21.7.06

A angústia

[Bosch - Cristo carregando a cruz]

Disse-se que eu tinha morrido. Ou que estava moribundo, ligado a uma máquina. Inventaram-se os pormenores mais extraordinários sobre o meu acidente e sobre o meu estado. Vivo ainda ou já morto. Era essa a dúvida que pairava sobre a escola. E de repente eu ganhara o estatuto de assombração heróica. Foi sem capacete. Ele é dos duros. O grandalhão esquisito está entre a vida e a morte. Não, já morreu. Estão só à espera da autorização da família para desligar as máquinas. Ele até era fixe. O meu nome ecoava pelos corredores da escola. Ganhara o respeito de todos, estatuto que só se consegue quando se morre ou se está perto disso. E eu, para todos os efeitos, estava morto ou perto disso. Chegavam-me estas notícias da minha morte ao remanso do meu quarto, onde, por mera precaução, teria de permanecer uma ou duas semanas em repouso absoluto. Sem televisão. Sem música. Sem livros. As dores de cabeça eram intensas. Explicaram-me que eram os líquidos do cérebro ainda abalados pelo choque. Ou coisa parecida. A minha memória não é já a mesma. Por isso não sentia a falta de nenhuma daquelas coisas. Aborrecia-me de morte. Para me distrair imaginava o regresso à escola. Seria tudo tão diferente. Deixaria de ser um adolescente isolado. Passaria a ser apaparicado por toda a gente. Pedir-me-iam que contasse o acidente com todos os pormenores. Seria o centro das atenções. Conhecido por todos. Finalmente popular. Talvez até houvesse por fim raparigas interessadas em mim. Seria tudo tão diferente. Uma angústia invadia-me o coração. Maior do que a dor de cabeça. Enfiava-me debaixo dos lençóis. Fechava os olhos furiosamente e amaldiçoava o momento em que tinha decidido esticar as pernas montado numa mota sem capacete.

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