Talvez nos tenham visto e por isso olham e riem. Riem de mim. Estás a ver. Quando me deixaste diante do prédio. Lembras-te. E eu deitei a mão à porta do carro. Não tenhas medo. Ninguém nos vê. A noite é funda e é nossa. Puxar a tranca arrojar-me escarrar-me no meio da rua. E é já ali. Sair do carro e atravessar sem olhar para um lado e para o outro porque a esta hora. Só os cães a rosnar e eu vou subir as escadas oito andares para não acordar ninguém porque o elevador. O barulho. E parar em cada patamar e tapar os pulmões e entornar os ouvidos escadas abaixo a ver se alguém. Porque se alguém me vir se alguém nos vê. Não não não não. Depois pegaste-me na mão. Devagarinho. Tiraste-ma do puxador e o teu corpo enorme esmagando-me o peito e o pescoço. Ninguém nos vê.
27.12.08
26.12.08
21.12.08
Gothica
[Honoré Daumier - Saltimbancos]
Enterraram-na no dia de anos. Domingo.
Levantaram-lhe a tampa do caixão e puxaram-lhe os panos e não havia gritos. A cara velha e os cabelos amarelos dos anos. Não brancos. Amarelos. Sempre lhos vi amarelos. E a chuva cuspindo-lhe as rugas e os lábios secos. Disseram-lhe adeus e o vento e a chuva babando-nos as caras dormentes. Há sempre o vento e a chuva. E o frio tu lembras-te do frio. Não. Eu sim. Do céu azul de chumbo e de frio. E dos gritos que me arrancavam as tripas e do rapaz que passou por mim e me deitou os olhos vermelhos de tanto chorar e a boca torcida numa dor que eu sei. Fecharam-lhe a tampa do caixão e a chuva abrandou.
A tua não ta vi fechar. Nem abrir. Só os gritos.
Levantaram-lhe a tampa do caixão e puxaram-lhe os panos e não havia gritos. A cara velha e os cabelos amarelos dos anos. Não brancos. Amarelos. Sempre lhos vi amarelos. E a chuva cuspindo-lhe as rugas e os lábios secos. Disseram-lhe adeus e o vento e a chuva babando-nos as caras dormentes. Há sempre o vento e a chuva. E o frio tu lembras-te do frio. Não. Eu sim. Do céu azul de chumbo e de frio. E dos gritos que me arrancavam as tripas e do rapaz que passou por mim e me deitou os olhos vermelhos de tanto chorar e a boca torcida numa dor que eu sei. Fecharam-lhe a tampa do caixão e a chuva abrandou.
A tua não ta vi fechar. Nem abrir. Só os gritos.
10.12.08
Aflição
e se assim fosse, estando ele morto sem regresso, a sua vida seria uma lenta aflição por esperar quem nunca poderia voltar.
valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores
Deixa-me dizer-te que não estou louco. Eu sei que não podia ser. Que tu não estás cá. Que tu não. Mas ainda assim. Ainda assim entornei-me os olhos nos dele. Deixei-lhos ficar uns momentos. Pequeninos. E abri um sorriso. Ele também. Pensou que era alguém conhecido. Vagamente. Um conhecido destes. Dos que nos aparecem de vez em quando na rua e não sabemos quem são. Mas não. Depois caí em mim. E tirei os olhos dos dele. Era igual a ti. Mas não eras tu.
3.12.08
Retorno
Se é o cheiro do mar. Se o da porcaria da merda que se acumula no porto. Que queres que te diga. Não sei. Há um cheiro forte. E eu não sei do que é. Pode ser do barco. Aquilo é um barco. Saberei mais tarde que aquilo é um barco. Agora é uma montanha se eu soubesse o que é uma montanha. E as mãos são as mãos da minha mãe que me apertam o choro. Tenho fome ou estou farto de estar aqui. Ou tenho medo. Olha a montanha olha o barco. Ou uma vaca. É uma vaca gigante que muge aflita. E lá dentro da vaca vêm pessoas de África e cheiram a leão. E ela tem medo. E há caixas muito grandes. Que queres que te diga. Não me lembro de mais nada. Só do colo da minha mãe e do mugido do barco.
2.12.08
Cuspir
Eis um homem perdido, aqui está um homem que se perde a si mesmo e não consegue deter-se a si próprio.Dostoiévski, O duplo
Pôr a cabeça de fora. E cuspir os olhos para o chão. Que porcaria. Cuspir para o chão. E os olhos. Cuspir os olhos para o chão. Não se faz. Eu sei. E eu fiz. Depois fechei a janela. Despejei-me no sofá. Sem apagar a luz. Agora não vejo. E se não vejo.
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