28.11.07

Os tiros

[Francisco Pradilla y Ortiz - Joana a Louca]

"Ontem sonhei que me matavam os filhos a tiro."
(frase que uma desconhecida disparou contra o Jorge, companheiro de infortúnios)


Puxou-me a manga assim até eu parar e olhar para trás. Abriu a boca num sorriso pequeno e bonito. Depois os lábios fecharam-se devagarinho. Assim. Vês. E aos poucos morreu-lhe o sorriso. Desculpa. Pensei que eras outra pessoa. Depois foi-se embora. Quer dizer. Virou-me as costas e deu três passos. Um dois três. Eu contei-os. Não sei se isto é ir embora. Até porque logo a seguir parou. Voltou-se para mim e já lhe estava outra vez o mesmo sorriso nos lábios. Sim. Só nos lábios. Ela só sorria nos lábios. Nos olhos não. Nem no resto da cara. Deu três passos rápidos. Não os contei. Mas foram três de certeza. Porque se chegou de novo ao pé de mim. E abriu a boca e não disse nada. E eu. Bem. Eu estive o tempo todo parado a olhar para ela. Podia ter seguido o meu caminho. Para onde não sei. Mas ir. Mas não. Fiquei ali parado como morto de pé. Um morto de pé. Como se esperasse que ela abrisse a boca e me falasse e me dissesse alguma coisa. Assim. Importante. Que me mudasse o dia e a vida. E ela fechou a boca e caiu-lhe o medo nos olhos. E os lábios torceram-se-lhe num silvo. Ontem sonhei que me davam um tiro na cabeça dos meus filhos. Um a um. Pum. Pum. Pum. Eu tenho três. Primus Secundus Tertius. O pai deles é louco e deu-lhes estes nomes. Imagina. Um tiro na cabeça. À maneira romana. Os nomes. Não os tiros. Não sei se os romanos davam tiros. Se calhar não davam. Eles gostavam mais de matar com leões. Sabes. Tinham assim umas máquinas grandes e mandavam leões para cima das pessoas. Pum. Quer dizer. Não era pum. Como é que fazem os leões. E tinham escravos para levarem as máquinas de leões. Se calhar nem eram leões a sério. Porque levar um leão na máquina. Se calhar eram leões de pedra. Isso sim matava logo uma pessoa. Pum. Um leão de pedra em cima da cabeça. E depois eu fiquei a olhar para os meus filhos assim com um tiro na cabeça cada um. Depois peguei neles um a um. E deitei-os ao rio. Uma mãe não deita os filhos ao rio. Mas eu deitei. Primus Tertius Secundus. O meu marido era louco. Ah desculpa. Confundi-te com outra pessoa. Adeus. Um sorriso alisou-lhe os lábios. Voltou-me as costas e foi-se embora.

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