29.3.06

O bolso roto

[Agnolo Bronzino - Estudo de ciúme]

a E.

Não disfarçavas. Queria-lo. E era-te indiferente que eu estivesse ali, ao teu lado. Agias como se já nada houvesse entre nós. A nossa relação estava moribunda, era verdade. Ainda assim eu tinha esperança. Sempre tive esperança. Sou um optimista. E era um ingénuo. Achava que não me irias deixar, que acabarias por reconhecer que eu era o homem da tua vida. Por isso, embora com um nó na garganta, ia sorrindo, para ti e para ele. Em vão. Para vocês eu já não estava ali. Ignoravam-me. Ou sorriam-me com condescendência. Entretinham-se ambos num óbvio jogo de sedução. Ele queria-te. E era-lhe indiferente que eu estivesse ali, ao teu lado. Eu ia bebendo. Fumando. Num desespero mudo. Ele era mais feio do que eu - e naqueles meus quase imberbes 19 anos a beleza era algo a que dava suma importância. Era feio, ele, sim. Mas poderia dar-te outras coisas que eu não estava pronto nem disposto a dar. Tu sabia-lo. E para ti a beleza era o menos importante. Eu sorria, tentava entrar na conversa. Mas para vocês era como se eu há muito tivesse deixado a mesa. Estavam só os dois, sozinhos. Era escritor, dizia. Os teus olhos brilhavam. Pediste-lhe uma dedicatória. Num guardanapo escreveu-te uma história (quantas destas terá escrito, sentado em mesas de bares?). E, convenientemente, rabiscou o número de telefone. Depois encenou uma saída repentina e misteriosa, com uma última sequência de olhares de sedução, e veladas promessas de prazeres sem fim. Então fizeste uma coisa muito estúpida. Pediste-me que te guardasse o papel até ao fim da noite. E eu guardei-o. Num bolso roto. Eu tinha sempre os bolsos rotos, lembras-te?

Sem comentários: