24.2.08

O pescador

[Avercamp - Pescadores ao luar]

وَيَقُولُ الْإِنْسَانُ أَئِذَا مَا مِتُّ لَسَوْفَ أُخْرَجُ حَيًّا
wa-yaqûlu l-'insânu: 'a'idhâ mâ mittu lasawf 'ukhraju hayyan?
e diz o homem: acaso quando morrer ressuscitarei?

Alcorão, Sura de Maria (19), 66

Levantar-me para quê. Se eu deixo os olhos esmagados nas rugas destes lençóis. E a noite me morre lá fora. Agora.

Arrojar este corpo sem olhos. Rolá-lo ao longo da cama. Sísifo. Eu sei. E empurrá-lo. Derramá-lo devagarinho. No chão de alcatifa silenciosa. Vês. Este cai e não volta. Pôr-lhe os olhos no lugar. Primeiro este. Depois. Agora vai-te. E depois enrolar-me nestes lençóis encharcados de agonia.

23.2.08

O sentido

[Iluminura boémia do século XV]

Já nada me espera. Nem ninguém. Nos lençóis engelhados de medo. E assim a dor de me arrojar até. De os puxar e esticar na certeza de que as rugas regressam na fúria da noite. Sempre. E o sal vomitado de olhos vermelhos. Há muito deixou de fazer sentido.

With my own cold dead face



[Cantado por Michael Pitt, em Last Days, de Gus Van Sant]

From rape...
To right in...
To real...
To live...
Should I lie...down...
Or stand up
And walk...around...again?

My eyes finally wide open up
My eyes finally wide open shut
To find the found of sound
That hears the touch of my tears.
Smells the taste of all we waste
Could feed the others
But we smother each other
With the nectar and pucker the sour
Of sugar sweet weather
blows through our trees
Swims through our seas
Flies to the last gasp we left
on this earth...oh ohh...

It's a long lonely journey from death to birth
It's a long lonely journey from death to...
It's a long lonely journey from death to birth
Oh...it's a long lonely journey from death to...birth

Should I die again?
Should I die around the pounds of matter wailing to space?
I know I'll never know until
I come face to face
With my own cold, dead face
With my own wooden case...
You are with me, with me, ooh, ohh, hmm
I'm mourning you ooh, ooh, ohh, hmm

It's a long lonely journey from death to birth
It's a long lonely journey from death to birth
It's a long lonely journey from death to birth
It's a long lonely journey from death to... birth

15.2.08

Cinco anos

obiit a. d. VI Id. Feb. MMIII
s. t. t. l.

Se a noite me traz a memória e os sonhos povoados de ti. Os dedos ágeis dobrando vincando. Toma. É para ti. A flor de papel que amarela moribunda no fumo dos nossos cigarros. Dois dedos estendidos e os olhos pisados de dor.

13.2.08

Insónia

[Manuscrito médico otomano]

Enquanto os olhos me rebolam de preguiça adormecida no chão molhado da insónia de ontem eu pergunto-me se valerá a pena estender a mão. Apanhá-los. Passá-los por água fresca. Levá-los ao seu sítio natural de dormência e acabar de beber este chá azedo e levantar este corpo sem dor e abrir aquela porta.

12.2.08

Nos lençóis

[A partir de um azulejo do século XVIII. Convento da Graça, Torres Vedras]

acordo com ele nos meus sonhos, encontro-o na almofada, nos lençóis, nas árvores do lago
António Lobo Antunes, Exortação aos crocodilos

11.2.08

Kill the pain . XV . Neutralize

[Fra Angelico - Visitação]
her eyes
she's on the dark side
neutralize
every man in sight
Como as cobras que deitam a língua de fora provando o ar. A que te sabe o meu ar. A musgo a bolor. A ondas de sangue e de tédio. De quantos tijolos vais precisar. Para me esmagares o crânio e de lá me arrancares καὶ ἐκβαλόντες ἔξω τῆς πόλεως ἐλιθοβόλουν καὶ οἱ μάρτυρες ἀπέθεντο τὰ ἱμάτια αὐτῶν παρὰ τοὺς πόδας νεανίου καλουμένου Σαύλου (*). Trinta e cinco. Um a um.





(*) quod interpretatur et eicientes eum extra ciuitatem lapidabant et testes deposuerunt uestimenta sua secus pedes adulescentis qui uocabatur Saulus (Act 7:58)

7.2.08

Kill the pain . XIV. Falls

[Boticelli - Virgem e o Menino com dois anjos e São João Baptista]

weightless falls honeysuckle

(Cantado por Massive Attack)

Não há nada. Nem luz nem trevas. Mas ele está ali. O homúnculo. Sinto-lhe o nariz a fungar assim como um rato. Provando o ar. Para ver onde eu estou. Musgo. O meu cheiro sabe a musgo. Sinto-o na língua e nos dedos. E ele funga. À minha procura. E de repente o terror. Esmagando-me as tripas. É ele. O corpo enrolado e a boca fechada. Como se pudesse matar o cheiro. E ficar indetectável neste vazio neste nada. Enganou-me. Mas agora eu sei. É ele.

'Senhor'

Funga funga. Não me apanhas. Porque agora eu já não quero. Porque agora eu sei quem tu és.