Subiu à torre e pensou este é o dia. Ergueu os olhos ao céu. Três vezes inspirou e outras tantas expirou. Deixou cair as pálpebras e baixou a cabeça. Tivesse eu medo. E me faltasse a coragem. Não me fossem pesados os dias e duras as noites. Acordar todas as manhãs e. Já chega. Arrancar-me esta dor. E um dia abrir os olhos. Mas não. Em vez disso. E se. Porquê. É como adormecer. Mas sem sonhos. Por fim achou que era tempo. Já o Sol furioso lhe martelava a nuca.
28.10.07
Et cecidit et dormiebat et somnia non habebat
Subiu à torre e pensou este é o dia. Ergueu os olhos ao céu. Três vezes inspirou e outras tantas expirou. Deixou cair as pálpebras e baixou a cabeça. Tivesse eu medo. E me faltasse a coragem. Não me fossem pesados os dias e duras as noites. Acordar todas as manhãs e. Já chega. Arrancar-me esta dor. E um dia abrir os olhos. Mas não. Em vez disso. E se. Porquê. É como adormecer. Mas sem sonhos. Por fim achou que era tempo. Já o Sol furioso lhe martelava a nuca.
27.10.07
Kill the pain . XI . Honeysuckle
weightless falls honeysuckle
strangers (strange this)
lights from pages
paper thin thing
(Cantado por Massive Attack)
Do chão saíam línguas de cobra e o bafo de dragões de fogo verde (1). Assim. Devagarinho lambendo-me os pés. E eu não sei se estava deitado. Porque o bafo me aquecia costas e pernas e pés e eu não me conseguia mexer. E assim se eu estivesse de pé. Ou deitado. Tanto faz. E isto. Veneno (2) duro rasgando-me a pele - cravando-me fundo na carne e nos ossos. E a dor era tanta e eu abri os olhos e não vi nem línguas nem bafo. O velho. O das barbas negras. E na mão um naco de carne vermelha morta. Oozing bloodgouts (3)
Ganchos. O cheiro. A morte e sangue. Um talho. Porcos esventrados e vacas. E eu. Peito e barriga. Sem nada. Abertos. Assim. No chão o lago plinc plinc vermelho escuro. Debaixo de mim do meu corpo. Oozing bloodgouts from my absent guts. E as moscas são tão grandes. Metidas dentro de mim. Daqui a nada as larvas e eu serei. Não há ninguém neste talho imundo. Eu. Os porcos e as vacas. E as moscas. Comido. De fora para dentro. Guts. I have no.
Ganchos. O cheiro. A morte e sangue. Um talho. Porcos esventrados e vacas. E eu. Peito e barriga. Sem nada. Abertos. Assim. No chão o lago plinc plinc vermelho escuro. Debaixo de mim do meu corpo. Oozing bloodgouts from my absent guts. E as moscas são tão grandes. Metidas dentro de mim. Daqui a nada as larvas e eu serei. Não há ninguém neste talho imundo. Eu. Os porcos e as vacas. E as moscas. Comido. De fora para dentro. Guts. I have no.
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(1) Quoniam uiridis frigidior ignis flauo rubroque et in terra illa non aestus sed frigor sentiendus. Quia dracones nescio at scire nollo.
(2) Scilicet draconum.
(3) Iacobus Joyce ut patet omnibus hoc scripsit.
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O medo
«Por fim, Ivan Dmítrich, vendo que era inútil resistir, deixou de raciocinar e entregou-se ao desespero e ao medo. Começou a isolar-se e a evitar as pessoas. O serviço, que já antes lhe repugnava, tornou-se-lhe insuportável. Tinha medo que o levassem a meter-se em sarilhos, que lhe metessem à socapa dinheiro de um suborno no bolso para depois o apanharem, ou que ele próprio, por descuido, cometesse um erro nos papéis oficiais que pudesse ser considerado fraude, ou que perdesse dinheiro que não fosse dele. É curioso: o seu raciocínio nunca dantes fora tão flexível e inventivo como agora que fantasiava, dia a dia, milhares de motivos sérios de receio pela sua liberdade e honra. Ao mesmo tempo, ia enfraquecendo a olhos vistos o seu interesse pelo mundo exterior, em particular pelos livros, e já a memória começava a traí-lo.»
Tchékhov, Enfermaria nº 6
trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra
trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra
22.10.07
20.10.07
Agrafena Ivánovna
[Chagall - Homenagem a Gógol]
«O general tirou o cachimbo da boca e, com ar de grande satisfação, pôs-se a olhar para Agrafena Ivánovna. O próprio coronel desceu as escadas e abraçou Agrafena Ivánovna pelo focinho. O próprio major deu palmadinhas na perna de Agrafena Ivánovna; os outros estalaram as línguas.»Nikolai Gógol, A Caleche
trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra
trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra
Carceri d'Invenzione . II . Dedos
Na manhã em que foi libertado estalou os dedos das mãos apenas duas vezes. Quer dizer, não estalou apenas dois dedos. Isso não faria qualquer sentido. Pois se o objectivo de estalar os dedos é devolvê-los ao seu encaixe ósseo natural, seria uma injustiça devolver apenas dois. E os outros oito? Ficariam fora do seu sítio? Ah não. Nem pensar. Não seria natural. Nem lógico. Não não. O que ele fez foi duas sequências de estalo completas. Assim. Começou pelo mindinho da mão esquerda. Este é fácil. Como todos os pequeninos. Basta um toque leve do polegar da mão direita. Depois o anular. Às vezes não estala. Será do anel. Embora ele não use anel. Mas pode ser do anel. Talvez o anel lhe aperte a articulação. Claro. E o médio e o indicador. Dedos chatos. Sem interesse, sem particularidades. E ele gosta tanto de particularidades. Antes de ser preso começava todas as suas conversas por "Isto é aqui entre nós, em particular". Os amigos não gostavam muito desta sua particularidade. Mas a verdade é que ele não tinha amigos, o que neste caso até é coisa boa. Ora o indicador e o polegar não têm particularidades, como já ficou dito. Estalam quase ao mesmo tempo, obedientemente. Fosse o anular assim. Mas não. Tinha de ser diferente. Não lhe chegava ter anel. Bom, o dele não tem anel. Mas é como se tivesse. É que se comporta como se o tivesse: não estala com facilidade, e tem uma pequena depressão regular ali, onde deveria estar o dito anel. Falta o polegar. Aperta-o dentro dos outros dedos. Quer dizer, o mindinho só lhe toca a ponta. É o mais pequenino. E como todos os pequeninos fica de fora, ninguém quer saber dele. Com toda a razão. Afinal não tem qualquer utilidade. E ninguém quer saber de coisas que não tenham utilidade. Muito menos ele. Por isso gostava de ouvir o clac clac dos ossos a entrarem no seu encaixe. Quando não tinha nada que fazer entretinha-se, pois, a estalar os dedos. Às vezes corria-os um a um, começando pelo indicador, usando a palma da mão oposta. Como um piano. Um dia achou que para variar poderia tocar uma ou outra fuga de Bach com o estalar dos dedos. Que tolice. Claro que não passou da primeira nota. Porque, convenhamos, tocar Bach com o estalar dos dedos não é coisa ajuizada. Ainda se fosse uma peça de Cabezón.
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12.10.07
Pele
[Bosch - A tentação de Santo Antão (pormenor do painel esquerdo)]
I wrote you a letter and tried to make it clear
that you just don't believe that, I'm sincere.
(cantado por Massive Attack)
I wrote you a letter and tried to make it clear
that you just don't believe that, I'm sincere.
(cantado por Massive Attack)
Se eu pudesse parar os dias e saltar as noites. Se eu pudesse fechar os olhos e vazar a alma. Se eu pudesse saber se ainda estás aí. E se posso sonhar. E se um dia. Ou não. Se devo ir embora. Desistir. E esquecer. Porque de noite há fantasmas que me arrancam a pele.
8.10.07
Carceri d'Invenzione . I . Cara
[Piranesi - Carceri d'Invenzione]
No manhã em que foi libertado lavou a cara apenas uma vez. É que nas outras manhãs lavava a cara muitas, muitas vezes. Tantas que um dia achou que se lhe começavam a ver as veias e os músculos assim, quase à transparência. Não se preocupou nada com isso. Afinal, quem, senão ele, lhe podia ver a cara? Quem, senão ele, poderia ficar impressionado, enojado até? Não não. Não tinha qualquer importância. Pensou até que talvez fosse interessante. Que, se lavasse mais ainda a cara, se a esfregasse assim bem esfregadinha, a sua pele acabaria por se tornar completamente transparente. Poderia então ver todas mas mesmo todas as veias, e todos todos os músculos. Todinhos. E que seria ainda mais engraçado se passasse a lavar o corpo todo várias vezes por dia. Assim poderia ver todos todos os pormenores mais divertidos da sua anatomia. Sim, porque ele tinha uma anatomia divertida, como veremos. Mas achou que o melhor mesmo era experimentar primeiro na cara. É que não sabia até que ponto aguentaria ver todos todos os pormenores da sua anatomia. Todinhos. E enquanto fosse só a cara, não vinha daí grande mal ao mundo. Podia sempre cobri-la de pó-de-arroz, se um dia se fartasse de ver todos os músculos, todas as veias. Assim, passou a esfregar cuidadosamente a cara várias vezes por dia. Mas não se pense que o fazia de forma obsessiva. Não. Ele só esfregava a pele da cara quando não tinha nada para fazer. Bom, é verdade que na sua cela não havia muito mais para fazer. Aliás, não havia mesmo mais nada para fazer. Isto seria muito mais interessante até, se ele tivesse um espelho onde se ver. Como não tinha, contentava-se em imaginar que a pele da sua cara estava a ficar transparente.
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5.10.07
Kill the pain . X . Keep me tasking
E depois o vento ardente morreu e eu abri os olhos e o velho de barbas negras estava ali. Levantou o braço direito e com a mão tomou o punho da espada. Depois puxou devagarinho. Assim. E o crânio chiou e o seu gemido era insuportável. Como se a espada lhe fosse um órgão e lha arrancassem à força. E quando a espada saiu foi como se nunca lá tivesse estado. Porque não havia sangue nem ferida. Onde antes tivera rasgão agora tinha uma boca. Com lábios e dentes. E dela escorria pasta negra de sangue podre. E eu desmaiei. O cheiro.
E depois acordei e o velho de barbas negras estava ali. Numa mão oferecia-me a espada e dizia. Tolle. Lege (1). E eu pus-me de pé e com a mão esquerda tomei a espada. Era fria como gelo. Percorria-lhe a lâmina negra uma escritura que não pude decifrar. Porque as letras saltavam e mudavam de lugar quando começava a custo a delas tirar sentido. E o velho dizia. Lege. Mas eu não podia. E deitei a espada ao chão e o estrondo foi maior que mil trovões. Fechei os olhos e depois não sei. Se dormi. Se morri.
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(1) Vt Augustinus. Sed non librum sed gladium ostendens. Nescio cur id faceret.
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أغدا ألقاك
أم كلثم
أغدا ألقاك
يا خوف فؤادي من غد
يا لشوقي واحتراقي في انتظار الموعد
آه كم أخشى غدي هذا ، وأرجوه اقترابا
كنت استدنيه ، لكن ، هبته لما أهابا
وأهلّت فرحة القرب به حين استجابا
هكذا أحتمل العمر نعيما وعذابا
مهجة حرى وقلبا مسه الشوق فذابا
أغداً ألقاك؟
أنت يا جنة حبي واشتياقي وجنوني
أنت يا قبلة روحي وانطلاقي وشجوني
أغدا تشرق أضواؤك في ليل عيوني ؟
آه من فرحة أحلامي ، ومن خوف ظنوني
كم أناديك ، وفي لحني حنين ودعاء
يا رجائي أنا ، كم عذبني طول الرجاء
أنا لولا أنت لم أحفل بمن راح وجاء
أنا أحيا في غدي الآن بأحلام اللقاء
فأت، أو لا تأت أو فافعل بقلبي ما تشاء
هذه الدنيا كتاب أنت فيه الفكر
هذه الدنيا ليال أنت فيها العمر
هذه الدنيا عيون أنت فيه البصر
هذه الدنيا سماء أنت فيها القمر
فارحم القلب الذي يصبو إليك
فغدا تملكه بين يديك
وغدا تأتلق الجنة أنهارا وظلا
وغدا ننسى ، فلا نأسى على ماض تولى
وغدا نسمو فلا نعرف للغيب محلا
وغدا للحاضر الزاهر نحيا ليس إلا
قد يكون الغيب حلوا ، إنما الحاضر أحلى
أغدا ألقاك؟
أغدا ألقاك
يا خوف فؤادي من غد
يا لشوقي واحتراقي في انتظار الموعد
آه كم أخشى غدي هذا ، وأرجوه اقترابا
كنت استدنيه ، لكن ، هبته لما أهابا
وأهلّت فرحة القرب به حين استجابا
هكذا أحتمل العمر نعيما وعذابا
مهجة حرى وقلبا مسه الشوق فذابا
أغداً ألقاك؟
أنت يا جنة حبي واشتياقي وجنوني
أنت يا قبلة روحي وانطلاقي وشجوني
أغدا تشرق أضواؤك في ليل عيوني ؟
آه من فرحة أحلامي ، ومن خوف ظنوني
كم أناديك ، وفي لحني حنين ودعاء
يا رجائي أنا ، كم عذبني طول الرجاء
أنا لولا أنت لم أحفل بمن راح وجاء
أنا أحيا في غدي الآن بأحلام اللقاء
فأت، أو لا تأت أو فافعل بقلبي ما تشاء
هذه الدنيا كتاب أنت فيه الفكر
هذه الدنيا ليال أنت فيها العمر
هذه الدنيا عيون أنت فيه البصر
هذه الدنيا سماء أنت فيها القمر
فارحم القلب الذي يصبو إليك
فغدا تملكه بين يديك
وغدا تأتلق الجنة أنهارا وظلا
وغدا ننسى ، فلا نأسى على ماض تولى
وغدا نسمو فلا نعرف للغيب محلا
وغدا للحاضر الزاهر نحيا ليس إلا
قد يكون الغيب حلوا ، إنما الحاضر أحلى
أغدا ألقاك؟
الحرف : الهادي آدم
الصوت : كوكب الشرق
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Verba aliena
1.10.07
Kill the pain . IX . Carbunculus
E antes de cegar. Se ceguei. Já não sei. Porque a verdade é que o que agora é treva já antes. Mas não. Havia um homem. Um velho. De barbas negras. Longas. Pelos pés. Sem roupas. Só barbas. E uns olhos vermelhos de sangue. Ou de fogo. Chamas. Ou carvões. E a luz daqueles olhos era tão pesada. Mais do que. Quando a luz me inundou a cela. Pensei que cegava. Porque era tão tão. Sabes. Assim. Como quem olha para o Sol e lá deixa ficar os olhos. Ou mais forte. E depois apareceu aquele homem. Assim. vulto negro no meio da luz. E eu não via mais nada. Nem paredes. Nem porta. Só luz. E o homem. Como num sonho. Por isso. Não. E a boca era rasgada. Sem lábios. E dela saía uma espada (1). Negra como a barba que o cobria. E da ponta pingava sangue. Podre. Por causa do cheiro. E da cor. Não era vermelho. Pastoso. Negro. Petróleo. Mas era sangue. Porque eu sei. Como se a espada. Se lhe entrasse pela nuca. E lhe rasgasse a boca que não tinha e abanava em fúria. E a espada a cada esticão rasgava-lhe um pouco mais a boca. E espirrava-lhe o sangue e guinchava assim como ferro quente em água fria. E das ventas vento ardente. E eu tapava os olhos com as mãos para não cegar. E o vento ardia e abria caminho por entre os meus dedos. E as chamas entravam-me nos olhos e eu gritava de dor e ninguém me ouvia (2).
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(1) Υἱὸς ἀνθρώπου ut in Apocalipsi Iohannis. Sed hic de quo scribitur non hominis.
(2) آخر الليل بتسمع اليعات
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(1) Υἱὸς ἀνθρώπου ut in Apocalipsi Iohannis. Sed hic de quo scribitur non hominis.
(2) آخر الليل بتسمع اليعات
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