27.9.08

Kill the pain . XXXVIII . Memória

[Fra Angelico - Decapitação dos santos Cosme e Damião]

"e ela já sabia que não penaria ali nunca mais, não penaria viva, esfregando o coração no chão, limpando cada nódoa que, mesmo depois de tirada, continuaria escurecendo o seu interior. ela não ficaria mais tempo na praça, não ela, uma mulher que fazia o seu próprio juízo e queria morrer de amor."

valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores



Já lhe disse que. Mas não. Não se levante. Não se vá embora. Não me deixe aqui sozinho. Porque tenho de lhe perguntar. Se depois. Quando estiver posto ali o trigésimo quinto tijolo. São trinta e cinco não são. Ou trinta e seis. Sete. Como eu. Trinta e sete. Mas não se zangue. Tenho de lhe perguntar. Como vai ser. Sem pão sem água. Quanto tempo. O senhor deve saber. Porque eu não sou o primeiro. Há aqui um cheiro a morto. Sabe. Uma cócega no nariz. Bem lavado. Sem manchas no. Não. Uma duas três. Umas quantas. Pequeninas sombras. Ali e aqui. Tripas podres. E sangue e gosma. Lixívia escova escova escova mas fica sempre um bocadinho. Uma mancha uma sombra. Um cheiro a. O senhor sabe. Quanto tempo. Horas dias. Dias. Dois três quatro. Quantos. Sem água. Porque sem pão seriam mais. Mas sem água. E vai doer. Vai vai. Mais do que agora mais do que nunca. A sede a fome. A sede. Não me diga. Porque se eu souber. Não interessa. Diga diga. Não ligue. Já está. Não volto atrás. Mesmo sendo pior. Mesmo sendo pior do que quando. Tanto faz. Porque depois eu já não estou cá. Sabe. Não é do sofrer que tenho medo. Nunca tive. É da memória. Do saber que me vou lembrar. Que amanhã quando acordar. E quando o sangue me trouxer de novo a maré das memórias ao cérebro. Sabe. Quando acordamos e ainda não abrimos os olhos e está tudo bem. E depois aos poucos. Os dedos metidos nos miolos. À procura. Porque eu sei que há qualquer coisa. Eu sei. Que quando me deitei. Dizia que quando dormia não tinha dores. Ele. Eu sei. Que quando adormeci e me esqueci de tudo. Havia ali uma dor uma dor baixinha. Assim. Está lá. Está lá sempre. É só procurar com paciência. E depois. E depois de repente. Uma onda de memória. Já está. E as tripas apertadas. E os cobertores queimam a pele.

25.9.08

Peixe

[Jean-Jacques Grandville - Peixes pescando pessoas]

كَمْ تُشْبهِنَ السَمَكةْ
سريعِةٌ في الحُبِّ.. مثلَ السَمَكَةْ
جَبَانَةٌ في الحبِّ.. مثلَ السَمَكَةْ
قَتَلتِ ألفَ امْرَأةٍ في داخلي
وصِرْتِ أنتِ المَلِكَةْ
نزار قباني

como pareces um peixe
veloz no amor como um peixe
cobarde no amor como um peixe
mataste-me mil mulheres dentro de mim
e tornaste-te tu rainha
Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)

23.9.08

Kill the pain . XXXVII . Tranca

[Fragonard - A tranca]

Passou. Já passou. Podia ter sido pior. Podia ter sido. Sabes que me disseram que morreste. A sério. Sabe aquelas notícias que nos arrancam as tripas. E afinal não era verdade. Ou. Não sei. Não interessa. Nem a mim. Nem a si. Já passou. Há muitos anos. Quase vinte. Imagine. Quase vinte. E ainda não lhe contei. Ainda não. Amanhã. Talvez.

22.9.08

Coelho


[Trabalho sobre caligrafia árabe, de Samîr Malik]
آهِ.. لو تتحرَّينَ يوما
من غَريزة الأَرَانِبْ..
وتَعْرِفينْ،
أننّي لستُ صيَّادَكِ..
لَكنَّني حبيبُكِ...
نزار قباني

ai se um dia te libertasses
da natureza medrosa dos coelhos
e soubesses
que eu não sou o teu caçador
que eu sou o teu amor
Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)


Obrigado à Nádia pela ajuda
nas dificuldades surgidas.



ʼāhi.. law tatḥarrīna yawman
min ġarīzati l-ʼarānib...
wa-taʿrifīn,
ʼnannī lastu ṣayyādaki..
lakinannī ḥabībuki...

21.9.08

Issa

[Fragonard - Mulher brincando com cão]

Issa é mais malandra que o pardal do Catulo.
Issa é mais pura que o beijinho de uma pomba.
Issa é mais fofinha que todas as miúdas.
Issa é mais preciosa que as gemas da Índia.
Issa é a cadelinha mais-que-tudo do Públio.
Se geme, cuidarias que fala.
Sente a tristeza e a alegria.
Deita-se tombada no seu pescoço e adormece,
de tal maneira que nem um suspiro lhe ouves.
E, obrigada pelas exigências do ventre,
gota nenhuma ofende os lençóis,
mas com branda patinha o acorda e lhe recomenda
que a tire da cama e pede que a levante.
Tanto pudor se acha na casta cadelinha!
Ignora Vénus, e não achamos
digno marido de tão terna menina.
Não lha leve por completo a morte derradeira,
pinta-a Públio numa quadro,
no qual verás tão parecida Issa
que nem ela é tão parecida consigo mesma!
Põe, pois, Issa ao lado do quadro:
ou ambas julgarás verdadeiras,
ou ambas julgarás pintadas!

Marcial, I. 109

Issa est passere nequior Catulli,
Issa est purior osculo columbae
Issa est blandior omnibus puellis
Issa est carior Indicis lapillis
Issa est deliciae catella Publi
hanc tu, si queritur loqui putabis
sentit tristitiamque gaudiumque
collo nixa cubat capitque somnos
ut suspiria nulla sentiantur
et desiderio coacta uentris
gutta pallia non fefellit ulla
sed blando pede suscitat toroque
deponi monet et rogat leuari
castae tantus inest pudor catellae,
ignorat Venerem nec inuenimus
dignum tam tenera uirum puella
hanc ne lux rapiat suprema totam
picta Publius exprimit tabella
in qua tam similem uidebis Issam
ut sit tam similis sibi nec ipsa
Issam denique pone cum tabella
aut utramque putabis esse ueram,
aut utramque putabis esse pictam

Kill the pain . XXXVI . إرتباك


دَعْ ما يُريبُكَ إلى ما لا يُريبُكَ
recusa o que te inquieta em favor do que não te inquieta
(ditos de Maomé)

Depois descia as escadas ou apanhava o elevador. A verdade é que já não me lembro e não sei se. Porque o que vinha depois sim o que vinha depois. Assim que fechava a porta. Ele. Ou eu. Tanto faz. O medo era sempre o mesmo. Bicho medonho acordado pelo bater da porta. Ali deitado escondido à minha espera. As patas frias molhadas arranhando-me as pernas. Trepando puxando-me os testículos com força e doía. Doía tanto. Sabe. Sabe. Claro que sabe. E as unhas subindo passando ignorando-me o sexo ridículo cravadas na pele. Se ele me deixa o que é que eu faço. E eu sei que ele porque ele mal me olha de dia e de noite vira-me as costas na cama depois de. E não me telefona. E os telemóveis ainda vão ser inventados e só nos vemos nos corredores nas salas nos bares. E se ele foge de mim e eu sei que ele foge de mim. Se hoje não o vir nem amanhã. Cravadas em fúria acima do umbigo. Rasgando-me as carnes e a barriga aberta escancarada vomita-me tripas e sangue e o bicho o medo abrindo caminho dentro de mim comendo roendo-me os ossos cuspindo as gosmas e eu fico ali despejado despejando-me pelos degraus a pensar e se ele hoje à tarde e se ele amanhã. E ainda não lhe contei o que aconteceu mesmo. Não o que aconteceu antes. Porque isso eu conto muitas vezes.

19.9.08

Ainda

[Trabalho sobre caligrafia árabe, de Samîr Malik]

مازلْتِ يا مُسَافِرَةْ
مازلْتِ بعدَ السَنَةِ العَاشِرَةْ
مَزْرُوعةً.. كالرُمْح في الخَاصِرَةْ
نزار قباني
ainda, viajante,
ainda, dez anos depois,
és dardo cravado no meu flanco
Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)

mazlati yâ musâfira
mazlati s-sanati l-ʿâšira
mazrûʿatan ka-r-rumh fî l-ḫâṣira

Maldito

[Bruegel o Velho - A morte da Virgem]

«há uma maturidade muito grande na morte, pensava a maria da graça. uma sabedoria qualquer que nos acode. sentiu-se muito calma tão rente à felicidade e compreendeu que era só o que queria. nem lhe importava absolutamente que existisse deus e ele a julgasse também para uma vida além do corpo. era só importante que pusesse um fim ao quotidiano cansativo que vivia e a morte estava diante de si como um passo apenas em determinada direcção. depois disto, pensava também, não estarei em lugar nenhum. e até o querer que exista o maldito, em alguma nuvem à minha espera, vai deixar de fazer sentido no momento em que eu própria desapareça de todo e não puder pensar nisso nem no contrário.»
valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores

18.9.08

Respirar

[Gian Lorenzo Bernini - Auto-retrato em jovem]

«Não sei porquê - noto-o subitamente - estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.»
Bernardo Soares, Livro do Desassossego.

17.9.08

Kill the pain . XXXV . Aflição

[José Antolínez - Morte da Madalena]

e se assim fosse, estando ele morto sem regresso, a sua vida seria uma lenta aflição por esperar quem nunca poderia voltar.
(valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores)


Não sei se lhe contei. Eu conto sempre isto. Quer dizer. Eu conto sempre o que aconteceu antes. Nunca o que aconteceu. Mas a si. O senhor é diferente. É o senhor que me vai arrancar a esta merda. Esta merda. Era assim que ele dizia. Esta merda. Aquela merda. Já não tenho aquela merda. Já me passou aquela merda. Lembras-te daquela merda. Conseguiram tirar tudo. E depois morreu. Com aquela merda. Mas não. Não é dele que lhe quero falar. Um dia إن شاء الله um dia falarei dele. Sabe que não há um dia uma noite em que não me afague a memória. Há sempre uma cara na rua. Um olhar um rir. Um gingar. E o peito deixa de me subir e descer e os olhos e a boca. Seco tudo seco. Como se eu morresse ali. Às vezes passa-me pela cabeça. Sabe. Se calhar não é por causa do olhar e do rir e do. Se calhar não é isso. Se calhar é ao contrário. Se calhar fui eu que morri um bocadinho. Assim uns segundos. E por isso consigo vê-lo outra vez. Os dois memória sem corpo. Juntos. Como antes. Antes daquela merda. Se calhar. Já tem tem passado pela cabeça. Se calhar quando o senhor me. Sabe. Porque eu estou farto desta merda. E afinal não lhe contei o que aconteceu. Quer dizer. O que aconteceu mesmo. Não aquilo que eu conto sempre. E que também aconteceu. Mas foi antes.

15.9.08

Kill the pain . XXXIV . Janela

[Caravaggio - Madonna del Rosario (pormenor)]

irrumabo uos ego et pedicabo
Catulo


Metia a chave na porta e olhava para trás e punha o dedo nos lábios e dizia xiu. Xiu para quê. Não havia velha nenhuma. Só tu e eu e a cama não rangia. Como se eu não existisse. Se eu não estivesse ali. Despido e humilhado. Rasgando as entranhas de medo. Deitando-lhe mãos invejosas. E a cama nada. Como se eu nem. E eu não. Em silêncio. Puta. A cama. Conspirava com ele. Para me humilharem. Os dois. Os três. Ele e a cama e a velha que não existia. Não faças barulho. E eu não fazia e mordia os lábios e a língua enquanto os dele os lábios e a dele a língua. Sabe. Não sabe. Como pode saber. Não fosse eu rosnar ou gemer. Mas eu nunca. Sempre calado. Para quê para quê mentir para quê a velha. Sempre em silêncio. Mesmo quando. Devagar pára. Já está.

vergonha

Não tive a culpa. Os teus lábios e a língua e as. Chega. Não aguentei. O senhor sabe. Tem de saber. Uma toalha. Se eu queria uma toalha. Para me limpar. Ou talvez fosse para me tapar. Para não me ver. Era isso. Tinha nojo de mim. Porque depois virava-se de costas e até amanhã. E o que eu queria era uma janela. Abrir a janela. Vomitar vomitar-me lá para baixo. Fugir do calor e do meu embaraço. O meu pequeno embaraço. Molhado lambido e a barriga peganhenta. E as mãos. Uma toalha. Não. O que eu quero é que. Quê. Um décimo ou décimo primeiro andar. Não sei. Não me lembro. Não interessa. Já passou.

14.9.08

Kill the pain . XXXIII . Toalha

[G. Macchietti - Banhos em Pozzuoli]


quae si scribantur per singula nec ipsum arbitror mundum capere eos qui scribendi sunt libros

Io. 21:25

Se eu queria uma toalha. E eu não não queria. O que eu queria era abrir a porta. A janela. Abrir a janela. Porque estava tanto calor. E a porta não se podia abrir por causa da velha. Não nos podia ouvir. Não me podia ver. E eu nunca a vi. Podia nem. Já me passou pela cabeça. Sabe. Podia ser mais uma humilhação. Eu ser a puta. Que entra em segredo em silêncio xiu. Clandestino. Trancado naquele quarto quente tão. E se calhar nem havia velha nenhuma. Se calhar era só mais uma humilhação. Sabe. Na faculdade fugia-me. Sim sim. Ele mesmo mo disse. Fugia de mim. Via se eu estava no bar. E se estivesse. Não se ria. Mas ele. O que ele se deve ter rido. Sim. Ele sim. Trepando escadas ridículas. Cuspindo olhares de desprezo por cima do ombro. Imaginar-me despido na sua cama. Eu. A sua puta. A quem telefonava quando mais ninguém estava. E eu dizia sempre que sim. Odiando-me a cada novo sim. Porque eu sabia. Porque eu gostava tanto dele. Sabe. Não sabe. Quando os dias são feitos a olhar para o telefone. E cada minuto é uma mão que nos abre a barriga e nos arranca as tripas. Devagarinho. Quando cuspimos a última vírgula de dignidade e dizemos sim outra vez sim sim. Subir as escadas e cheirar-lhe a indiferença no hálito azedo. Ler-lhe nos olhos a mole maçada de ter de me abrir a porta e a cama e. E ainda assim. Porque eu achava que. Sabe. A esperança parva dos apaixonados. Não. Não sabe. Como poderia saber. E esmagar na boca um riso medonho. O gozo. E eu o gozado. E eu sabia. E ainda assim.

13.9.08

As moscas

[Trabalho sobre caligrafia árabe, de Samîr Malik]

(Um poema de Mahmûd Darwîsh traduzido do árabe por mim. Não é o meu preferido. É o que consigo traduzir.)


salmo 3

no dia em que as minhas palavras foram
terra
fui amigo de espigas de trigo

no dia em que as minhas palavras foram
fúria
fui amigo de grilhões

no dia em que as minhas palavras foram
pedra
fui amigo de arroios

no dia em que as minhas palavras foram
revolta
fui amigo de terramotos

no dia em que as minhas palavras foram
cabaças azedas
fui amigo do optimisma

quando as minhas palavras se tornaram
mel
as moscas cobriram-me
os lábios

Mahmûd Darwîsh

12.9.08

Kill the pain . XXXII . Quid est ueritas

[Daniele Crespi - Pietà]

للحقيقة وجوه كثيرة
(provérbio árabe)

Mais uma ginja e vamos. E íamos e voltávamos. Não sei para onde. Não interessa. A noite media-se pelo tempo que faltava para. Tu sabes. Por isso íamos e voltávamos. E se nem fôssemos. Se só voltássemos. Voltar a beber-te a boca morna e enterrar-me as mãos no ninho dos teus cabelos. Escalar as escadas. A avenida dos. Lembras-te. Unidos num abraço medonho. Medo. O medo. De que fosse a última noite. Sabe. Eu achava que aquela era sempre a última noite. Que amanhã a noite morria e eu com ela Não se ria. Se me visse na minha ridícula nudez. Os olhos esmagados e a boca seca. Sabe. Não sabe. Se soubesse. Se o senhor me visse. Depois enrolava-me no lençol suado. Sudário. Era um sudário. Onde apodrecia. Devagarinho. Todas as noites. Em silêncio. Sem saber quem és tu. E ainda assim eu dizia-te sempre que sim. A tua puta. Não faça essa cara. Sem uma vírgula de dignidade. Porque eu só queria trepar as escadas e abrir a porta devagarinho e entrar e entornar-me na tua cama em silêncio. E depois sentir-te a pele na minha e as mãos e. A noite media-se assim. O tempo que faltava até me amarrotar e me deitar fora até outro dia outra noite.

Transe

6.9.08

Misalignments

[William Blake - Songs of Innocense]
and look at this prepronominal funferal, engraved and retouched and edgewiped and puddenpadded, very like a whale's egg farced with pemmican, as were it sentenced to be nuzzled over a full trillion times for ever and a night till his noddle sink or swim by that ideal reader suffering from an ideal insomnia: all those red raddled obeli cayennepeppercast over the text, calling unnecessary attention to errors, omissions, repetitions and misalignments
James Joyce, Finnegans Wake

Kill the pain . XXXI . Humiliate uos

[Giotto - Lamentação sobre Cristo morto]
humiliate uos ad benedictionem
(do rito moçárabe)


Lembras-te. A mão descia e. Sempre a mão. Até ao fim até ao. E eu já não sabia se o suor era teu se era meu. Mas agora não era para me fazer mal. A mão. A minha. Ou talvez. Talvez sim. A verdade é que. Lembras-te. Foi mau. Muito mau. E nunca mais passava. Primeira vez. A minha. A tua não. Tu avisaste-me entre risos envergonhados. Mas nada do que viesse de ti era mau. Ou era. Era. Foi. Tanto faz. Já passou. Mas naqueles dias. Naquelas noites. Nada que viesse de ti. Mesmo quando não me vias nem me telefonavas. E depois veja lá. Aparecia-me. Assim. Como se ontem e anteontem e na semana passada. Percebe. Como se nos víssemos todos os dias. Como se fosse uma rotina. Uma rotina boa. De namorados. Mas dois que se viam de vez em quando. Quanto tu querias. Porque eu. Eu queria-te todas as noites. Beber beber-te os lábios e a língua agarrar-te morder-te o pescoço insultar-te as nádegas beijar-te entornar-me dentro de ti. Percebe. Era a primeira vez que eu. Até então a mentira. Há tantos que. A vida toda. Mentindo-se a si e aos seus. Mas eu. Eu não. Quer dizer. Ainda me minto. Mas não nisso. Ou. E ele aparecia. Como se. E dizia-me. Então hoje à noite às tantas horas no tal sítio. O tal sítio era um bar ou uma tasca daquelas. Sabe. Ginginha com elas. O chão tem cola e os sapatos fazem nhac nhac. E eu ia. Sicut ouis ad occisionem. Sem um protesto sem um tive saudades sem uma vírgula de dignidade. Ontem não me quiseste nem anteontem nem na semana passada. Hoje aqui me tens. Até ao fim.