30.4.08

Afogado

[Van Gogh - Caminho com choupos]

«Queria pedir-lhe que não saísse daqui, me acompanhasse, ficasse comigo deitada aguardando não só a manhã mas a próxima noite, e a outra noite, e a noite seguinte, porque o isolamento e a solidão se me enrolam nas tripas, no estômago, nos braços, na garganta, me impedem de me mover e de falar, me tornam num vegetal agoniado incapaz de um grito ou de um gesto, à espera do sono que não chega. Fique comigo até que eu, finalmente, adormeça, me afaste de si numa dessas inexplicáveis reptações frouxas com que os afogados oscilam nas vazantes, me estenda de bruços, de boca na almofada, babando na barriga da fronha palavras indistintas, me afunde no poço pantanoso de uma espécie de morte, a ressonar o meu grosso coma de pastilhas e de álcool.»
António Lobo Antunes, Os cus de Judas

26.4.08

O sonho

[J. J. Grandville - Sonho de Crime e Castigo]

Дверь, как и тогда, отворилась на крошечную щелочку, и опять два вострые и недоверчивые взгляда уставились на него из темноты. Тут Раскольников потерялся и сделал было важную ошибку.
Федор Достоевский, Преступление и наказание, 1, 7

24.4.08

Epistolário XXX

[Brueghel o Jovem - Provérbios (pormenor)]
...
Eu por mim, continuei
Espojado, adormecido,
A existir sem viver.
...
Mário de Sá-Carneiro

André ao seu P. A.

Não deixaste de me habitar a memória. Não me fugiram para outras paragens as primeiras imagens do sono. Ainda és tu que me abres a porta. E me puxas a mão anda anda. Sem que mo digas. Os teus olhos entornados no chão de indiferença.

Quando eu olhava e havia uma luz que. Os dias correm e eu estou mais perto de ti. Havia aquele último peso vergando as estantes. Velho de anos medrosos. O papel e as letras a que me agarrava já têm destino. Agora tomar as forças. E fazer a viagem.

ٳلى اللقاء صديقي

22.4.08

Juvêncio

[El Greco - Retrato de dominicano]

Os teus doces olhos de mel, Juvêncio,
se alguém mos deixar beijar sem parar,
sem parar trezentas mil vezes os beijarei!
Não parecerei vez alguma satisfeito,
nem se mais basta que as secas espigas
for a ceifa dos nossos beijos.
Catulo, XLVIII
mellitos oculos tuos Iuuenti
si quis me sinat usque basiare
usque ad milia basiem trecenta
nec numquam uidear satur futurus
non si densior aridis aristis
sit nostrae seges osculationis

21.4.08

As ondas

[El Greco - Estudo]

Ahogarme en tu cuerpo de letras menudas y en tus olas morirme y vaciarme por fin.

20.4.08

Iterum noctua

[Dürer - Coruja]

(uma coruja, dei com uma coruja entre as copas ou talvez nem uma coruja autêntica mas aquela que o meu terror inventou a partir de um novelo num ramo, pinhas, coagulações de sombra, o que imaginamos em criança no terror de

deixemos isso de parte, já falei tanto de mim, se houver ocasião falo horas e horas quando estiver em Espinho)

António Lobo Antunes, Exortação aos crocodilos

Os olhos cuspidos em cima de mim. Por um segundo hesitei.

Se era do frio da noite. Não é. É mesmo assim. Não te importas. Eu não. E tu. Eu. Se te parasse agora e te sentasse ao meu colo. Agora vou contar-te. Como se diz às crianças. Uma história a minha história. Dos meus medos e das minhas manias. Mas agora não pares. Amanhã.

Se do medo.

17.4.08

Voltei

[El Greco - Frei Hortensio Félix Paravicino]

Como pude esquecer se é que esqueci esquecer-te a pele e os dedos. Que apoiam não apoiam. Tacteiam. Assim. E o teu hálito feroz deitado em mim tão perto. Deixar-te tocar-me pousar-me os teus dedos. Numa carícia veloz enquanto se me entornam na pele molhada.

16.4.08

Epitaphius quintus

[El Greco - El soplón]

não era a idade que a assustava, era a morte, ficar sozinha à noite e esse vento horrível nos choupos, há cadáveres que desaparecem dos cemitérios sabe-se lá para onde

António Lobo Antunes, Exortação aos crocodilos

e se eu te dissesse os gritos que pastam na minha cabeça como as focas no fundo do mar. E a mão que me arranca as entranhas e os dedos e os olhos cuspidos. E a terra na boca e o lodo. Tu sabes. Os dias e as noites. E o peso da terra pesando sobre os meus ossos. Devagargarinho.

Eu disse-te que me queimasses. E tu abriste um buraco em terra que não me tem sido leve.

10.4.08

Afeição

[Dürer - Auto-retrato]

ويهنيه إن مت السلو فإننـــــى

أموت ولي شوق اليه مبـــــرح
ابن عمار الأندلسي
... se eu morrer, fique contigo
uma réstia de consolação.
morrerei mas levarei comigo
a violência toda da minha afeição.

(Ibn 'Ammar al-Andalusi, século XI, Silves. Tradução de Adalberto Alves)

6.4.08

Areia

p1260029

[Redes de pesca. Peniche]
a J.P.

Lembras-te. Havia o mar e a areia dura molhada. No céu não sei. Sabes? Negro onde talvez houvesse estrelas e a Lua. Lembras-te. Eu não. Ou nuvens e pingos de água salgada. Não sei. Não interessa. E a areia dura dura. Disso sim. Molhada lambendo-me os pés calçados com botas negras pesadas. Um dia dei-te a areia dessa noite. E havia o tum tum tum tum do meu coração. Tu lembras-te. Porque me disseste. E eu disse é de estar ao pé de ti. E ficámos calados costas na areia e o frio salgado. Não vi se havia estrelas porque ali só havia o teu calor e o meu coração sem rédea. Depois abracei-te e o teu respiro e o meu. Lembras-te. E a noite morreu e nós com ela.

2.4.08

A profecia

[Bosch - Nauis Stultifera (pormenor)]

«E quando saturares de lágrimas a terra sob os teus pés e meio côvado para baixo, ficarás imediatamente feliz com tudo. E não mais existirá para ti qualquer tristeza. É esta a profecia.»
Dostoiévski, Demónios.
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra