21.6.05

ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ





[Ulisses cegando Polifemo - fragmento de cerâmica. Argos, século VII a.C.]

Teria uns 10 anos no máximo. Dedicava-me a um dos meus passatempos preferidos: enfiar-me na nossa despensa, e vasculhá-la. A nossa despensa não tinha produtos alimentares. Era antes uma pequena divisão, entre a cozinha e a casa de jantar, onde a minha mãe guardava livros que já não cabiam em mais lado nenhum, roupas, objectos diversos que não tinham já préstimo ou lugar onde serem arrumados... Eu adorava vasculhar essa autêntica mina de coisas velhas e surpreendentes. Todos os dias descobria alguma coisa excitante. Naquele dia descobri uma "Odisseia contada aos mais novos", de João de Barros. Se não era assim o título, era parecido. Já lá vão muitos anos. Na capa um gigante de um só olho - eu não sabia quem era Polifemo. Sentei-me em cima de alguma coisa, provavelmente um monte de roupa dobrada, e deixei-me ali ficar, horas seguidas, a devorar as aventuras de Ulisses e companheiros, comovido com a fidelidade de Penélope, cujo verdadeiro significado não conseguia entender na inocência da minha infância. Impressionou-me sobretudo o episódio de Polifemo. Sonhei, durante anos, com o gigante de um só olho, devorando os companheiros de Ulisses. Com o tronco afiado e endurecido no fogo com que o filho de Laertes cegou o ciclope. Com Ulisses e os companheiros sobreviventes saindo da caverna de Polifemo agarrados às barrigas dos carneiros do gigante. Com os urros de dor do ciclope. E sobretudo com o ardiloso estratagema de Ulisses, que à perguntas "como te chamas" respondeu "Ninguém". Muito me impressionei, na inocência da minha infância, com a astúcia de Ulisses. E como achei parvo o Polifemo, que, quando os outros ciclopes lhe perguntavam quem o matava, respondia "Ninguém me mata". Tolo, não percebeste logo a artimanha?

Lembro-me de que perguntei à minha mãe que história era aquela, e de ela me dizer que era uma história da Grécia antiga. Naquele dia não decidi que ia estudar Clássicas, pois não sabia o que era um curso superior. Mas decidi que queria saber mais, muito mais sobre a Grécia antiga e sobre Ulisses.

Muitos anos mais tarde decidi aprender latim - não havia grego na minha escola. Apaixonei-me pela língua, e não descansei enquanto não consegui também aprender grego. Mas isto contarei noutro dia. Aos 18 anos entrei no curso de Línguas e Literaturas Clássicas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Senti um arrepio indizível, quando, já no 2º ano do curso, na cadeira de Grego II, traduzi na íntegra o Canto IX da Odisseia, precisamente onde se conta como Ulisses enganou Polifemo.

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