3.7.06

Não vi

[Parmigianino - Estudo]

Houve aquela madrugada em que te beijaram. E eu quase morri. Não me lembro de quem foi. Aliás, eu não vi. Talvez tivesse ido buscar uma bebida naquele momento. Foste tu que me contaste. Viste a lata do gajo, beijou-me! Não sei se soubeste o quanto me doeu. Naquela madrugada o regresso a casa não foi como era costume. Não havia em mim a habitual alegria pacífica de ter estado contigo. De te ter sentido o calor do corpo. O teu hálito. A paz felicíssima. Tudo isso me fora roubado por aquele beijo. Chorava por dentro. Por dentro. Por fora a esfinge de sempre. Falavas-me eu eu não te respondia. Não estava zangado, como pensaste. Estava vazio. Inerte. Não sabia o que fazer. Mal te ouvia. Um beijo, imagina tu!, um beijo!, nos lábios, assim de fugida, mas foi um beijo! Desesperado. Não sei o que sentia. Ciúmes? Não. Alimentava a fantasia de que me amavas como eu te amava. Imaginava que só eu te poderia ter, que não te darias a mais homem nenhum no mundo. E tu parecias dizer-mo todos os dias. Sem palavras. Na maneira como me olhavas. No teu sorriso. No carinho que me dispensavas. Nos ciúmes. Ou então não. Ou então era eu que via o que não era, à força de tanto desejar. De tanto te desejar. Tantas vezes sentados lado a lado muito juntinhos. E eu com vontade de te beijar. Mas não. Deixava-me ficar. Bastava-me a tua companhia. Foi assim que percebi que te amava. Quando estar contigo se tornou mais importante do que ter-te. Um beijo, vê lá tu. Eu via. E doía. Tanto, tanto. Rias-te com um brilho diferente nos olhos. Preferia que não mo tivesses contado. Alguém tivera a coragem de fazer aquilo que tanto me martirizava. E que eu tanto queria. E tu rias-te. Como seria, se tivesse sido eu a beijar-te? Rir-te-ias? A dúvida devorava-me. Olhava-te e não sabia o que te ler nos olhos. Beija-me, parvo, já viste que não me importo. Não, isto era eu a sonhar. Nos teus olhos apenas a habitual traquinice. Beijou-me, o tipo, vê lá tu! Mas eu não via nada. Não percebia a tua voz. Parecia-me gozona. Ou fascinada. Ou talvez... Não sei. Tinha medo. Caixa de Pandora entreaberta. Roía-me as entranhas. Até então mantivera-me numa confortável inacção. Amava-te em segredo e tu sabia-lo. Não ousava avançar, com medo de te perder. Sentia que nunca te teria. Era impossível. Sonhava que me amavas mas que nunca terias força para dar o passo decisivo. Nem eu a tinha. Estava, ainda assim, satisfeito. Não te teria nunca, mas não fazia mal. Bastava-me a tua presença. A tua companhia. Satisfazia-me aquele namoro espiritual não confessado. Porque achava que era o máximo que me poderias dar. Mas não. Agora tudo parecia mudar. Talvez estivesse enganado. Talvez tivesse constuído o meu sonho sobre fundações que se esboroavam. Alguém se me tinha antecipado. Alguém dera o passo decisivo. E esse alguém não era eu. E eu não tinha coragem nem forças. Podia ter avançado. Tentar ser feliz. Contigo. Podia ser o homem mais feliz do mundo. Mas tive medo. Acobardei-me. Não sabia se tu querias ser feliz dessa nova maneira. Não sabia se eu queria ser feliz dessa nova maneira. Talvez preferisse a felicidade cómoda em que me banhara até então. Ou não. Ensandecia. Invadia-me a tentação. Mas também o medo. Medo de tentar. Não conseguia perceber o que me dizia o teu olhar. Já viste que é possível, não desistas de mim. Isto era eu a sonhar. Na verdade nunca percebi o teu olhar. Naquela madrugada quase morri, e tu não deste por isso. Viste-me o gajo, a beijar-me? Não, não vi. Posso dormir em tua casa? Podes, claro.

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