5.8.06

A agressão

[Rembrand - Leão deitado]

Mil novecentos e oitenta e um. A preto e branco. Pequena. Iluminava a sala sombria onde nos acotovelávamos. Tinha-a comprado pouco antes da nossa vinda para Olhão. Alívio no inferno. Único calor daquela casa. Esquecíamos quase tudo. Ou não. Entretenimento e companhia. Alívio. O terror da pequena casa escura e silenciosa. Estranha. Deitava-me cedo. Para adormecer enquanto a televisão ainda lançasse alguma luz débil sobre a noite. Algum ruído que abafasse a angústia do silêncio. Tinha medo daquele silêncio. Daquelas trevas. Um dia falarei disto.

Mil novecentos e oitenta e dois. Talvez fosse noite. Ou não. Já não sei. Eram dias negros. Uma noite sem fim. Naquele dia. Não. Naquela noite. Houve naquela noite um lampejo de alegria. Futebol na televisão. Coisa rara naqueles tempos. Sporting Benfica. Não nasci sportinguista, fiz-me. Naquela noite já era. Naquela noite tornei-me definitivamente. Não por o Sporting ter ganho três a um e ter praticamente assegurado o título. Não foi por isso. Senti-me sportinguista a sério quando vibrei quase às lágrimas com cada um dos golos do Sporting. Três golos. Todos marcados pelo Jordão. Foi aquela alegria que me disse que a partir daquele dia eu era um sportinguista a sério. Jogo célebre, aquele. A agressão do Bento ao Manuel Fernandes. Ou ao Jordão. Já não me lembro. Mas lembro-me da expulsão e do golo de penálti. E da mãe a acordar do seu torpor e a perguntar então quem ganhou. E de nós, a minha irmã e eu, gritarmos de alegria que foi o Sporting. E de a mãe suspirar um ora bolas. E de lhe ver o olhar ainda mais triste. Como se tivesse levado outra bofetada.

Sem comentários: