30.11.07

Sal

[Iluminura do Livro do conhecimento dos engenhosos aparelhos mecânicos de al-Jazari (s. XIV)]


الزَّبَدُ والمَلْحُ الَّتي تَطْفَحُ فَمـــــــــــــــــــي

لَيسَتْ لَون الألمِ الَّذي يَمْزِقُ أَحْشائـــــــي

a espuma e o sal que me enchem a boca
não têm a cor da dor que me rasga as entranhas


az-zabadu wa-l-mal
hu allatî tatfahu famî
laysat lawnu l-'alami alladhî yamziqu 'ahshâ'î



Kill the pain . XII . Stride

[Caravaggio - São João Baptista]
I take a small step now it's a giant stride
'O que é aquilo que brilha e me cega e me mostra as entranhas. As minhas.' E o velho de barbas negras olha para mim e abre a boca que é apenas um rasgão na cara feia e não diz nada. Levanta um braço e aponta. E o gancho oscila e eu com ele. Na direcção do braço. Como se não apontasse mas empurrasse. Para ali para aquele fogo imenso de onde saltam gafanhotos com cara de cobra hic delirat e se ergue uma escada. Sem degraus. Uma rampa. E de um lado e do outro machados e facas e garfos e espadas passionem legit Perpetuae e ganchos que se me agarram à pele e à carne mesmo sem lhes ter tocado. 'Anda sobe'.

E agora já não há gancho e eu ando sobre o fogo assim como. E ao longe a escada e eu não sinto as chamas que me devoram os pés e as pernas. Porque os meus olhos estão pregados na escada na rampa. Como vou conseguir subir. Atrás o velho das barbas negras rasga a cara num sorriso atrás de mim. Como é que eu sei. Se tenho os olhos pregados na rampa na escada. Mas sei. Ele ri-se.

Já está. 'Anda sobe'.

28.11.07

Os tiros

[Francisco Pradilla y Ortiz - Joana a Louca]

"Ontem sonhei que me matavam os filhos a tiro."
(frase que uma desconhecida disparou contra o Jorge, companheiro de infortúnios)


Puxou-me a manga assim até eu parar e olhar para trás. Abriu a boca num sorriso pequeno e bonito. Depois os lábios fecharam-se devagarinho. Assim. Vês. E aos poucos morreu-lhe o sorriso. Desculpa. Pensei que eras outra pessoa. Depois foi-se embora. Quer dizer. Virou-me as costas e deu três passos. Um dois três. Eu contei-os. Não sei se isto é ir embora. Até porque logo a seguir parou. Voltou-se para mim e já lhe estava outra vez o mesmo sorriso nos lábios. Sim. Só nos lábios. Ela só sorria nos lábios. Nos olhos não. Nem no resto da cara. Deu três passos rápidos. Não os contei. Mas foram três de certeza. Porque se chegou de novo ao pé de mim. E abriu a boca e não disse nada. E eu. Bem. Eu estive o tempo todo parado a olhar para ela. Podia ter seguido o meu caminho. Para onde não sei. Mas ir. Mas não. Fiquei ali parado como morto de pé. Um morto de pé. Como se esperasse que ela abrisse a boca e me falasse e me dissesse alguma coisa. Assim. Importante. Que me mudasse o dia e a vida. E ela fechou a boca e caiu-lhe o medo nos olhos. E os lábios torceram-se-lhe num silvo. Ontem sonhei que me davam um tiro na cabeça dos meus filhos. Um a um. Pum. Pum. Pum. Eu tenho três. Primus Secundus Tertius. O pai deles é louco e deu-lhes estes nomes. Imagina. Um tiro na cabeça. À maneira romana. Os nomes. Não os tiros. Não sei se os romanos davam tiros. Se calhar não davam. Eles gostavam mais de matar com leões. Sabes. Tinham assim umas máquinas grandes e mandavam leões para cima das pessoas. Pum. Quer dizer. Não era pum. Como é que fazem os leões. E tinham escravos para levarem as máquinas de leões. Se calhar nem eram leões a sério. Porque levar um leão na máquina. Se calhar eram leões de pedra. Isso sim matava logo uma pessoa. Pum. Um leão de pedra em cima da cabeça. E depois eu fiquei a olhar para os meus filhos assim com um tiro na cabeça cada um. Depois peguei neles um a um. E deitei-os ao rio. Uma mãe não deita os filhos ao rio. Mas eu deitei. Primus Tertius Secundus. O meu marido era louco. Ah desculpa. Confundi-te com outra pessoa. Adeus. Um sorriso alisou-lhe os lábios. Voltou-me as costas e foi-se embora.

25.11.07

Falco

[Alcorão do século VIII]

أنت الصَّقْرُ الّذي في السَّماءِ على النَّخْلِ
أنت الأَيلُ الّذي يَرْكُضُ بالواَحَةِ
أنت النَّهرُ
أنت الماءُ
أنت واحَتي في صَحْراءِ سَنَواتي
أنت سَيّدي
وأنا عَبْدُك

tu super palmas falco per auras
tu ceruus currens per oasin
tu flumen
tu aqua
tu oasis in eremo uitae meae
tu dominus meus
et ego seruus tuus

'anta s-saqru alladhî fî s-samâ'i ῾alâ n-nahli
'anta l-'aylu
alladhî yarkudu bi-l-wâ
hati
'anta n-nahru
'anta l-mâ'u
'anta wâ
hatî fî sahrâ'i sanawâtî
'anta sayydî
wa-'anâ
῾abduka

24.11.07

et seniores uestri somnia somniabunt

[Miguel Ângelo - A queda de Faetonte]

Tenho sonhado contigo. Desde há. Não sei. Muito tempo. Mas agora mais. Começaste a aparecer-me devagarinho. Assim. Momentos pequeninos. Ou não. Os momentos nos sonhos não têm medida. E tu lá. No meio de tantas outras imagens. Já te disse que sonho a cores. Os meus sonhos são festivais de luz louca. Há vermelhos que me entram pelos olhos dentro. E azuis perigosos. E verdes ardentes. E amarelos. E há gente que vive no meio da cor. Estás lá tu. Cada vez mais. Não sei porquê. E não és tu antes de. Nem és um tu sem tempo que bem poderia ser antes de. Não. Tu tens uma data nos meus sonhos. És tu. Depois de. Vivo. Com o teu sorriso traquina. E ontem eu perguntava-te mas tu não. E tu dizias não eu não. E agarravas-me e abraçavas-me e eu chorava e eu acordei e chorava. Porque agora tu vens todas as noites. Em momentos cada vez maiores. E eu deito-me cada vez mais cedo. Para te sonhar. Um dia não me levanto. Um dia não acordo. Para não te perder outra vez.

Pompeiis die IX K. Sep. anno DCCCXXXII A.V.C.

[O deus Baco, com o Vesúvio ao fundo]

Severo saúda o seu Tito.

Espero que estejas bem. Eu vou bem. Ou assim convém dizer nas cartas. Mas não. Os dias não passam e os deuses nada me trazem de bom. A Serena queixa-se da barriga. Não me morra ela como lhe morreu a mãe. Lembras-te. Aquele inchaço. E as mãos retorcidas arrancando a pele de dor. Olhava para a montanha e gemia. Ela. A Flávia. Porque a montanha não gemia então como geme agora. Os roncos. E as entranhas revoltas. Pobre Flávia. E agora a Serena. Não sei. Às vezes parece-me que os deuses. Sabes. Tenho medo. Há fumo. E estes tremores. Os anos. Um dia deixarei de escrever. Porque a mão já não me acompanha. Notarás aqui e ali a cera raspada. Porque me foge a mão. Assim. Como se ma puxassem. Mas não há ninguém no escritório. Só eu. Tu sabes. E às vezes é todo o braço que treme. Um repelão. E depois não me apetece raspar a cera toda e recomeçar esta carta. Perdoarás pois o teu velho amigo e o seu desmazelo. Tenho pena de que não estejas aqui. Sinto a tua falta. Tens de voltar. Já passaram nove anos. As reconstruções avançam. O chão tem tremido é verdade. Mas a cidade reergue-se. E enquanto treme assim aos bocadinhos é certo que não treme como. Lembras-te. Claro que te lembras. E eu não sei porque me banha este terror. Se a doença da Serena. A perspectiva da morte. A dela. E a minha. Sobretudo a minha. Não é no corpo. É na alma. Porque o corpo não está mal. Ainda ontem vim de Cumas. Lembras-te. Dia da Lua. Feira em Cumas. E estou cansado. Mas não mais do que quando tinha trinta anos. É na alma. Um peso um terror. E quando o chão treme. E o fumo. O que me mete medo é o fumo. Porque me lembra a morte. A pira. E eu sei que não tarda morro. Gostava de te voltar a ver. A montanha geme. Como a Flávia. E este Agosto vai tão quente.

Trata de ti.
Adeus.

Satisfecho

[Holbein - Loucura]

«Y desnudándose con toda priesa los calzones, quedó en carnes y en pañales, y luego, sin más ni más, dio dos zapatetas en el aire y dos tumbas la cabeza abajo y los pies en alto, descubriendo cosas que, por no verlas otra vez, volvió Sancho la rienda a Rocinante, y se dio por contento y satisfecho de que podía jurar que su amo quedaba loco. Y así, le dejaremos ir a su camino, hasta la vuelta, que fue breve.»
Cervantes, Don Quijote, I, III, XXV

22.11.07

Aurea folia

[Jacobello Alberegno - A colheita do mundo]

الخَريف
والأوراق الذَهَبية
في الأرض
والهَواء المَبْلول
والريح الّتي غَسَلَت عيوني
وخَرْقَها
autumnum
aurea folia
super terram
humida aura
uentus qui oculos lauat meos
et lacrimas
al-kharîfu
wa-l-'awrâqu adh-dhahabiyatu
fi l-'ard
wa-l-hawâ'u l-mablûlu
wa-l-rî
kh allatî ghasalat ῾uyûnî
wa-
kharqahâ

18.11.07

A Arkádi Ivánovitch Svidrigáilov

[Bosch - Extracção da pedra da loucura]

Para onde para quem olhas. Para mim. Que foi. Nunca viste. Assim. Ao perto. Um homem. Desesperado.

A Ródion Románovitch Raskólnikov

[Juan de Flandres - Joana a Louca]

Douda. Isso. Douda. Não sejas douda. Sandia. Sandeu. Sim. Tu. Doudo. Já viste como. Essas mãos. Quieto. Sossegado. Pois sim. Doudo.

A Aliona Ivánovna

[Goya - A casa dos loucos]

Aquele machado que eu não vejo e que me desce tão tão depressa sobre a cabeça tão pesado. Por trás. E se alguém me pudesse salvar. Abrir a porta e gritar. Se tu soubesses. Já está. E agora.

A Lev Nikoláevitch Míchkin

[Bruegel o Velho - Dulle Griet]

E se isto e se eu. Se fosse só. Não sei. Mesmo se. Não não. Mania. Nunca mais. Nunca. E as mãos. Mortas. Moles moles. Se as cortasse. E as pusesse assim. Secas. Negras. De me matarem. Mania mania. Morto. Eu. Só.

15.11.07

A Ivan Dmítrich

[Goya - Velho num balouço]

Então deixei de raciocinar e mergulhei no medo e na desesperança. Não porque me fosse inútil resistir mas porque me era mais fácil. E assim depositei cuidadosamente o que me sobrava de lucidez. E com as minhas mãos acabei com a minha vida.

8.11.07

O mar

[Ticiano - Filipe II de Espanha e Portugal]

há o cheiro do mar e a areia
e os dias pausados e as noites
e a espuma salgada e
quentes
os meus olhos
de querer-te tanto

3.11.07

Kill the pain . XII . Supplikant

[Caravaggio - São João Baptista]

nearly worn
kneeling like a supplicant
(Cantado por Massive Attack)

No guts. No blood. Depois chegou-se a mim scilicet senex atra barba e deu-me a cheirar o naco de carne e cheirava a mim. Quer dizer. Não cheirava a nada. Portanto era meu. Porque o meu cheiro não me cheira. A que cheiras tu. A mim. Pois claro. Talvez a quente. Sim sim cheirava a quente. Fígado. Ou estômago. Não sei. Não se deviam confundir assim. Mas eu não vejo nada neste talho. Só o cheiro a morte. E a sangue. Imundo. Tira-me deste gancho por favor.

E agora onde está o talho. Nesta história não se pode fechar os olhos. Porque isto é um sonho. Ou não. E quando fecho os olhos. É que eu não dei por adormecer. E se isto fosse um sonho. Então e esta dor.

Livre الحمد لله quod dicitur al-hamdu lillah ac interpretatur Deo gratias fora do talho da morte. Balanço no ar e ele tem-me por ele pelo gancho. Como um pêndulo. Assim. Deste lado para aquele. O da Escola Politécnica. E para aquele. E se eu caio. Lá em baixo. Naquele rio vermelho e negro.