31.8.05

Pescadores


[Hendrick Avercamp - Paisagem fluvial]

Estava a passar uns dias no Baleal com uns amigos. Naquela noite tínhamos decidido não dormir. Depois de algumas horas em casa, a ouvir música, fartámo-nos, e decidimos ir até Peniche. Naqueles anos 80 não havia praticamente vida nocturna, em Peniche. Assim fomos para o porto de pesca, ver chegar os barcos. Ali nos deixámos ficar horas, sentados no molhe, a ver chegar e partir os barcos de pesca. Entusiasmados, implorámos a vários pescadores que nos levassem com eles para o alto mar. Todos recusaram, alguns argumentando que o mar estava muito agitado e que não se responsabilizavam por um bando de adolescentes com vontade de experiências novas.

30.8.05

Barco à vela



[Arkhip Kuindji - Mar com barco à vela]

Íamos para a praia de barco. Tínhamos ido viver para o Algarve, mas por azar naquela cidade não havia praia. Assim, apanhávamos o barco, e íamos para a ilha. O caminho era curto, as águas tão baixas que em dias de maré viva baixa o barco encalhava, e tínhamos de esperar que voltasse a encher. Quando as coisas corriam bem, o barco sulcava as águas baixas, cortadas pelas barbatanas dorsais dos cações, pequenos tubarões inofensivos. O barco era feio, chato, largo. Quando espreitava para baixo, para as águas cheias de peixe, pensava que bom seria entrar num barco à vela, e sulcar aquelas águas frescas. O barco deixáva-nos do lado interior da ilha - do lado da cidade. Às vezes atravessávamos a ilha, e íamos ver as praias do outro lado, as praias oceânicas. E era então mais forte o meu desejo por um barco à vela. Eram dias cheios.

29.8.05

As ondas


[Turner, 1833 - Quillebeuf na foz do Sena]

O mar já está no Inverno. As ondas estão violentas, cinzentas e espumosas. Em terra o Verão continua, mas em fase decadente.

21.8.05

Война и мир


[Vassili Tropinin, 1815 - Retrato do Príncipe Bagration]

Já devia ter lido este livro há muitos anos, mas a minha convicção em preferir sempre traduções directas do original obrigou-me a esperar estes anos todos. Agora vou lendo, poucochinho por dia, saboreando cada palavra desta obra belíssima, com medo de que acabe. Há livros que, quando os acabamos, nos fazem ficar com saudades das personagens, dos lugares, das situações. Que nos deixam um vazio, durante dias, às vezes semanas. Desconfio de que este será um desses. Ganhei o hábito de ler à noite, na cama. Ando a deitar-me cada vez mais cedo, com vontade de pegar nele e ler. Sempre com medo de que acabe. Guerra e Paz, de Lev Tolstói.

15.8.05

O rio


[Turner, 1835-1840 - Paisagem com rio e baía]

Sinto-me muito perto do pânico, quando estou demasiado longe do mar, quando o calor é muito. O calor do interior espanhol é próximo do insuportável. Salamanca parecia então um enorme forno a céu aberto. Do pequeno terraço da pensão podia ver o céu sufocantemente azul. Quente. Demasiado quente. O silêncio opressivo do calor. Os sons são abafados por este intenso silêncio, parecem sair de um recipiente fechado. Os edifícios ocres parecem fumegar. Nas ruas pouco mais se ouve do que o silêncio escaldante e abafado. Há um rio nas margens de Salamanca, atravessado por uma velha ponte romana. É o rio Tormes, que desde logo me cativou pelas ressonâncias queirosianas do nome. No dia anterior já havíamos atravessado a ponte. A vista era magnífica, com a velha Salamanca erguendo-se maravilhosa. Mas hoje o que nos preocupava era a vista de baixo: as margens arenosas e convidativas do Tormes. Descemos por uma encosta, e fomos dar a uma pequena praia fluvial, rodeada de mato denso. O cenário era espantoso. Havia arbustos e árvores de médio porte, que nos forneciam a desejada sombra. Deitámo-nos na areia grossa, apanhando o Sol que agora já nos parecia convidativo. Quando o calor era excessivo, chapinhávamos nas águas mornas do Tormes, por entre peixes e lagostins. Ou refugiávamo-nos na sombra da vegetação. E ali nos deixámos ficar toda a tarde, quase sempre sem falar, esmagados pelo silêncio estival, apenas quebrado pelo monótono ciciar dos insectos e pelo rumorejar das águas mornas do Tormes.

9.8.05

As cegonhas


[Albrecht Dürer, 1515 - Cegonha]

O Sol inclemente queimava, assava-nos vivos. Vínhamos fugidos de Madrid, onde os termómetros subiam acima dos 45 graus. Ali, em Salamanca, estava um pouco mais fresco. Mas apenas um pouco. Refugiámo-nos na pensão que acabáramos de contratar, depois de uma primeira noite numa espelunca que só com muito boa vontade podia merecer o nome de "pensão", em plena Plaza Mayor. Esta nova pensão tinha o convidativo nome de "Lisboa". Era asseada e acolhedora. O meu quarto tinha um extra surpreendente: situado no último andar, aquilo que de início me pareceu ser a porta de acesso a uma varanda era na verdade o acesso a um terraço bastante grande, com vista para a parte velha da cidade - a Plaza Mayor ficava a poucas dezenas de metros. Ainda me sentei lá fora, debaixo do chapéu-de-sol, durante uns minutos. O calor era, porém, insuportável, e não sentia condições para me manter muito mais tempo ali, a admirar a bela cidade ocre. Voltei para dentro, e deitei-me, pronto para uma retemperadora (assim o esperava) "siesta". Não tardei a adormecer, ainda atordoado por uma noite mal dormida na espelunca da Plaza Mayor, onde não conseguira descansar de uma esgotante viagem de comboio desde Madrid. No entanto, passado algum tempo fui despertado por um barulho que na altura me pareceu de castanholas. Achei estranho. Era verdade que estava em Espanha, mas... Não precisei de ir para o terraço, bastou-me espreitar pela janela para perceber de onde vinha: numa torre sineira de uma igreja (ou assim me parecia, vista do quarto), um casal de cegonhas, que ali tinha feito o seu ninho, era o responsável pelo barulho, abrindo e fechando rapidamente os bicos, numa espécie de dança. Até hoje é essa a imagem que me vem é mente, sempre que vejo cegonhas ou os seus ninhos.

3.8.05

A casa do lago


[Albrecht Dürer, c. 1496 - Casa no lago]

Gostava de ter uma casa no meio de um lago. Um lago cheio de vida, com peixes, rãs, tritões, cobras de água, tudo. De águas frescas, para poder mergulhar quando acordasse, nos dias de quentes Verão. Em cujas margens cheias de vegetação alta me pudesse sentar, a ouvir os ruídos dos insectos estivais, sentindo o calor intenso, com os pés mergulhados na água fresca.

2.8.05

A cigana


[Caravaggio, c. 1596 - Leitora da sorte]


Esperávamos pelo início de uma aula, ou talvez tivéssemos faltado. Passeávamos pelo Campo Grande, de braço dado, como habitualmente. Uma cigana fez-nos parar, para nos ler a sorte. A minha primeira reacção foi a habitual nestes casos: um "não" rosnado e um passo em frente. Mas tu achaste que era capaz de ter graça. Acedi, contrariado. A primeira vítima fui eu. A cigana perscrutou longamente as linhas da minha mão, e anunciou sentenciosa que o amor da minha vida era uma mulher morena de longos cabelos encaracolados. Olhei para ti, que rias abertamente, abanando os teus longos cabelos encaracolados, um sorriso travesso na cara morena, e não consegui evitar também eu uma gargalhada. A cigana deu-nos a ambos uma "noz da sorte", que foi dar sorte ao caixote do lixo mais próximo.

1.8.05

Bacche bene uenies


[Guido Reni, 1615-1620 - Baco]

Naquele primeiro ano de faculdade, em 1990, o Rui Vau chamava-me "plessiossauro" ("carinhosamente", dizia-me ele), o Miguel dizia que eu parecia um Baco - pelo aspecto físico, não pelos desvarios etílicos. Na altura achava mais simpático o "plessiossauro" do que o "Baco", eu que então cultivava uma imagem fria e distante. Há muito que abandonei a pose gélida, esfíngica, de então. O que não quer dizer que me tenha tornado dionisíaco.