4.8.06

Faz favorrr

[Capa do primero volume d'As Farpas]

Batia-se a porta. Parece-me que não havia campainha. Sim, batia-se à porta. Depois apareciam umas barbas louras. Faz favorrr. Alemão, de certeza. Cerrrteza. Não sei por que razão lhe saía sempre aquele faz favorrr interrogativo. Já sabia ao que vinha. Deixei de responder. Dava-lhe os bons dias e entrava. A luz era pouca. Apertado. Per angusta ad augusta. Isto sou eu a pensar agora, não tem nada que ver com a história. Já não sei se esta névoa é o pó que se acumula em nuvens espessas quebradas por feixes de luz fraca. Ou então é a minha memória a falhar. Já foi há tanto tempo. Subia umas escadas rodeadas de estantes embutidas nas paredes. Às vezes começava logo ali a minha demanda. Não sei o que queria exactamente. Talvez não procurasse nada em concreto. O cheiro dos livros. Do pó de décadas. Séculos. Talvez isso. Visitava regularmente o velho alemão do Bairro Alto. Às vezes levava um livro. Mas só depois de acesa batalha verbal. Tem cerrrteza de que não encontrrra nas livrrrarrrias? Uma tarde quase chorei para que me vendesse uma primeira edição do primeiro volume d'As Farpas. Não lhe vendo, pode encontrrrarrr edições moderrrnas melhorrres do que esta numa livrrrarrria. Não sei se entendeu o meu desespero. Desesperrro. Não sei se lhe consegui explicar que o meu interesse não era apenas no conteúdo. Que o que procurava era exactamente a edição original. Ter nas mãos aquele mesmo pequenino volume manuseado pelos contemporâneos do Eça e do Ortigão. Olhava-me apiedado e abanava a cabeça. Duzentos e cinquenta escudos, é o meu prrreço mínimo, mas eu se fosse a si comprrava uma edição moderrrna. Por pouco não lhe caí aos pés. Dei-lhe os duzentos e cinquenta escudos. Mãos a tremer. Depois fugi rapidamente do velho alemão. Com medo de que se arrependesse da venda. Desci a Calçada da Glória a correr. Só parei no comboio. Saltava-me o coração pela boca.

Uma destas noites cairam-me nas mãos, enquanto reorganizava a minha biblioteca. As Farrrpas.

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