[Gerrit Dou, c. 1630 - Velha lendo a Bíblia]
Nesta Páscoa comprei a novíssima tradução da Ilíada, do Frederico Lourenço. Não é necessário repetir aqui os merecidos e generosos elogios que esta tradução tem recebido. O trabalho do Frederico não precisa de mais louvores. O nome dele ficará na história dos estudos clássicos portugueses, não tenho quaisquer dúvidas sobre isso. Tem feito mais pela divulgação dos estudos clássicos com a mediatização do seu excelente trabalho do que mil colóquios e congressos feitos à maneira tradicional. Já lho disse, e repito-o aqui. Mas não é da enorme qualidade da sua Ilíada que quero falar.
A tradução do Frederico é volumosa, encadernada com capa dura, vermelha de sangue, brilhante. No dia em que a comprei decidi regressar a casa de comboio, o que não fazia há anos. A viagem é mais longa do que se feita de autocarro, mas muito mais cómoda e agradável. Assim, sentei-me numa carruagem quase vazia, recostei-me no banco confortável, e passei aquela hora de viagem a ler o Canto I da Ilíada, deslumbrado. Notei, porém, que uma senhora de alguma idade, no banco do lado, me olhava demoradamente, com um sorriso aprovador. Na minha ingenuidade achei que talvez fosse alguma classicista que tinha reconhecido em mim um companheiro. Havia, com efeito, um certo ar cúmplice na forma como me olhava. Quando o comboio chegou a Torres Vedras, saí, e apressei-me a abandonar a plataforma. Mas uma voz fraca reteve-me. Olhei para trás: era a senhora de idade, com um sorriso enorme nos lábios. Apontou para a Ilíada, que eu apertava contra o corpo, e perguntou, com ar afirmativo: "Vai muito bem acompanhado! É a Bíblia, não é?" Fiquei tão estupefacto que só consegui responder "Bom, é uma bíblia, realmente, mas não é aquela em que está a pensar". O sorriso franco depressa se transformou num esgar de surpresa, e de novo num sorriso, agora de confusão. Virei-me e apressei o passo, entre as gargalhadas incontidas da minha mãe e a confusão da senhora de idade. Depois arrependi-me de ter sido tão brusco, mas em situações inesperadas reajo sempre desta forma.
A tradução do Frederico é volumosa, encadernada com capa dura, vermelha de sangue, brilhante. No dia em que a comprei decidi regressar a casa de comboio, o que não fazia há anos. A viagem é mais longa do que se feita de autocarro, mas muito mais cómoda e agradável. Assim, sentei-me numa carruagem quase vazia, recostei-me no banco confortável, e passei aquela hora de viagem a ler o Canto I da Ilíada, deslumbrado. Notei, porém, que uma senhora de alguma idade, no banco do lado, me olhava demoradamente, com um sorriso aprovador. Na minha ingenuidade achei que talvez fosse alguma classicista que tinha reconhecido em mim um companheiro. Havia, com efeito, um certo ar cúmplice na forma como me olhava. Quando o comboio chegou a Torres Vedras, saí, e apressei-me a abandonar a plataforma. Mas uma voz fraca reteve-me. Olhei para trás: era a senhora de idade, com um sorriso enorme nos lábios. Apontou para a Ilíada, que eu apertava contra o corpo, e perguntou, com ar afirmativo: "Vai muito bem acompanhado! É a Bíblia, não é?" Fiquei tão estupefacto que só consegui responder "Bom, é uma bíblia, realmente, mas não é aquela em que está a pensar". O sorriso franco depressa se transformou num esgar de surpresa, e de novo num sorriso, agora de confusão. Virei-me e apressei o passo, entre as gargalhadas incontidas da minha mãe e a confusão da senhora de idade. Depois arrependi-me de ter sido tão brusco, mas em situações inesperadas reajo sempre desta forma.
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