16.1.08

Três portas . Vermelha


[Iluminura do século XIII: Livro do Conhecimento dos Engenhos Mecânicos, de al-Jazarî]

A porta vermelha abria para um jardim tremendo. Onde tigre lambia as patas lançando os olhos agudos para um lado e para o outro. Como se esperasse que alguém abrisse a porta. Para lhe partir o pescoço com uma patada. E as águas cantavam canções de amor e de morte. Vermelhas do sangue dos homens que por ali passaram. Ou reflexo das bagas derramando sombra rubra sobre elas. Ao fundo uma muralha negra de morte medonha cercava o jardim escondido dos olhos dos homens. De fora só as copas das amoreiras. De quem a casca o tigre rasgava à falta de presa melhor. Às vezes deitava-se aos pés da princesa. E fazia rom rom como um gato. Ou assim juram os que já não têm orelhas de tanto as roçarem no lado de fora do muro negro de morte.

Trigueira como as mais belas princesas das arábias. Os olhos pedrinhas negras daquelas que caem do céu nas noites sem Lua. E a boca rasgada carnuda como a tâmara da Líbia. Tão linda. Sentava-se como uma gata selvagem. Os olhos faíscas debaixo do véu. Nunca lhe viram os cabelos curtos esmagados em panos vermelhos. A mais bela mulher do deserto. Ou assim juram os que lhe deixaram a memória em folhas de palmeira. Porque agora os pés onde se aninha o tigre são pequenos ossos brancos polidos. E da cara só a caveira onde aqui e ali pedaços de pele seca resistem ao tempo.

Esta é a porta vermelha.

15.1.08

Kill the pain . XIII . Lonely

[Andrea del Sarto - Estudo para O Baptismo do Povo]

ain't it lonely out there?
(Cantado por Madonna e Massive Attack)


Eu subi e não havia nada. Nem luz nem trevas. Nem o velho de barbas negras. Depois aquele zumbido ensurdecedor. Como uma broca rasgando-me o cérebro. Sem dor. Porque ali não havia nada. Só a broca. Deve ser assim quando.

'Senhor'. Há alguém aqui. Quanto tempo quanto. Um dia dois. Trinta e. Os tijolos. E se for o tubarão. Si je vois un requin. Si vous voyez votre requin. E se aquilo que eu vi é. Não que eu tenha visto alguma coisa. Ali não havia nada. Nem luz nem trevas.

'Senhor'. Digo não digo chamo não chamo. Respondo não respondo. Há dias em que não sei que fazer. Que dizer. Se isto tudo acabasse. Mas acaba. Ai acaba. Só depende de mim. Afinal o que me falta. O nada. O tubarão. Mon requin. Chamá-lo.

'Senhor'. É ele. É o rato. O homúnculo. Não fui eu que o chamei. Foi ele é ele. Esta voz. Não. Sou eu. Louco. Consumatur. De que me serve o latim agora. Quando não dou por mim mesmo a chamar. Tinha de ser quando eu. Não não. Não estou pronto.

'Chamou?'
'Chamei. Acho. Não sei.'
'Chamou?'
'Era a minha voz e a minha boca. Mas eu não. Eu estava a sonhar. Não sei. Não vi ainda o meu tubarão nem. Nunca lhe aconteceu? Ouvir-se a si mesmo e pensar que é outra pessoa. Eu juro. Estava a dormir e havia uma rampa e uma escada. E depois eu subi. É incrível. Porque não parecia. Sabe.'
'Não sei. Repito: chamou?'

Que é isto. Chamei. Não chamei. Porque eu quero acabar com isto. Não sei. Se chamei. Se não. Se quero.

12.1.08

Silentium


وأدرك شهرزاد الصباح فسكتت عن الكلام المباح
في ألف ليلة وليلة

E a manhã surpreendeu Xahrazad, e ela calou então a sua história.
das Mil e Uma Noites

1.1.08

Explicit

[Turner - Chuva, Vapor e Velocidade]

Está frio e as pedras pesam-me em cima. Onde estou. E os olhos. Abertos ou. Negro e frio. Não sei se quero saber. Afinal. O que é isto. As mãos não as posso mexer. Em cada uma um peso gelado. Igual. Não mais uma do que a outra. Ainda que a esquerda tenha sempre sido mais forte. Mas agora. Que importa. E os braços. Esmagados. Porque lhes ouço os ossos a gemer contra a gravilha. Não doem. Aliás. Não doo. Só o frio. E o peso. Sem dor. No corpo. Na cabeça a de sempre. Onde estou. Os meus pés não estão aqui. Não me perguntes como. Mas eu sei. Não estão. É como se acabasse nos joelhos. Depois é o vazio. Já imaginaste o teu corpo depois dos pés. Não há. O teu corpo acaba ali. Depois não há nada. O meu acaba nos joelhos. Ou então. Nem o meu sexo. Agora não está. A quem interessa um sexo tão. E ainda que estivesse. Se não lhe chego com a mão. Para que serve um sexo se não se lhe chega com a mão. E há outras coisas notáveis. O meu peito não sobe e não desce. Mas há uma pedra que me vai entrando devagarinho. Sinto-a abrindo-me caminho por entre pulmões. E não dói. Está frio. E a pedra mais quente do que. Se não me sobe o peito nem. Então. Depois lembrei-me. Já sei onde estou. Acabou. Ou.