15.7.06

Et si uolueris attendere magna pars uitae elabitur male agentibus maxima nihil agentibus tota uita aliud agentibus

[Nicolaes Maes - Anciã]

Não me viu. Nariz vulturino apontado para um grosso livro de capa azul. Segurava-o afastado dos olhos. O livro, não o nariz. Inclinada reverentemente. Como se uma relíquia. Ou um livro sagrado. Mais severa do que o habitual. De vez em quando assentia com a cabeça. Lentamente. Com aquele velho ar aristocrático que tanto me fascinava. Os lábios apertados, exangues. Pronta a beijar as páginas amareladas. Anciã tão sábia. Sento-me no banco em frente. Não deu por mim. Nem eu me atrevo a despertá-la. Completamente absorvida. Uma travagem mais apertada, e desvia o olhar. Oh, está aí, não tinha dado por si. Ouça isto. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente (*). Espantoso nao é? Voltou a mergulhar o livro dos olhos e esqueceu-se de novo de mim. Não. De vez em quando virava os olhos na minha direcção e sorria cúmplice.



(*) Séneca, Epistulae morales ad Lucilium, 1. Tradução de J. A. Segurado e Campos (edição da Gulbenkian), de quem tive a honra e o prazer de ter sido aluno.

1 comentário:

Anónimo disse...

Séneca é de facto uma grande influência, pelo que vejo. E posso compreender que J.A. Segurado e Campos também seja. Como leitor das Epistulae... em português, tenho uma enorme dívida de gratidão para com ele. Na sua tradução, Séneca parece-nos ter escrito originalmente em português.
Diz-me muito o «primum argumentum compositae mentis existimo consistere posse et secum morare», da Ep. 2.