29.9.06

A berma

[Saltério de Estugarda (séc. IX)]

Era muito novo ainda. Não que seja velho agora. Já me pesam as cãs, porém. Vinte anos, tinha eu. Talvez um pouco menos. Cara de miúdo. Não imberbe. Talvez por isso me tratassem de maneira diferente. Não saberei explicar como. Não era como a um igual. Não era como a um rapaz da mesma idade. Não era como a um homem jovem. Não havia aqueles olhares cúmplices. Não sei. Não havia conversas de rapazes. Não me falavam de raparigas. Não me falavam de futebol. Falavam-me em tom de entrevista. Como se fosse um espécime estranho. Fora do seu mundo. Talvez fosse. Não sei. Não se encontravam comigo a sós. Acho que tinham medo de mim. Talvez por isso tenha ficado tão surpreendido quando C. se ofereceu para me deixar em casa naquela noite, quando o grupo se desfez. É que eu até morava ali tão perto, não era preciso. Mas ele insistia. Porque não. Vamos então. Calado como sempre, eu. Ele ia falando naquele tom estranho com que todos se me dirigiam. Já disse, não sei explicar como. Não havia assunto. Não me lembro do que me dizia. O meu embaraço era angustiante. Então reparei que não nos dirigíamos a minha casa. Saíamos da cidade. Onde vamos. Não te preocupes, vamos só dar uma volta, não me está a apetecer ir já para casa, olha, vamos ver coelhos. Ver coelhos. Coisa estranha. Pareceu-me que tinha sido a primeira coisa de que se tinha lembrado. Não era isso que ele queria fazer. Mas eu não estava assustado. Não tinha medo de que me fosse matar ou raptar. Afinal conhecíamo-nos bem, há muito tempo. Sem intimidade. Porque, lá está, sempre se dirigiu a mim como se me entrevistasse. Como faziam todos. Sempre. Não estava assustado. Intrigado, sim. Excitado, talvez. Parou o carro na berma de um caminho deserto. Noite escura. Possivelmente não havia Lua. Ou é a memória que me trai. Nem havia coelhos. Ou talvez houvesse. Mas ele não os procurou. Em vez disso deixou-se estar, cigarro na boca. Não falávamos. Ou melhor, eu não falava. Ele de vez em quando olhava para mim e dizia palavras soltas. A tentar uma conversa. Não uma conversa qualquer. Isso era óbvio. O coração batia-me loucamente. Não sei quanto tempo. Uns minutos, talvez. Depois um silêncio longo. Pesado. Sentia-lhe o olhar. Vamos embora então. Havia uma nota de decepção na sua voz. Nunca entendi aquela noite. Talvez ele. Não. Não podia ser.

4 comentários:

***Gui*** disse...

E porque não?

André . أندراوس البرجي disse...

Porque há coisas a que a timidez e insegurança nos tornam cegos. Não podia ser. Ou talvez pudesse.

***Gui*** disse...

Sim...ou talvez pudesse!

Beijinhos***

Anónimo disse...

Olá, sou Maria, do Brasil.
Descobri por acaso seu blog, muito interessante.
Gostei deste texto, excelente.
Mas trata-se de uma crônica ou é uma experiência real?
Não importa, é muito interessante, muito mesmo.
Também tenho um blog, há muito abandonado, acho que me inspirei, vou voltar a cultivá-lo, pois blogs são como plantas.
Se quiser escrever, meu email é: maria_goiana_2006@hotmail.com.

Beijinhos.