1.7.06

Cem

[Rembrandt - Leão]

Foi há cem anos. Podíamos ter feito batota, como outros, e teríamos comemorado os cem anos em dois mil e dois. Mas não. Comemoramos na data certa. Dois mil e seis.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. É provável que não. Tenho uma ideia muito vaga de ter sido do Belenenses, e há poucos meses descobri uma fotografia de mil novecentos e setenta e quatro, em que, ao colo da mãe, seguro na mão uma bandeira do Benfica. Não tinha ainda três anos, não tinha vontade, não tinha livre arbítrio. Só isso pode justificar semelhante opróbio. O sorriso da mãe é efusivo. Não sei se foi antes se depois do jogo. Era um Sporting - Benfica. O Benfica parece que ganhou, mas o Sporting foi campeão, e é isso que interessa. O meu ar desconsolado reconforta-me. Sentir-me-ia incomodado com aquela bandeira na mão, certamente ali posta pela mãe. Eu devo ter chorado, devo ter feito birra. Espero que assim tenha sido. Não quero perguntar à mãe se assim foi. Já me bastou o choque de ter visto aquela fotografia.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Não devo ter sido. Gostava de ver futebol. Queria ir ver um jogo ao estádio. Pedi ao meu pai que me levasse. Ele disse que sim, que me levava, mas só se eu fosse do seu clube. Eu não sabia qual era o clube do meu pai. Não sabia quase nada do meu pai. Nem hoje, três décadas depois. Corri para a minha mãe, perguntei-lhe qual era o clube dele. Respondeu-me com desprezo, como se lhe apontasse um defeito. Eu corri para o meu pai. Sou do Sporting. Levas-me à bola, agora? Prometeste! Não levou. Nunca.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Possivelmente não. Mas um dia fui ao velho Estádio de Alvalade. Não com o meu pai, mas num passeio da escola. Mil novecentos e oitenta, provavelmente, ou mil novecentos e oitenta e um. O Sporting tinha sido campeão naquele ano. Lembro-me de quase nada. Escadarias que então me pareciam enormes. Não era dia de jogo. Passearam-nos pelo Estádio. Naquele dia treinavam as estrelas do atletismo. Olha o Carlos Lopes! Havia também jogadores da equipa de futebol, que nos autografavam "posters" e cadernos. Eu tinha um "poster" da equipa campeã, cheio de autógrafos. Perdi-o.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Talvez não. Mas houve aquele jogo, em mil novecentos e oitenta e dois, contra o Benfica. Ganhámos. O Bento foi expulso, depois de agredir um jogador nosso. Não tenho a certeza do resultado. Três a um, talvez. Exultávamos, a minha irmã e eu. A mãe abatida. Não lhe bastava o pesadelo que vivíamos, migrados em Olhão. Agora o seu Benfica perdia, e os dois filhos mais velhos pulavam de alegria. Fomos campeões. Depois veio o longo, longo interregno.

Não sei se sou sportinguista desde pequeno. Mas tornei-me sportinguista desde muito cedo. Porquê? Não sei. Talvez para o meu pai me levar à bola. Não levou. Talvez por ter sido hipnotizado pelas listas verdes. Não sei. Mas tornei-me sportinguista. Ferrenho. Fanático. Quase verti lágrimas de alegria no dia catorze de Maio de dois mil, quando o Sporting voltou a ser campeão, tantos anos depois daquela noite em Olhão, tantos anos depois daqueles nossos pulos de alegria infantil. Nunca deixei de ser sportinguista, apesar dos sucessivos insucessos. Entusiasmei-me com aqueles inícios fulgurantes, nos campeonatos dos anos oitenta e noventa. Angustiei-me com os famigerados natais. Chorei com as derrotas. Aguentei a chacota dos colegas de escola benfiquistas, durante anos. Nunca esmoreceu o meu sportinguismo. Pelo contrário, crescia a cada ano. Quase chorei naquela dia catorze de Maio de dois mil. Pensei que morria de emoção. Pensei que morria e não via o meu Sporting campeão, que não via a recepção apoteótica aos jogadores. Mas não morri.

Não sei o que me fez sportinguista. Mas sei que o sou. Tremendamente. Intensamente. Loucamente.

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