5.3.06

Lamento della Ninfa (I)

[Vermeer - Mulher tocando alaúde junto à janela]

A chuva esmagava a cidade, em torrentes violentas. Eu não gostava especialmente de Monteverdi. Ouvia sobretudo a polifonia ibérica do século XVI. Aquele período da transição para o século XVII não era dos meus preferidos. Ainda assim, decidi ir ao concerto. Não pelo programa, mas pelos intérpretes: Jordi Savall, dirigindo a Capella Reial de Catalunya, cuja discografia monopolizava já então a minha colecção de CDs. Levei comigo a Xana, que não conhecia Monteverdi. Tivemos algum trabalho para encontrar a Academia das Ciências, mas chegámos, mesmo em cima da hora. Mal tivemos tempo para apreciar a beleza da sala. O concerto começou, e com ele o encantamento. Na verdade eu nunca tinha ouvido Monteverdi bem interpretado. Estávamos em 1993, e comemoravam-se os 350 anos da sua morte. Diariamente a Antena 2 transmitia um madrigal. Ou a escolha não era a mais feliz, ou as interpretações não eram as melhores, ou eu não estava receptivo - nenhum desses madrigais diários me tocara. Mas ali tudo era diferente. A excelência da direcção de Jordi Savall, a voz irreal de Montserat Figueras. O facto de ser ao vivo. Algo ali me tocou. Profundamente. Houve um momento que marcou o concerto. No programa anunciava-se o Lamento della Ninfa. Mas algo inesperado acontecia: Montserrat Figueras abandona o palco, acompanhada pelo harpista. Durante alguns momentos não percebi o que se passava. Até que os vi reaparecer, na galeria que rodeia a sala, à altura de um primeiro andar. Então começou o sonho. Não posso descrever com palavras aquela que é uma das peças mais belas alguma vez escritas pelo Homem. Apenas as sensações. A voz indizível da Figueras. As lágrimas que escorriam da cara de tantos. A emoção que me apertava a garganta. No fim a sala rebentou num aplauso incontido. Quando abandonei a Academia das Ciências, naquela noite, eu era outro. Não sentíamos, nem a Xana nem eu, a chuva inclemente que se abatia cada vez mais intensamente sobre Lisboa. Apenas a música, que ainda ecoava nas nossas mentes.


Lamento della Ninfa

Modo di rappresentare il presente canto. Le tre parti, che cantano fuori del pianto de la Ninfa, si sono così separatamente poste, perchè si cantano al tempo de la mano; le altre tre parti che vanno commiserando in debole voce la Ninfa, si sono poste in partitura, acciò seguitano il pianto di essa, qual va cantato a tempo del'affetto del animo, e non a quello de la mano.


Non havea Febo ancora
recato al mondo il dì,
ch'una donzella fuora
del proprio albergo uscì.

Sul pallidetto volto
scorgeasi il suo dolor,
spesso gli venia sciolto
un gran sospir dal cor.

Si calpestando fiori
errava hor qua, hor là,
i suoi perduti amori
così piangendo va.

Amor, (dicea, il ciel
mirando, il piè fermò),
dov'è la fe
ch'el traditor giurò?
(miserella)

Fa che ritorni il mio
amor com'ei pur fu,
o tu m'ancidi, ch'io
non mi tormenti più;

(Miserella ah più, no,
tanto gel soffrir non può)

Non vo' più ch'ei sospiri
se non lontan da me.
No no, che i suoi martiri
più non dirammi, affè!

(Ah miserella. Ah più no no)

Perché di lui mi struggo,
tutt'orgoglioso sta,
che sì, che sì, s'il fuggo
ancor mi pregherà?

(Miserella, ah, più non
tanto gel soffrir non può)

Se ciglio ha più sereno
colei che'l mio non è,
già non rinchiude in seno
amor sì bella fè.

(Miserella, ah, più non
tanto gel soffrir non può)

Ne mai si dolci baci
da quella bocca havrai
ne più soavi, ah taci,
taci, che troppo il sai!

Si, tra sdegnosi pianti,
spargea le voci al ciel;
così ne' cori amanti
mesce Amor fiamma e gel.


Claudio Monteverdi, "L'Ottavo Libro de Madrigali", 1638
Texto de Ottavio Rinuccini

1 comentário:

Ana Claudia disse...

Maravilhosa! Simplesmente maravilhosa...