30.8.06

A arriba

[Teniers - Tentação de Santo Antão]

a J. B.


Não é que alguma vez me tenha esquecido de ti. Há momentos em que não és mais do que uma memória doce e vaga. Às vezes és recordação viva. Pungente. Sentado no alto da arriba olhava o mar. Abraçava-me a mim mesmo, procurando o meu próprio calor. Vento frio varrendo o areal deserto. Houve aquela madrugada, lembras-te. Um Inverno tremendo. Ou seria já Primavera. É-me tudo tão gelado. Aquele início de mil novecentos e noventa e oito. Tão negro. Sem esperança. Mas houve aquela madrugada. Agasalhados, olhando o mar. Lá tão longe. Tão medonho. Calados, olhando em frente. No cimo das arribas. Não devemos ter trocado mais do que meia dúzia de palavras. Eu sabia o que queria, mas não tinha coragem. Tão ferido, ainda. Tão inseguro. Tu, não sei. Talvez já soubesses o que querias. Tinhas mais medo do que eu. Muito. Muito mais. Nascia o dia. Enregelados. Podíamo-nos ter abraçado. Mas não. Tínhamos medo. Até que um dia. Até que uma noite.

29.8.06

O rugido

[Constable - Baía de Weymouth]

Tomado ainda pelo torpor estival. Caminhadas à beira-mar, as ondas lambendo-me as pernas. Já escrevi isto. Não me consigo cansar do mar. Ontem a praia estava deserta. Vento forte. Lá em baixo um enorme bando de gaivotas. Uma longa faixa branca e negra, da arriba até ao mar furioso. Desço. Ao encontro delas. O vento ensurdece-me. Areia compacta, não pisada. Gritam à minha chegada. Uma a uma levantam voo. Eu avanço devagar. Centenas de gaivotas. Um restolhar assustado. Guinchos. Afogam o rugido do mar. E do vento. Não há mais ninguém agora. Os guinchos das gaivotas, pousadas agora a uma distância segura. À minha volta troam vento e mar. Quando era miúdo detestava o Verão.

18.8.06

Ainda aqui estou

[Velde - Praia em Schveningen]

Não me fui embora. Por aqui ando todos os dias. Calado. Mente preguiçosa aquecida pelo Sol de Agosto. Salgada do Atlântico. Sem ideias. Sem palavras. Longos passeios na areia molhada. Pensando em nada. Deixo de ouvir o rugido do mar. De sentir a sua língua gelada contra as minhas pernas. Tudo me parece já passado. Esmagado pelas décadas. Três e meia, não mais. Mas parecem oito. Nove. Às vezes paro. Mãos atrás das costas. Mirando o oceano. Ou algo por detrás dele. Não sei. Depois volto à duna onde deixei toalha e mochila. Deito-me na areia quente. E durmo. Estou vazio.

11.8.06

Falhado de novo

[Bosch - Queda dos anjos rebeldes]

Mil novecentos e oitenta e quatro. Cheira a estrume. Uma camioneta de onde saíam uns senhores mal-encarados, armados de enxadas e outras alfaias. Manhã fria de Primavera. Ou seria Inverno. Sim, final de Inverno. O céu estava de chumbo. Não gosto de me levantar cedo. Chovia. Quero voltar para a cama. Para o calor. Abraçava-me a mim mesmo, tentando aquecer-me. Mesmo que a chuva me atacasse a cara enfiada dentro do capuz. Não conseguiria nunca aquecer-me. Apesar de tudo aquele cheiro forte. Estrume e terra molhada. Mal conseguia com a enxada. Atacava a terra com fúria. Não era aquilo que eu queria. Não era esta a vida. Olhava em volta e via-os a todos. Havia gritos de alegria. Risos. O estômago encolhia-se-me. Uma vontade incontrolável de chorar. Não era aquilo. Não pertencia ali. Tragédias de um quase adolescente. Parece tudo tão negro sempre. Agora às vezes também. Apoiava-me na enxada e pensava na melhor maneira de fugir dali e nunca mais ser visto. Haveria ali alguém que gostasse de mim. De quem eu gostasse. Não sei. Misantropo. Depois atiraram-me com a pequena árvore. Já está bom o buraco, rapaz, toca a plantar. Uma árvore pequenina. E eu tão grande. Grande, desajeitado, taciturno. Depois atei a árvore ao pau de suporte. Tão frágil. Olhava-a e não acreditava que vingasse. Batida pelo vento. Se isto fosse uma história cor-de-rosa eu agora escrevia que anos depois passei pela árvore que plantei em frente da escola e que ela estava grande, desajeitada e taciturna como eu. Maior do que as dos meus colegas, pois também eu era o maior de todos. Mas não. Poucos meses depois a minha árvore continuava raquítica, desfolhada, talvez morta. Ao contrário das dos meus colegas, que ganhavam as primeiras folhas primaveris. A minha não. Sim, estava morta. Eu passava todos os dias e parava, procurando um rebento, uma folha, alguma coisa que me dissesse que estava viva. Mas rebentos e folhas só no pau de apoio. Eu não tinha um pau de apoio seco e morto, como deve ser. Como tinham os meus colegas. Não. Eu tinha um pau de apoio cheio de vida. E uma árvore morta. Nem sempre passei ao lado do que realmente interessa, porém.

5.8.06

A agressão

[Rembrand - Leão deitado]

Mil novecentos e oitenta e um. A preto e branco. Pequena. Iluminava a sala sombria onde nos acotovelávamos. Tinha-a comprado pouco antes da nossa vinda para Olhão. Alívio no inferno. Único calor daquela casa. Esquecíamos quase tudo. Ou não. Entretenimento e companhia. Alívio. O terror da pequena casa escura e silenciosa. Estranha. Deitava-me cedo. Para adormecer enquanto a televisão ainda lançasse alguma luz débil sobre a noite. Algum ruído que abafasse a angústia do silêncio. Tinha medo daquele silêncio. Daquelas trevas. Um dia falarei disto.

Mil novecentos e oitenta e dois. Talvez fosse noite. Ou não. Já não sei. Eram dias negros. Uma noite sem fim. Naquele dia. Não. Naquela noite. Houve naquela noite um lampejo de alegria. Futebol na televisão. Coisa rara naqueles tempos. Sporting Benfica. Não nasci sportinguista, fiz-me. Naquela noite já era. Naquela noite tornei-me definitivamente. Não por o Sporting ter ganho três a um e ter praticamente assegurado o título. Não foi por isso. Senti-me sportinguista a sério quando vibrei quase às lágrimas com cada um dos golos do Sporting. Três golos. Todos marcados pelo Jordão. Foi aquela alegria que me disse que a partir daquele dia eu era um sportinguista a sério. Jogo célebre, aquele. A agressão do Bento ao Manuel Fernandes. Ou ao Jordão. Já não me lembro. Mas lembro-me da expulsão e do golo de penálti. E da mãe a acordar do seu torpor e a perguntar então quem ganhou. E de nós, a minha irmã e eu, gritarmos de alegria que foi o Sporting. E de a mãe suspirar um ora bolas. E de lhe ver o olhar ainda mais triste. Como se tivesse levado outra bofetada.

4.8.06

Faz favorrr

[Capa do primero volume d'As Farpas]

Batia-se a porta. Parece-me que não havia campainha. Sim, batia-se à porta. Depois apareciam umas barbas louras. Faz favorrr. Alemão, de certeza. Cerrrteza. Não sei por que razão lhe saía sempre aquele faz favorrr interrogativo. Já sabia ao que vinha. Deixei de responder. Dava-lhe os bons dias e entrava. A luz era pouca. Apertado. Per angusta ad augusta. Isto sou eu a pensar agora, não tem nada que ver com a história. Já não sei se esta névoa é o pó que se acumula em nuvens espessas quebradas por feixes de luz fraca. Ou então é a minha memória a falhar. Já foi há tanto tempo. Subia umas escadas rodeadas de estantes embutidas nas paredes. Às vezes começava logo ali a minha demanda. Não sei o que queria exactamente. Talvez não procurasse nada em concreto. O cheiro dos livros. Do pó de décadas. Séculos. Talvez isso. Visitava regularmente o velho alemão do Bairro Alto. Às vezes levava um livro. Mas só depois de acesa batalha verbal. Tem cerrrteza de que não encontrrra nas livrrrarrrias? Uma tarde quase chorei para que me vendesse uma primeira edição do primeiro volume d'As Farpas. Não lhe vendo, pode encontrrrarrr edições moderrrnas melhorrres do que esta numa livrrrarrria. Não sei se entendeu o meu desespero. Desesperrro. Não sei se lhe consegui explicar que o meu interesse não era apenas no conteúdo. Que o que procurava era exactamente a edição original. Ter nas mãos aquele mesmo pequenino volume manuseado pelos contemporâneos do Eça e do Ortigão. Olhava-me apiedado e abanava a cabeça. Duzentos e cinquenta escudos, é o meu prrreço mínimo, mas eu se fosse a si comprrava uma edição moderrrna. Por pouco não lhe caí aos pés. Dei-lhe os duzentos e cinquenta escudos. Mãos a tremer. Depois fugi rapidamente do velho alemão. Com medo de que se arrependesse da venda. Desci a Calçada da Glória a correr. Só parei no comboio. Saltava-me o coração pela boca.

Uma destas noites cairam-me nas mãos, enquanto reorganizava a minha biblioteca. As Farrrpas.

3.8.06

O desodorizante

[Bosch - São Jerónimo rezando]

Há aqueles cheiros que nos trazem memórias sem nexo. Passou por mim uma destas noites. Um casal abraçado. Cheiro. Não sei se dele se dela. Não interessa. Veio-me à memória aquele antigo aroma. Prateleiras escuras até ao tecto. Arrumar novos livros da minha cada vez maior biblioteca. Mil novecentos e noventa e dois. Ou um. Ou três. Há um rádio com dois leitores de cassette sempre sintonizado na Antena 2. Pilhas. Pilhas de cassettes de várias cores. Passava as noites agarrado ao rádio, a gravar. Música barroca de certeza. É ao que me cheira. Mas podia até ser clássica. Há música na minha memória. E há livros. Não uns livros quaisquer. Há um dicionário de latim dedicado ao ilustríssimo e excelentíssimo Sebastião José Carvalho Melo, Marquês de Pombal. Naqueles tempos percorria os alfarrabistas do Bairro Alto, Chiado, Trindade. Por algumas centenas de escudos levava para casa livros sem valor material. Tantas selectas latinas dos séculos XVII e XVIII. E edições oitocentistas do Eça e do Herculano. Um dia achei uma segunda edição d'As Cidades e as Serras. Tinha pertencido a um inglês. Páginas repletas de palavras sublinhadas com a tradução inglesa em cima. Tantos achados. Arrumava-os ciosamente nas prateleiras escuras. O meu tesouro. Infância e adolescência. Guardei-os quase todos. Juntava-lhes os primeiros livros da incipiente idade adulta. Uns velhos catados de alfarrabistas. Outros respigados da livraria da faculdade. Mas eram as selectas setecentistas que tinham aquele cheiro. Não. Talvez houvesse no meu velho quarto aquele cheiro. Talvez eu próprio cheirasse assim. A alfarrabista e a música barroca. Ao meu velho quarto iluminado pelo Sol poente. Subiam-me o nariz aquelas memórias com quinze anos. Abrandei o passo. Era um desodorizante barato. Daqueles de spray. Talvez fosse dele. Ou dela. Tanto faz.