20.10.07

Carceri d'Invenzione . II . Dedos

[Piranesi - Carceri d'Invenzione]

Na manhã em que foi libertado estalou os dedos das mãos apenas duas vezes. Quer dizer, não estalou apenas dois dedos. Isso não faria qualquer sentido. Pois se o objectivo de estalar os dedos é devolvê-los ao seu encaixe ósseo natural, seria uma injustiça devolver apenas dois. E os outros oito? Ficariam fora do seu sítio? Ah não. Nem pensar. Não seria natural. Nem lógico. Não não. O que ele fez foi duas sequências de estalo completas. Assim. Começou pelo mindinho da mão esquerda. Este é fácil. Como todos os pequeninos. Basta um toque leve do polegar da mão direita. Depois o anular. Às vezes não estala. Será do anel. Embora ele não use anel. Mas pode ser do anel. Talvez o anel lhe aperte a articulação. Claro. E o médio e o indicador. Dedos chatos. Sem interesse, sem particularidades. E ele gosta tanto de particularidades. Antes de ser preso começava todas as suas conversas por "Isto é aqui entre nós, em particular". Os amigos não gostavam muito desta sua particularidade. Mas a verdade é que ele não tinha amigos, o que neste caso até é coisa boa. Ora o indicador e o polegar não têm particularidades, como já ficou dito. Estalam quase ao mesmo tempo, obedientemente. Fosse o anular assim. Mas não. Tinha de ser diferente. Não lhe chegava ter anel. Bom, o dele não tem anel. Mas é como se tivesse. É que se comporta como se o tivesse: não estala com facilidade, e tem uma pequena depressão regular ali, onde deveria estar o dito anel. Falta o polegar. Aperta-o dentro dos outros dedos. Quer dizer, o mindinho só lhe toca a ponta. É o mais pequenino. E como todos os pequeninos fica de fora, ninguém quer saber dele. Com toda a razão. Afinal não tem qualquer utilidade. E ninguém quer saber de coisas que não tenham utilidade. Muito menos ele. Por isso gostava de ouvir o clac clac dos ossos a entrarem no seu encaixe. Quando não tinha nada que fazer entretinha-se, pois, a estalar os dedos. Às vezes corria-os um a um, começando pelo indicador, usando a palma da mão oposta. Como um piano. Um dia achou que para variar poderia tocar uma ou outra fuga de Bach com o estalar dos dedos. Que tolice. Claro que não passou da primeira nota. Porque, convenhamos, tocar Bach com o estalar dos dedos não é coisa ajuizada. Ainda se fosse uma peça de Cabezón.

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