31.10.08

Kill the pain . XLI . Requiem Aeternam

[Adriaenssen - Natureza morta com peixes]

Para lhe dizer que já vi que j'ai vu mon requin. Je l'ai vu dans votre nez de rat. Ou então não. Ou então era o anel de fogo. O anel de fogo que me rasgava os olhos se acordava demasiado cedo. Se acordava e a manhã ainda babava as janelas de uma gosma azul negra. E as costelas me diziam força força mais uma vez. Já chega. Venha cá. Eu já vi. Je l'ai vu. Os dentes. Um anel de dentes. Como nos filmes. Documentários. Vindos do abismo. Um anel de fogo. Venha cá. Não tenha medo. Je l'ai vu. Mon requin.

30.10.08

Arabiya

Os poemas traduzidos do Árabe passam a ser publicados num novo blogue: Pausa sobre as ruínas - الوقوف على الأطلال

26.10.08

Sombra

[Bosch - Alegoria da Gula e da Luxúria]
الخان

في الخان المُجاور ـ
رأيت ظِلّي يشرب كأس نبيذ
..........
وأنا هنا ـ
يُداهِمُني السُكْر
تترنح كلماتي

a taberna

na taberna aqui ao lado
vi a minha sombra a beber um copo de vinho
..........
e eu aqui:
agarra-me a bebedeira
tremem-me as palavras

Hassan Najmi
(tradução minha a partir do original árabe)

23.10.08

África 1

[Ippolito Caffi - Neve e nevoeiro no Canal Grande]

Subir as escadas nhec nhec porque a madeira está seca ou está podre e há cogumelos pendurados na parede. Anda dá-me a mão e não não digas. Não vá alguém ouvir-nos e subir as escadas atrás de nós. Cuidado porque o chão está podre ou está seco não sei. Segura-te a mim. Assim. E os teus lábios não sabem a África que nunca viste.

19.10.08

Brecha

[Khaled as-Saa'i - Sem título]

ثغرة
تحفر إلى الأبد
لا أحد يملأ
لا أحد
كلما حاولت
أخفقت
أسقطت
دمعة

فاتحة مرشيد

uma brecha
abrindo-se para sempre
ninguém a enche
ninguém
e sempre que ela tenta
falha
deixa cair
uma lágrima
Fatiha Morchid
(tradução minha a partir do original árabe)
Obrigado à Nádia pela ajuda
nas dificuldades surgidas.

18.10.08

Kill the pain . XL . Rato

[Goya -Pátio do manicómio]

Já chega sabe já chega. Já lhe contei tanta coi já lhe contei mais do que devia. E o senhor levanta o nariz como um rato. Como um rato. O senhor é um rato. E eu sou um rato. Pequenino. Muito pequenino. Já chega. Venha cá.

9.10.08

Amor marinho

[Avercamp - Pescadores ao luar]

في الحُبّ البحريّْ

أنا بَحْرُكِ، يا سَيِّدتي
فلا تسألين عن تفاصيل الرحلةْ
ووقْتِ الإقْلاع والوُصُولْ.
كلُّ ما هو مطلوبٌ منكِ
أن تنسَيْ غرائزَكِ البَرِيَّةْ
وتُطيعني قوانينَ البحرْ...
وتَخْترقيني كسمكةٍ مَجْنُونَةْ
تَشْطُرُ السفينةَ إلى نِصْفَينْ..
والأُفُقَ إلى نِصْفَيْنْ..
وحياتي إلى نِصْفيْنْ..

sobre o amor marinho

sou o teu mar, senhora minha,
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços
e o horizonte em dois pedaços
e a minha vida em dois pedaços

Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)


fī l-ḥubbi l-baḥrīy

'anā baḥruki, yā sayyadatī
fa-lā tas'alīna ʿan tafāṣīli r-riḥla
wa-waqti l-'iqlāʿi wa-l-wuṣūl.
kulla mā huwa maṭlūbun minki
'an tansay ġarā'izaki l-barīya
wa-tuṭīʿnī qawānīna l-baḥr...
wa-taḫtariqīnī ka-samakatin majnūna
tašṭuru s-safīnata 'ilā niṣfain..
wa-l-'ufuqa 'ilā niṣfain..
wa-ḥayātī 'ilā niṣfain..

8.10.08

Epistolário XXXI

[Goya - Quien lo puede pensar]


André ao seu P. A.

Há aquele momento que me assalta todos os dias. Quando podia ter-te dito. E pegado na tua mão. Nos ossos da tua mão que já não era mão. Eram ossos. Como os de agora. Enterrados. E ficar assim quieto. A tua mão morta quase morta enterrada na minha. E dizer-te. Dizer-te com muita força. Tu sabes. Aquela noite. Quando deixámos de ouvir a música e as pessoas à volta. E tu disseste-me. E eu não. E eu não fui capaz. Eu não sou capaz. Ouve. Não sou capaz. Eu não sou capaz. E todas as noites quando me deito e tu me visitas o sono. Todas as noites. Vejo-te todas as noites. Com cabelo. E o cigarro maroto e os olhos pequeninos. E os rebentos de barba rufia. E depois o murro nas tripas daquele momento. Quando podia ter-te dito que. E apertado com força a tua mão quase morta na minha. E em vez disso fiquei de mãos esmagadas, as unhas cravadas nas palmas, e as tripas puxadas rasgadas com força força tanta força, a ver-te morrer. E cada dia se torna mais difícil.

Até já. Vou-me deitar.

4.10.08

Mãos

[Largillière - Estudo de mãos]
حَديثُ يَدَيْها

قليلاً من الصَمْتِ ..
يا جَاهِلَةْ ..
فأجملُ من كُلِّ هذا الحديثْ
حَديثُ يَدَيْكِ
على الطَاوِلَةْ ..نزار قباني
a fala das mãos dela

um pouco de silêncio,
impetuosa,
que a mais bela fala
é a fala das tuas mãos
sobre a mesa

Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)

ḥadīṯu yadayhā
qalīlan mina ṣ-ṣamti
yā jāhila
fa-'ajmalu min kulli hāḏā l-ḥadīṯ
ḥadīṯu yadayki
ʿalā ṭ-ṭāwila

2.10.08

Kill the pain . XXXIX . Tempo

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Do medo. Da dor. Do sofrer. Mas agora. Agora não. Porque agora. Quando o senhor me. Quando a sede e o desespero me arrancarem as tripas. Eu vou urrar e chorar e bater com a cabeça nos tijolos e. Sem muita força. Porque a fome e a sede. E eu vou saber que depois não me vou lembrar. Que quando adormecer acabou. E o sangue não me voltará a encher de memórias. Nem de dor. Porque vai ser o sono final. E eu não vou acordar. Um saco de pele e carne e ossos e gosmas. Sem memória. Sem dor. Podre. Outra mancha no chão desta cela. Mas quantos. Diga-me. Quantos. E fica a ouvir-lhes os gritos. E ouve-lhes a morte. Diga-me. Ouve-lhes a morte chegar. E quantos. Quantos. Quanto tempo.