29.3.08

Kill the pain . XVIII . Explicit iterum

[Caravaggio - São João Baptista]

À noite havia gritos no ar e eram corujas que me arrancavam as tripas até. E quando eu soube que era uma coruja o medo morreu e as minhas noites tornaram à paz. Fantasmas que me arrancavam da cama e sombras geladas. E afinal uma coruja. Os olhos e o bico tão pequenino.

Havia aquele calor. Sabes. Molhado. E não era isso. Nem as mãos nos cabelos e a saliva morna. Borboletas gigantes e o doce gozo revolto no ventre quente. A culpa e a dor esmagadas vencidas numa luta suada. Pára pára pára. Não disse pensei. Não diria. Nunca. Ah não. Eu não falava. Apertei-lhe a cabeça e rosnei um soluço mudo. Pára pára. Não. Eu tenho uma barriga que vai rebentar de. Se eu não lhe tivesse dito que. A culpa é minha. Qual culpa. Parece que me vai rasgar o peito e saltar cá para fora esguichando vermelho por todo o lado. Arranco-te os cabelos um a um a um a um e tu não gemes. Se eu pudesse falar dizia-te pára pára. Porque agora. Agora agora agora. Depois deitei a cabeça contra o vidro embaciado. E havia uns olhos brancos e um bico.

Kill the pain . XVII . Explicit

[Fra Bartolomeo - Sagrada Família e São João Baptista]

Trinta tijolos trinta e cinco. Acabou.
Não há saída.
Acabou.

Não sei quantos dias se dias se noites. Este delírio de velhos sem boca e os narizes de rato. Se alguma coisa bebi ou cheirei. Pode ser esta falta de luz. Os bolores que se agarram nojentos às mãos podres. Fungos. E o raspa raspa que não pára. Ratos ou. Enrolar-me de novo na manta de malha. E as mãos metidas coladas às pernas. Pijama morno. Depois há uma névoa no ar que foge do copo cheio de chá quente. Preto. E o cheiro azedo do corpo cansado suado e a mão medrosa que sai do pijama e se queima no copo de chá. Coisa pior. Morcegos mochos corujas. Quando eu era pequeno. Já sabes. Um morcego. Ou uma coruja. Já te contei tantas vezes. Mas esta não. Por isso ouve. Saindo da biblioteca da escola com o Darwin na mão. Anda cá. Vem ver. E eu fui. Fazia raspa raspa. Não com a boca porque da boca não lhe sai nada que se possa ouvir. As unhas contra o cartão da caixa prisão. Um morcego negro e peludo. Pequenino. Anda. Dá-mo. Não disse. Pensei. Eu não falava. Só olhos e boca. E as pessoas olhavam com pena e pensavam coitadinho é parvinho. Às vezes diziam. E eu corava e apertava os lábios e não dizia nada. Um dia vais ver. Um dia vão ver todos. Desci as escadas com o Darwin e fui para casa enterrar-me no sofá ou na cama ou noutro sítio qualquer. Como um rato com asas. Se mo tivesse dado. Abria-lhe a caixa e soltava-o no meu quarto. De dia dormíamos os dois.

28.3.08

As algas

[Munch - Desespero]

Sacode as mãos assim. Depressa. O que é isso. Onde as. Há-de haver maneira. No mar. Lá em baixo. E uma noite ان شاء الله uma noite assim daquelas de céu cinzento. Para me poder ver. Os braços partidos ao longo do corpo. E a espuma salgada indo e vindo lambendo-me a cabeça. Negra de. Porque se beijasse não era assim. Sangue podre e algas.

27.3.08

Hic fuimus cari duo nos sine fine sodales

[George Calec Bingham - Comerciantes de peles descendo o Missouri]

à quoi bon les sanglots inonder les coussins
(cantado por Alex Beaupain)

Se fosse apenas a memória uma memória suja num rio. Se eu tivesse a ingenuidade de achar que não podia viver sem. Mas posso. E não quero. E por isso as noites já não me são o que. As águas calmas de esquecimento. De lama.

Dantes era o riso traquinas. Morno morno afagando-me as mãos e o queixo e os lábios que nunca beijei. Quando a pele encostada na tua. E o quente do teu hálito morno e a barriga tremente vibrando a tua voz baixa. Lembras-te. Agora. Os teus olhos negros gelados. E a barba negra longa tão longe da lixa que me arrancava a pele quando. Os teus lábios nunca me tocaram. Tão perto.

Sem ti.

Levantaste-os quieto. Porque sabes. Quando durmo não sinto dor. Sei. A que derramas sem parar. E as noites eram-me a fuga. Quando o mundo parava e era como se. Tu sabes.

À quoi bon les sanglots. Et pourtant. Je ne peux pas m'empecher de.

25.3.08

Ma mémoire sale



Lave
Ma mémoire sale dans ce fleuve de boue,
Du bout de ta langue nettoie-moi partout,
Et ne laisse pas la moindre trace
De tout
Ce qui me lie et qui me lasse
Hélas!

Chasse,
Traque-la en moi, ce n'est qu'en moi qu'elle vit,
Et lorsque tu la tiendras au bout de ton fusil,
N'écoute pas si elle t'implore,
Tu sais
Qu'elle doit mourir d'une deuxième mort
Alors,
Tue la... encore.

Pleure!
Je l'ai fait avant toi et ça ne sert à rien,
À quoi bon les sanglots inonder les coussins?
J'ai essayé, j'ai essayé
Mais j'ai
Le coeur sec et les yeux gonflés
Mais j'ai
Le coeur sec et les yeux gonflés

Alors brûle!
Brûle quand tu t'enlises dans mon grand lit de glace
Mon lit comme une banquise qui fond quand tu m'enlaces
Plus rien n'est triste
Plus rien n'est grave
Si j'ai...
Ton corps comme un tourrent de lave
Ma mémoire sale dans son fleuve de boue
Lave!

Lave!
Lave!
Ma mémoire sale dans ce fleuve de boue
Lave!

Alex Beaupain

22.3.08

Περίλυπός ἐστιν ἡ ψυχή μου ἕως θανάτου

[Munch - Auto-retrato no inferno]

Harto de tanta porfia

sostengo bevir tan fuerte
qu'es triste el anima mia
fasta que venga la muerte
(anónimo espanhol, s. XV/XVI)


περίλυπός ἐστιν ἡ ψυχή μου ἕως θανάτου
Mc. 14:34

Farto de tanto lutar de tanto viver esta guerra sem descanso. E olhar-me as mãos e querer arrancá-las uma e a outra. Com os dentes que me ardem. Os dentes não ardem. Os meus ardem. Devagarinho. De fora para dentro. E abrir os olhos e ver afinal está ali. Nunca esteve. E agora o que resta. Quando já nem as noites dormidas.

15.3.08

Pouco ajustado

[Bosch - Nauis Stultifera (pormenor)]

«Mas El-Rei já não é moço, e em respeito do rei novo que hoje temos é velho; e, se os cabelos embranquecem na sepultura, pelos meus, que sou quatro anos mais moço, vejo que pode El-Rei ressuscitar com barba branca e muito branca. Mas contudo a mim me parece que esta barba é postiça, e que o poeta profético pintou a ressurreição do nosso rei com os olhos na idade de El-Rei D. Sebastião, por quem esperava; e, como pintou a ressurreição de um e a barba do outro, não é muito que lhe saísse o retrato menos ajustado nesta parte.»

Padre António Vieira, Carta ao padre André Fernandes,
29 de Abril de 1659
Edição de J. Lúcio de Azevedo, INCM

O assombro das gentes

[Bosch - Nauis Stultifera]

«Em Espanha verá o rei de Portugal ressuscitado, e Castela vencida e dominada pelos portugueses. Em Itália verá o Turco barbaramente vitorioso, e depois desbaratado e posto em fugida. Em Europa verá universal suspensão de armas entre todos os príncipes cristãos, católicos e não católicos; verá ferver o mar e a terra em exércitos e em armadas contra o inimigo comum. Na África e na Ásia, e em parte da mesma Europa, verá o Império Otomano acabado, e El-Rei de Portugal adorado Imperador de Constantinopla. Finalmente, com assombro de todas as gentes, verá aparecidas de repente as dez tribos de Israel, que há mais de dois mil anos desapareceram, reconhecendo por seu Deus e seu senhor Jesus Cristo, em cuja morte não tiveram parte.»
Padre António Vieira, Carta ao padre André Fernandes,
29 de Abril de 1659
Edição de J. Lúcio de Azevedo, INCM

14.3.08

A espada

[Bosch - São Pedro e o doador (pormenor)]

μὴ νομίσητε ὅτι ἦλθον βαλεῖν εἰρήνην ἐπὶ τὴν γῆν
οὐκ ἦλθον βαλεῖν εἰρήνην ἀλλὰ μάχαιραν
nolite arbitrari quia uenerim mittere pacem in terram
non ueni pacem mittere sed gladium

Mat 10:34

Se não mato este peso. E as tuas mãos não param quietas e os teus dedos. À procura não sei de. Quentes trementes. Para cima devagarinho agora para baixo. E se. Não. Se a dor me matar a. Perder o sentido. Só um. Um golpe só. Já está. Já estava. Tivesse eu forças para.

10.3.08

Três portas . Laranja

[Manuscrito de Baguedade, século XIII]

A porta laranja não abre. Não tem fechadura. Nem maçaneta. É feita de de adobe. Adobe laranja. Por isso lhe chamam porta laranja. E tem uma tranca. Romã madura. A cor dela. Porque se fosse laranja não se via. Laranja em fundo laranja. E assim. E uma tranca para quê. Se não abre. Está ali deitada. Contra a parede. Um dia talvez caia. E então se saberá o que há do outro lado. Ou se há outro lado. Porque ninguém sabe a que se apoia a porta laranja. Só que ela lá está. E isso é suficiente.

9.3.08

شمس ١

أبو العز بن إسماعيل بن الرزاز الجزري
الجامع بين العلم والعمل النافع في صناعة الحيل

hé viens près de moi
que je te le dise
ce secret
qui me tord le coeur
(Cantado por Rita Mitsouko)


Persa como os outros persas de Herat. Uma barba velha velha pendurada na cabeça panejada. Que os dedos cansados beijavam uma duas três vezes. Até lhe cairem no colo os olhos vermelhos de sono contrariado.

No chão o Livro do Conhecimento Universal e Trabalhos Úteis na Manufactura de Engenhos كتاب الجامع بين العلم والعمل النافع في صناعة الحيل de Abû l-ºIzi bnu Ismâºîli bnu r-Razzâzi l-Jazarî أبو العز بن إسماعيل بن الرزاز الجزري.

Mas agora não é tempo de.

7.3.08

Kill the pain . XVI . Spitting out

[Bacchiacca - Pregação de São João Baptista (pormenor)]

we're like identical twins
sucking on the same teat
spitting out the same things
Cantado por Massive Attack)

Enquanto me enrola a mão os mesmos medos de ontem. E no ar o funga funga onde estás tu. Aqui. Onde tu não me vês. E se cheiras não me cheiras. Porque o medo que te alimenta as narinas há muito o esfreguei por este chão sem cor. Cala-te. Eu estou aqui. Onde me morre o cheiro do medo. Morde. Mata.

6.3.08

Complete and utter madness


[Brueghel o Jovem - Provérbios (pormenor)]

«Even if she hadn't been unfaithful to me yet, she wanted to, and I knew she wanted to, and that made it even worse. It would have been better if she'd actually done it and I'd known about it, so there wouldn't have been this uncertainty. I wouldn't have been capable of saying what it was I wanted. I wanted her not to want what she couldn't help wanting. It was complete and utter madness.»
Tolstói, A sonata Kreutzer, tradução de David McDuff