24.7.06

O sofá

[Fragonard - Aula de música]

Estava quase na hora. Pegava num bom livro. Tinha de ser bom. Mas não demasiado bom. Não me podia absorver em demasia. A escolha era por isso difícil. Um Eça, por exemplo, estava fora de questão. Demasiado bom. Olhava desencorajado as prateleiras onde se empilhavam tantos livros que nunca teria tempo de ler. Alguns demasiado bons. Acabava muitas vezes por escolher uma enciclopédia. Ou um livro de arte. Algum que pudesse folhear indolente pela noite dentro. Com prazer. Mas não em demasia. Ou um policial. Qualquer coisa. Só não podia ser demasiado bom. Raramente o mesmo livro passava de uma noite para a outra. Ao contrário dos livros mesmo bons, que me acompanhavam durante dias sem fim. Às vezes semanas. Não, estes não podiam ser tão bons. Tinham de ser interessantes. Mas não em demasia. Não fosse ficar demasiado absorvido pela leitura. Acabava por escolher quase aleatoriamente. Tanto tempo. Tanta hesitação. Para nada. Às vezes levava dois ou três, para ir folheando, para ir lendo com sossego e sem demasiada atenção. Sentava-me no sofá castanho ao lado da aparelhagem, procurava os auscultadores, sintonizava na Antena 2. Música na Madrugada. Começava à uma da manhã, se bem me lembro. Havia sempre uma voz feminina, não demasiado doce, que declinava monótona as obras a ouvir até o dia raiar. Dava pulos o meu coração quando reconhecia algum nome barroco. Não tinha nunca grandes esperanças de ouvir nomes renascentistas. Nem medievais. A Antena 2 nunca foi muito amiga da música antiga. Os barrocos já me deixavam perfeitamente satisfeito, porém. Um J. S. Bach, um Haendel, um Vivaldi, um Couperin, um Charpentier. Às vezes havia um Monteverdi. Anotava numa folha de papel a hora prevista para as obras que mais me interessavam e lançava-me sobre o livro. Auscultadores ligados. Ouvia mais do que lia. É que não estava ali para ler. Isso fazia durante o dia. Queria ouvir música. E sentia aquela necessidade inexplicável de me fazer acompanhar de um livro. Não demasiado bom, claro. Não fosse absorver-me em demasia, não fosse distrair-me da música.

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