23.9.06

O embaraço

[Tiepolo - Imaculada conceição]

à memória do Rui

Havia um embaraço no ar. Sentávamo-nos lado a lado em silêncio. Nunca falámos claramente sobre aquilo. Das consequências sim. Daquilo nunca. Chamavas-lhe "aquilo", lembras-te. E eu dizia "sim, aquilo". Nunca dissemos a palavra nefanda. Nem onde atacou primeiro. Havia um embaraço no ar. Depois eu batia-te na cabeça e chamava-te careca. E tu sorrias e chamavas-me gordo. E depois voltava o silêncio.

4 comentários:

Pedro disse...

Giovanni Battista Tiepolo. Um grande mestre.

***Gui*** disse...

Agora, no entanto, poderia chamar-te tudo menos gordo. A internet tem destas coisas...por vezes encontramos o que não devemos. Não quero entrar na tua privacidade, mais do que já o faço quando leio os teus textos e, quero menos ainda invadir o teu anonimato. Cruzo-me contigo nos corredores e baixo os olhos por não saber o que fazer...
Ao escrever-te isto estou a pensar mil vezes por segundo em não deixar o comentário...e, no entanto, quero...
O meu fascínio pelos teus textos (que já exprimi vezes sem conta) não vem de seres quem és, advém, sim, das palavras em si, da tua franqueza e sinceridade.

Beijos e desculpa por qualquer coisa!

André . أندراوس البرجي disse...

Olá Bri. De facto hoje já não me poderia chamar gordo. Quando me olho ao espelho de manhã lembro-me disso. De que a imagem última que teve de mim era a de um gordo muito gordo a olhar para ele com olhos assustados. Há coisas assim. Nunca tive muitos amigos. O Rui era-me um amigo muito querido. Não pensei nunca, apesar disso, que a sua morte me doesse tanto. Ainda. Não te preocupes com o anonimato, eu não o cultivo. Desde miúdo sempre quis assumir tudo o que pensava e dizia. Mesmo quando isso era socialmente pouco correcto. Tenho horror a que pensem de mim aquilo que não sou. Mesmo quando aquilo que não sou é o socialmente correcto. Tenho vertigens só de pensar que alguém possa pensar que sou cristão. Não porque ser cristão seja mau. Apenas porque não quero que pensem que eu sou aquilo que não sou. Não tens de baixar os olhos. Eu não sei quem tu és. Mas percebo perfeitamente a tua reacção. Eu sou tímido até à loucura (ainda que me transfigure na sala de aula). Beijinhos, e obrigado pelas tuas palavras bonitas.

***Gui*** disse...

Perder quem nos é querido e quem, ainda para mais, nos compreende é uma agonia.É complicado. Estamos sempre sujeitos a certos rótulos e, a verdade é que, muitas vezes, nem nos encaixamos nesses mesmos estereotipos que querem à força que sejam nossos...
Conheço o André da sala de aula, daí o meu embaraço ao deixar-te o meu primeiro comentário. Tento conhecer o André que vem aqui deixar a sua alma. Vejo o André de passagem nos corredores...é normal que não me conheças, sou apenas mais um rosto no meio da multidão!
Beijinhos e obrigada por teres respondido ***