17.9.08

Kill the pain . XXXV . Aflição

[José Antolínez - Morte da Madalena]

e se assim fosse, estando ele morto sem regresso, a sua vida seria uma lenta aflição por esperar quem nunca poderia voltar.
(valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores)


Não sei se lhe contei. Eu conto sempre isto. Quer dizer. Eu conto sempre o que aconteceu antes. Nunca o que aconteceu. Mas a si. O senhor é diferente. É o senhor que me vai arrancar a esta merda. Esta merda. Era assim que ele dizia. Esta merda. Aquela merda. Já não tenho aquela merda. Já me passou aquela merda. Lembras-te daquela merda. Conseguiram tirar tudo. E depois morreu. Com aquela merda. Mas não. Não é dele que lhe quero falar. Um dia إن شاء الله um dia falarei dele. Sabe que não há um dia uma noite em que não me afague a memória. Há sempre uma cara na rua. Um olhar um rir. Um gingar. E o peito deixa de me subir e descer e os olhos e a boca. Seco tudo seco. Como se eu morresse ali. Às vezes passa-me pela cabeça. Sabe. Se calhar não é por causa do olhar e do rir e do. Se calhar não é isso. Se calhar é ao contrário. Se calhar fui eu que morri um bocadinho. Assim uns segundos. E por isso consigo vê-lo outra vez. Os dois memória sem corpo. Juntos. Como antes. Antes daquela merda. Se calhar. Já tem tem passado pela cabeça. Se calhar quando o senhor me. Sabe. Porque eu estou farto desta merda. E afinal não lhe contei o que aconteceu. Quer dizer. O que aconteceu mesmo. Não aquilo que eu conto sempre. E que também aconteceu. Mas foi antes.

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