31.3.07

Oceano

[Pormenor de painel de azulejos do Convento da Graça - Torres Vedras]

o utinam liceat collo complexa tenere
braciola et teneris oscula ferre labellis
CIL IV 5296

O sussurro que me embala. Madeira a estalar. Não pára. Pendular. Vai e vem. Às vezes parece que se parte. Mas não. Chapinha na água. Com preguiça. Não vejo nada. Só a madeira a ranger. Som cavo. Abafado. E o marulhar suave. O cheiro intenso a mar. E o silêncio da noite. Não há estrelas. Lua embaciada por nuvens espessas. E o raaaac raaaac da madeira a estalar devagarinho. Embarcar. Entregar-me. Não o vejo mas ele está ali. Imenso. Orla branca beijando com beijos de espuma lenta o pontão. Regularmente. Noite perfeita. O frescor oceânico afagando-me a pele arrepiada. Embarcar. Aos dezasseis anos não se vê o oceano. E ele está ali. Imenso.

E tu estás ali. Não te vejo. Mas sinto-te.


قلبي لك

Vou ficar a olhar o mar

[Kuindji - Mar com barco à vela]

Vou ficar a olhar o mar. Sentado como um buda. A procurar-te no horizonte. Ali mesmo junto às ondas. Estás a ver-me. Receber-lhes a espuma que também te tocou. O sal a escorrer na minha face. As mãos enterradas na areia morna. O doce arrepio da saudade. Não vou ficar triste. Vou sentir-te ao meu lado. E aquela alegria pacífica que só contigo conheci. A luz. Lembras-te da luz. Vou vê-la no mar. Sereno. Olhando para o teu regresso. Para te apertar de novo nos meus braços. Vou ficar a olhar o mar. Os olhos no horizonte. À espera de ti. De te ter ao meu lado. Para te dizer que.

قلبي لك

28.3.07

ego dormio et cor meum uigilat

[Leonardo da Vinci - Estudo de mãos]

Abraçar-te nos meus braços a vida toda. Dizer-te as palavras que me bailam na boca tímidas receosas de sair. Cor tibi offerre meum.

قلبي لك

26.3.07

Calmaria

[Capelle - Calmaria]

Vou serenando. Ainda mais. Aquela doce vaga que me envolveu. Submerso neste sal morno. Para a frente e para trás. Rebolando debilmente. Roçando com preguiça a areia do fundo. Sem respirar. Embalado pelas águas mornas. Não me falta o ar. Respiro a água e o sal. Aquela doce vaga que me submergiu neste sal morno. Toca-me o corpo. Como nunca nenhuma. A calmaria. Vejo-a cá de baixo. A superfície quieta. Mas tão. Só aquela corrente. Serena. Mas forte. Mais forte agora do que a doce vaga que primeiro me inundou.


قلبي لك

24.3.07

أحبك

[Dürer - Lago na floresta]

Percorre-me o corpo um arrepio. O vento gela-me a pele. Mas não tenho frio. Há ali um lago. Devia ouvir-lhe os murmúrios da água. Os passos das pessoas que passam. Os suspiros cúmplices dos amantes escondidos em recantos batidos pelo vento. O sussurro das folhas. O estalar dos ramos. Não ouço nada. Nem o Sol a desaparecer por detrás das copas das árvores. Nem este vento frio. Nem a cidade à nossa volta. Só a tua presença me importa. Já não tenho frio.


قلبي لك

21.3.07

20.3.07

Mare serenitatis

[Brooking - Navegando na calmaria]

É como a brisa morna na cara salgada. A areia quente aconchegando-me o corpo. Serenidade. Tanta. Tanto.

قلبي لك

18.3.07

Mare tranquilitatis

[Klimt - O beijo]

Há aqueles tempos em que o tempo é indefinido. Em que o dia não parece dia e a noite não parece noite. Em que o dia e a noite se misturam num momento único intenso e tão curto. Há aqueles tempos de tranquilidade. Há aqueles tempos em que. Há aqueles tempos em que não me saem as palavras pelos dedos. Porque há coisas que as palavras não conseguem dizer.

16.3.07

Κύριε καλόν ἐστιν ἡμᾶς ὧδε εἶναι

[Bril - Lago na floresta]

Domine bonum est nos hic esse
.
Mt 17, 4


É bom estarmos aqui. Sem medos. E depois há os teus olhos. E as tuas mãos. E perco-me. Sem pressa.

10.3.07

قلبي لك

[Caravaggio - São João Baptista]


Achava que um dia. Mas nunca pensei que. Assim tão de repente. Tanta luz.
قلبي لك

Acordar

[Klimt - Mulher com chapéu]

Mal começámos a conversar pediu-nos caneta e papel. Rabiscou a morada com vigor. Quando voltarem a Madrid ficam em minha casa. E ria-se. Não sei quantos anos teria. Talvez tantos quantos tenho agora. Ou menos. Eu tinha pouco mais de vinte. A velhice começava aos trinta. Portanto era velha. Saía em. Não me lembro. Uma cidade de fronteira. Daquelas pouco importantes. Alcântara de qualquer coisa. القنطرة. A ponte.

E nós ficámos sozinhos. E eu fiquei sozinho. E eu nunca tive tanto frio. Pensava que morria. Mas também nunca tinha visto a Via Láctea. Tanta luz. Tanto gelo. O toque toque das rodas nos carris. Aquele céu negro rasgado de luz. Dormente. Via o mundo a fugir. Tinha de me mexer. De aquecer. Dormência. E havia aquela luz. Tinha de acordar. Acordar.

8.3.07

O brilho

[Caravaggio - Cupido dormindo]

De novo se me ilumina o espírito com brilho novo e inesperado.

4.3.07

O silêncio

[Correggio - Ganimedes]

Lembras-te daquele dia. Daquele jantar. Daquele silêncio. Não gosto de falar. Jantar a dois. Já não me lembro porquê. Por acaso. Porque estávamos sozinhos. Porque não havia mais ninguém. Não me lembro. Mas havia aquele silêncio. Húmido. Agradável. Sentíamo-lo à nossa volta. Opressivo. Hipnótico. Não era aquele silêncio de quem não tem o que dizer. Era um silêncio cheio. Não de palavras. Cheio de amor. Acho. Não sei. Já não sei nada. Brincava com o garfo. Recortava figuras toscas na toalha de papel. E tu olhavas. Sempre aquele riso trocista. Silencioso. Onde estás. Preciso de ti agora. Quando aqui estás não penso.