. Achava que podia estar sozinho. Que não precisava de ninguém. Que não tinha nem precisava de amigos. Que não precisava da família. Que eu próprio era tudo aquilo de que eu precisava. Naqueles tempos eu era muito novo.

16.6.05

Eu quero um árbitro só para mim

Todos os clubes com direcções em funções votaram a favor do sorteio dos árbitros, menos um... Qual terá sido? Qual é o clube qual é ele que jogou grande parte da Superliga 2004/2005 com a ajuda preciosa dos árbitros, nomeados e não sorteados? Resposta aqui:

"Benfica contra sorteio dos árbitros
16.06.2005 - 19h06 PUBLICO.PT


A direcção da liga de clubes aprovou ontem uma proposta que visa substituir a nomeação dos árbitros pelo seu sorteio e introduzir o recurso ao vídeo na observação do desempenho dos juízes e assistentes. De acordo com alguns títulos da imprensa desportiva de hoje, apenas o Benfica votou contra na reunião, tendo o Beira-Mar optado pela abstenção, pelo facto da sua direcção se encontrar demissionária."

15.6.05

O leite


[Vermeer, c. 1658]

Longtemps, j'ai bu du lait frais quand je me levais. Vivia então no Algarve, em Olhão, com a minha mãe e os meus irmãos. Foi há 23 anos, entre 1982 e 1983. Todas as manhãs, bem cedo, passava na nossa rua uma carroça puxada por um burro, cheia de bilhas de leite. Nós saíamos de casa a correr, entusiasmados pelo inédito da situação: provavelmente nunca tínhamos visto um burro a puxar uma carroça, na nossa ainda curta vida. E nem a rotina de um ano esgotou a excitação que sentíamos diariamente. A minha mãe vinha atrás, com uma grande cafeteira, onde o leiteiro vazava o líquido espumoso, acabado de sair das tetas das vacas da cooperativa. Voltávamos para casa atrás dela, esperávamos que fervesse o leite, e depois bebíamos com prazer. Nunca antes nos soube tão bem o leite. No Verão de 1983, acabadas as aulas, regressámos a Torres Vedras, onde a minha mãe ficou finalmente efectiva. O leite voltou a ser de pacote, comprado no supermercado. Não havia já, em Torres Vedras, carroças puxadas por burros, cheias de bilhas de leite vindo directamente da vaca.

12.6.05

Música Antiga


[Caravaggio,
c.1595 - Músicos]

Até ao início da década de 90 só ouvia coisas que é normal os adolescentes e jovens adultos ouvirem. Gostava de alguma música pop, e era louco pela emergente música techno, embora nunca tenha apreciado as coisas mais comerciais (não, não são sinónimos). Sempre tive, no entanto, curiosidade pela chamada música clássica, muito por influência da minha mãe, que em casa sempre a ouviu.

A viragem deu-se em 1991, com a comemoração dos 200 anos da morte de Mozart. Nessa ocasião houve uma série de eventos musicais, por todo o mundo. Portugal não foi exepção, nem Torres Vedras. Houve nesse ano uma apresentação do famoso Requiem, na igreja do Turcifal (arredores de Torres Vedras). Não sei já se a interpretação foi boa, na altura eu não entendia nada do assunto - mesmo hoje entendo pouco. Lembro-me apenas de que adorei, de que saí daquela igreja extasiado e definitivamente apaixonado pela música clássica, com quem já namoriscava inconsequentemente há anos.

Com o tempo, passei a sintonizar em exclusivo a Antena 2, e a ouvir os poucos CD's que havia em casa - eram invenção relativamente recente e cara. Mas não ouvia qualquer coisa. Desde sempre fui mais sensível a uns tipos de música, menos a outros. Autores como Verdi ou Puccini deixam-me bastante indiferente. Beethoven agrada-me, mas não excessivamente. De Mozart sim, posso dizer que gosto bastante. Mas quem me fazia (e faz) vibrar não era nem Mozart nem Beethoven. Quem me fazia arrepiar e sonhar eram J. S. Bach, Vivaldi, Händel... Descobri então que estava apaixonado pelos barrocos, que era o baixo contínuo que me eriçava os pêlos de todo o corpo. Nessa altura gastava o pouco dinheiro que tinha em cassetes, para gravar tudo o que cheirasse a barroco na Antena 2. Lembro-me de ficar em êxtase com uma missa de requiem que mais tarde descobri ser de Zelenka. Tinha definitivamente trocado o hip-hop (na altura chamava-se rap...) e o techno pela música barroca.

Mas estava mais uma pequena revolução para acontecer. Há muito que era fascinado pela Idade Média. Por isso, era sempre com expectativa que ouvia as raríssimas composições medievais que passavam na Antena 2. Comprei então o meu primeiro CD: "Cantigas de Santa Maria", pela Schola Cantorum Basiliensis. Isto deve ter sido em 1992, e ainda hoje, 13 anos depois, ouço esse CD. Na gravação participava a Montserrat Figueras.

Em 1993 fui à inspecção militar. Tinha pedido sucessivos adiamentos, para concluir o curso, e agora que estava no último ano, lá ia eu. Foi em Coimbra. Sempre fui um pacifista, nunca tive qualquer simpatia pela instituição militar. Lembro-me de que ia com algum receio. Tirei os brincos todos (na altura não era tão comum como hoje), e levei A República de Platão para ler durante a viagem. O que se passou nesses dois dias (sim, durava dois dias) ficará para outra ocasião. No final do segundo dia lá me fui embora. Tinha ainda algumas horas antes de apanhar o comboio de volta para casa, e fui dar uma volta pela baixa de Coimbra, com dois rapazes que tinha conhecido. Entrámos numa loja de discos, e fui à procura de música medieval. Mas enquanto fazia correr com os dedos as caixas de CD, dei com um que, não sei já porquê, me chamou a atenção. Era um CD de vilancetes e ensaladas, interpretado pelo Jordi Savall: Bartomeu Càrceres, Anonymes XVIe siècle: Villancicos & Ensaladas
(o nome na Amazon está errado, o correcto é este). Comprei-o, e nessa noite ouvi-o várias vezes. Tinha tomado contacto com a música profana renascentista, e estava como que bêbedo de música. À música barroca e medieval juntava agora a renascentista.

Descobri depois a música polifónica renascentista, sempre "pela mão" do grande Jordi Savall, embalado pela voz da Montserrat Figueras. Ao longo dos anos comprei mais de 300 CD's de Música Antiga, sobretudo de polifonia renascentista e barroco. A polifonia ainda é hoje a que mais me enche as medidas. Aquela orgia de vozes seguindo linhas melódicas diferentes... Se eu fosse crente diria que era divino, que era a expressão musical de deus. Como sou ateu, mais não posso dizer senão que é a sensualidade da carne transposta para a música. Tenho os meus preferidos: Tomás Luis de Victoria, Cristóbal de Morales, Francisco Guerrero.


Ainda haveria de descobrir mais coisas, mas isso ficará para outra ocasião.

Pedro Barbosa e Rui Jorge


Como sportinguista daqueles que só vêem a bola quando dá o Sporting, que não ligam a mínima à selecção porque a sua selecção é o Sporting, não posso deixar de ficar bastante desgostoso e preocupado com a saída do Rui Jorge e do Pedro Barbosa. É verdade que já não são novos, e que me faz sempre muita confusão ver pessoal da minha criação ainda a jogar (o Barbosa até é mais velho do que eu). Mas eram figuras importantes, e fazem falta ao clube. O Rui sempre foi um dos meus preferidos, por diversas razões. Já o admirava quando ainda jogava no herm... hum... huh... Porto (custou a dizer...), e passei a adorá-lo no Sporting. Sempre disponível, sempre bem disposto. O Pedro, bom, o Pedro é o capitão. Jogador genial, mesmo nesta fase descendente da sua carreira. Era importante que tivesse ficado, mesmo sem jogar.

O problema parece ter sido a oposição que pelo menos o Pedro Barbosa fez ao Peseiro. Lembro de ouvir umas bocas no início da época, de que o Pedro Barbosa liderava uma autêntica revolução no balneário. Nestas circunstâncias, a saída parece natural. Porém, eu se mandasse no Sporting, se tivesse de escolher entre históricos como o Rui Jorge e o Pedro Barbosa, e um estranho como Peseiro (ainda por cima lampião! Irra!), não hesitava. Até sou dos que acham que o Peseiro é um bom treinador. Mas não hesitava. Corria com ele e ficava com o Pedro e o Rui.

11.6.05

Leonardo da Vinci - La Gioconda


[Leonardo da Vinci - Mona Lisa (La Gioconda)]

Isto pode não parecer, mas é Jacques Chirac vestido de mulher. Leonardo da Vinci usou os conhecimentos que detinha por ter sido abduzido por extra-terrestres, e por eles ter sido repetidamente violado e instruído nos mais espantosos segredos do universo: criou uma máquina do tempo que se vê perfeitamente por detrás de Judas na Última Ceia, pediu uma audiência e esboçou o retrato do Chirac. Depois, regressando ao seu tempo, achou que ficava muito sem graça, e resolveu travesti-lo. No entanto se notarem bem o nariz e os lábios não enganam, é mesmo o Chirac.

Vou escrever um livro a expor esta teoria e vou ficar rico, rico, muito rico!

Albrecht Dürer - Auto-retrato


[Albrecht D�rer, 1500 - Auto-retrato com 28 anos]

Dürer não é o meu pintor preferido. Não figuraria sequer num "top 10", se me pedissem que fizesse um. Não é que não goste dele, pelo contrário, mas quando me pedem que cite nomes de pintores o nome dele não me surge. Este auto-retrato, todavia, é uma das minhas obras preferidas, de entre toda a produção plástica ocidental. Se eu tivesse tempo e dinheiro para comprar reproduções e com elas decorar as paredes da minha casa, este auto-retrato teria de constar na lista de compras. Não sou entendido no assunto, não me atrevo a fazer considerações sobre a qualidade da obra. Como leigo, a única coisa que me preocupa é o lado estético. Não me refiro naturalmente à possível beleza física do cavalheiro (não o acho especialmente bonito), mas sim ao conjunto. Fascina-me aquele olhar sereno, a boca inexpressiva, os cabelos longos, como uma juba majestática, o conjunto a um tempo sereno e confiante. Um homem na força da vida. Há força e serenidade neste quadro. Gostava de tê-lo na minha sala, ao lado do Retrato de jovem do Ghirlandaio.

10.6.05

Frederico Lourenço e Homero


Pátroclo e Aquiles
[informações sobre a imagem aqui]

Estive, no dia 8 de Junho, em Leiria, para a apresentação da "Ilíada" de Homero, traduzida pelo meu colega Frederico Lourenço. Do Frederico e do seu trabalho só posso dizer bem; sou portanto um mau crítico, e por isso mesmo me abstive de intervir na sessão. Não disse - mas digo-o agora - que achei demasiado modesta a sua alegação de que o êxito comercial se deve mais ao próprio texto do que às suas brilhantes traduções, e que qualquer tradução de Homero que saisse seria comentada, mediatizada, celebrada. Não é verdade. Uma tradução normal de Homero seria notícia quando fosse lançada, venderia algumas centenas de exemplares, e rapidamente cairia no esquecimento mediático. As traduções do Frederico não. As traduções do Frederico vendem que se fartam porque não são traduções "normais". O Frederico alia no seu trabalho duas características que não são fáceis de encontrar. O Frederico sabe grego como poucos, e como poucos domina a língua portuguesa. É que o Frederico não é só um dos mais brilhantes helenistas da actualidade. Ele é também um dos grandes escritores portugueses da nova geração. Leia-se qualquer um dos seus romances, e perceber-se-á grande parte do êxito da sua actividade de tradutor. Ao domínio da língua grega alia uma mestria literária invulgar.