3.8.06

O desodorizante

[Bosch - São Jerónimo rezando]

Há aqueles cheiros que nos trazem memórias sem nexo. Passou por mim uma destas noites. Um casal abraçado. Cheiro. Não sei se dele se dela. Não interessa. Veio-me à memória aquele antigo aroma. Prateleiras escuras até ao tecto. Arrumar novos livros da minha cada vez maior biblioteca. Mil novecentos e noventa e dois. Ou um. Ou três. Há um rádio com dois leitores de cassette sempre sintonizado na Antena 2. Pilhas. Pilhas de cassettes de várias cores. Passava as noites agarrado ao rádio, a gravar. Música barroca de certeza. É ao que me cheira. Mas podia até ser clássica. Há música na minha memória. E há livros. Não uns livros quaisquer. Há um dicionário de latim dedicado ao ilustríssimo e excelentíssimo Sebastião José Carvalho Melo, Marquês de Pombal. Naqueles tempos percorria os alfarrabistas do Bairro Alto, Chiado, Trindade. Por algumas centenas de escudos levava para casa livros sem valor material. Tantas selectas latinas dos séculos XVII e XVIII. E edições oitocentistas do Eça e do Herculano. Um dia achei uma segunda edição d'As Cidades e as Serras. Tinha pertencido a um inglês. Páginas repletas de palavras sublinhadas com a tradução inglesa em cima. Tantos achados. Arrumava-os ciosamente nas prateleiras escuras. O meu tesouro. Infância e adolescência. Guardei-os quase todos. Juntava-lhes os primeiros livros da incipiente idade adulta. Uns velhos catados de alfarrabistas. Outros respigados da livraria da faculdade. Mas eram as selectas setecentistas que tinham aquele cheiro. Não. Talvez houvesse no meu velho quarto aquele cheiro. Talvez eu próprio cheirasse assim. A alfarrabista e a música barroca. Ao meu velho quarto iluminado pelo Sol poente. Subiam-me o nariz aquelas memórias com quinze anos. Abrandei o passo. Era um desodorizante barato. Daqueles de spray. Talvez fosse dele. Ou dela. Tanto faz.

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