1.4.06

Penélope

[Alexandre Archipenko - Coquette]

Um dia nunca mais nos vimos. Não de repente. Tínhamo-nos indo, aos poucos, deixando de nos ver. Mas naquele dia percebi que não nos voltaríamos a encontrar. Era apenas a minha segunda namorada a sério, e eu tinha já 18 anos. Não que fosse feio, dizem até que na altura era um belíssimo rapaz - testemunhos que me vão consolando nesta trintona decadência física. Não, não era feio. Não me interessava por namoros, era isso. Pelo menos não por estes namoros. E éramos estranhos, ambos. Invertíamos, por assim dizer, as convenções estabelecidas. Eu era espiritual, profundamente platónico. Ela era carnal, tremendamente libidinosa. Um dia, no metro, em hora de ponta, disse que tinha sido apalpada por um desconhecido durante vários minutos. Disse. Não se queixou. Em casa, no quarto, lançava-se sobre de mim, seminua, gemebunda. Eu reagia quase maquinalmente, fazendo o que me ia solicitando. E ela não era feia. Não, longe disso. Era uma daquelas raparigas de fazer parar o trânsito, passe o lugar-comum. Tinha uns olhos enormes, magnéticos, enquadrados por largos caracóis despenteados. É tudo o que recordo dela, hoje, década e meia volvida. Ah, sim, tinha um peito bastante desenvolvido, no qual me sufocava, em momentos de maior paixão. Eu inventava bebedeiras, más disposições e dores de cabeça. Tinha acabado de entrar no curso de Línguas e Literaturas Clássicas, descobria, fascinado, Umberto Eco, e devia ser um miúdo tremendamente chato. Além disso cultivava, ainda, a pose frígida e distante que criara no início da adolescência, para contrabalançar um físico que, então, era no mínimo repelente (o acne, os primeiros esparsos pêlos da barba...). Não era homem para ela. Não era homem ainda, sequer. Começou a procurar paixão noutros lugares menos frios. Eu sabia que ela me traía. Fê-lo até com um amigo meu, que me veio pedir, educadamente, autorização prévia. Quando começámos o nosso improvável namoro ela tinha vários pretendentes, que rejeitara em meu favor. Agora estava arrependida. Via-se na maneira como me olhava. Recomeçou a recebê-los. Nunca assumimos a ruptura. Apenas deixámos de nos beijar, passámos a relacionar-nos como simples conhecidos. Quando, não sei exactamente. Foi aos poucos. Eu continuei a frequentar a casa, por amizade a uma das outras moradoras. Os pretendentes enxameavam agora a sala, e também o quarto que fora testemunha da minha frigidez. E isso não me entristecia. Sentia mesmo um suave alívio, quando a via mais romântica para com algum deles. A indiferença foi-se instalando entre nós. As visitas outrora regulares passaram a ser cada vez mais espaçadas. Ela entretanto tinha iniciado uma tórrida relação com um dos rapazes que rejeitara em meu favor. Os injustificados ciúmes dele tornaram as nossas já frias relações ainda mais distantes. Um dia nunca mais nos vimos.

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