30.9.07

Kill the pain . VIII . Maridhtu

[Domenico Beccafumi - Virgem com menino Jesus e São João Baptista]

you light my ways through the club maze

we would struggle through the dub daze
(cantado por Massive Attack)

Enrolei-me em mim mesmo e não sei se dormi. Se vigilava (1). Se dormia (2). Se isto é sonho. Se é vigília. Se os tijolos. Os trinta e cinco. Se já os puseram. Um a um. E me deixaram aqui. Sem luz. Sem dor. Livre por fim (3). E se aquilo que eu vi. Se o vi se o sonhei.

Às vezes é como se enlouquecesse. Pois se eu sou são. Se fosse. Não sou (4).

Primeiro havia as trevas. E eu não via nada. E depois veio a luz. Assim tão. Assim como o Sol de manhã. Fria. E havia raios e estrondos. E não havia nem porta nem parede. Só luz. E depois fiquei cego.

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(1) Quia nesciebam diem neque horam.
(2) Habui somnum imaginem mortis.
(3) ان شــاء الله
مــرضــت (4

27.9.07

O chá

[Honthorst - Jovem bebendo]

by the light of dawn

a midnight blue ... day and night ...
I've been missing you

I've been thinking about you baby

almost makes me crazy

(cantado por Massive Attack)


Aqui. Toca aqui. No peito. Vês. Sentes. Dói. Por isso não falo. Ainda que os teus olhos me toquem. E me digam o que é o que foi o que tens. Não tenho não foi não é. E devia olhar-te e dizer-te que me custa levantar da cama de manhã. Porque dói tanto. E o dia não acaba. E se pudesse deitava-me e não voltava a. O resto da minha vida. Havia de se me colar ao corpo a cama. Faltam-me as forças. E cada dia que passa. Sabes. Quando o Sol nos martela a cabeça. E os segundos são dias. Não. Tu não sabes. Porque eu não falo. E agito a chávena devagarinho. Assim. Para não entornar o chá. Para te distrair os olhos. Tirá-los de mim. Noli me tangere. E se um dia.

24.9.07

The carnival is over

[Munch - Florescer doloroso]
"The Carnival is Over"
(Dead Can Dance)

Outside
The storm clouds gathering,
Moved silently along the dusty boulevard.
Where flowers turning crane their fragile necks
So they can in turn
Reach up and kiss the sky.

They are driven by a strange desire
Unseen by the human eye
Someone is calling.

I remember when you held my hand
In the park we would play when the circus came to town.
Look! Over here.

Outside
The circus gathering
Moved silently along the rainswept boulevard.
The procession moved on the shouting is over
The fabulous freaks are leaving town.

They are driven by a strange desire
Unseen by the human eye.
The carnival is over

We sat and watched
As the moon rose again
For the very first time.

20.9.07

Kill the pain . VII . Cold mirror

[Geertgen - Os ossos de São João Baptista]

I seen you go down to a cold mirror
it was never clearer in my era so
you lick a shine upon your forehead or
check it by the signs in the corridor

(cantado por Massive Attack)

Há quanto tempo. Uma semana. Duas. Ou mais. Um mês. Trinta dias. Trinta e cinco. Não interessa. Aqui o tempo não foge. E eu já não sei se isto é um sonho grande grande. Porque eu não vejo não ouço nada. Só negrume vazio. Como se já. E ainda não vi o meu tubarão. Pour faire mon requiem. Nem pedi que pusessem o primeiro tijolo. Porque se isto é um sonho. Então ontem. Se eu estiver a dormir. Se isto é um sonho grande sem fim. Então ontem era verdade. E aquela luz. E as chamas. E os. Não. Não. Ontem foi um sonho. Não. Foi. É. Tem de ser. Porque se não.

19.9.07

Noches muertas

[Jacques-Louis David - A morte de Séneca]

love kills, hey,
drills you through your heart

love kills, tears you right apart

it won't let go, it won't let go
love kills, yeah

(cantado por Freddie Mercury)


Ya lo ves. Noches muertas y días sin ganas. Y al alba ese dolor que duele tanto. Y allí me quedo. En silencio. De cara a la pared. Piensando en tí. Y en lo que podría haber sido. Y que no has querido tú. Hombre. A veces me parece que. Pero ya lo ves. No ha cambiado nada. Sigo aquí. Solo. No querías hacerme daño. Pero hombre. No sería peor que lo que estoy viviendo. Porque lo que me hizo daño. Sabes. Verdaderamente lo que me hizo daño. Lo que todavía me haz daño. Bueno. Ya lo sabes.

Fatal

[Bosch - Jardim das delícias terrenas]

Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Porquê
Esperar?
- Tudo é
Sonhar.

Fernando Pessoa

16.9.07

Kill the pain . VI . Kaputt

[Andrea Solari - Salomé com a cabeça de São João Baptista]

I turn a stone I'll find you there
into reflected light I'll stare

(cantado por Massive Attack)

Tubarão em cela escura. Si je vois un requin je fais mon requiem. Le mien. A sério. Se o vir passar à minha frente levanto-me e peço o primeiro tijolo. Se eu conseguisse ver alguma coisa. E quando os trinta e cinco tijolos. Sem luz sem ar sem dor sem. Agora ainda posso apalpar a parede achar a porta. Sair. Como se tudo não tivesse passado de um engano. Com licença eu estava enganado agora com licença sim sim vou-me embora espero que não lhe faça diferença com licença. Podia levantar-me. Sim. Ir embora. Esquecer esta loucura. Porque é verdade que dói dói tanto. E vem-me à boca o sabor a sangue. É o peito que me apertam e me esmagam. Alguma coisa se abriu lá dentro. E dói tanto dói tanto. E não vai parar não vai morrer. Já não é tempo. Já não é tempo de esperança. Nunc est tempus moriendi. O que é que me aconteceu. É que eu dantes acreditava. E nunca me passaria pela cabeça. Achava sempre que um dia passava. E sustinha-me. Que não havia coisa nenhuma definitiva. Que agora doía mas amanhã já não. Que cedo ou tarde alguma coisa. Mas esta dor é tanta e é tão grande.

Ontem tive um sonho. Foi o meu primeiro sonho desde que aqui cheguei. As noites têm sido brancas. Ou negras. Porque adormeço e não vejo. E acordo e está tudo negro. Às vezes penso se me terão cegado. Porque não vejo nada. Nem se estreitar os olhos e fizer força força. Vai ser assim quando puserem o último dos trinta e cinco tijolos. Será a fome. Ou a sede. Ou tudo. Porque agora ainda vou comendo e bebendo. Deve ser enquanto durmo que eles. Talvez abram a porta devagarinho. Assim. Para eu não ouvir nada. Depois acordo e ponho o nariz no ar e fungo como um rato. Chego-lhe pelo cheiro. Pão. Leite. E água. A água também cheira. A rã e a lodo. Quando eu chegava a casa cheio de lama. E a mãe gritava onde é que tu andaste. Num charco a apanhar rãs. Água grossa enjoativa. Depois nem isto. Deve ser a sede. Porque sem comer aguenta-se tanto tempo. Sem beber não. Talvez devesse repensar. Ou. Porque vejamos. A dor da sede e da fome. Alguns dias. Não mais. Posso aguentar. Sim. Pior do que a outra dor não será. E depois acabou tudo. Acabam-se as dores. Kaputt. Mas e se. Porque nada me garante. E talvez um dia. Aquilo que tanto me dói hoje. E que sempre doeu. Trinta e seis. Não. Já chega.

Foi um sonho bonito. Se foi um sonho. Porque às vezes já não sei onde estou. Nem quando. Nem se ainda. Mas agora estou tão cansado. Depois conto. Conto a quem. Com quem estou a falar. Louco. Só me faltava. Não. Primeiro a dor. Agora isto.

14.9.07

وَإِذَا الْقُبُورُ بُعْثَرَتْ

[Salma Arastu - Allah VI]

إِذَا السَّمَآءُ انفَطَرَتْ
وَإِذَا الكَْوَاكِبُ انتَثَرَتْ
وَإِذَا الْبِحَارُ فُجِّرَتْ
وَإِذَا الْقُبُورُ بُعْثَرَتْ
عَلِمَتْ نَفْسٌ مَّا قَدَّمَتْ وَأَخَرَت
Alcorão 82:1-5


'ida s-sm'â'u anfaTarat
wa-
'ida l-kwâkitu antatharat
wa-'ida l-bihâru fujjirat
wa-'ida l-qubûru buºtharat
ºalimat nafsun mma qaddamat wa-'ahrat

Quando o céu se estilhaçar,
e quando os planetas se espalharem,
e quando os mares se misturarem,
e quando as tumbas se abrirem
- toda a alma conhecerá o que avançou e o que atrasou.

13.9.07

Epitaphius quartus

P9120109
[Painel de azulejos do século XVIII - Convento da Graça (Torres Vedras)]

اضحك يضحك العالم معك وابك تبك وحدك
ri, e o mundo ri contigo; chora, e chorarás sozinho

Depois entornem-me vinho. Branco. Última bebedeira. Solitária. Debaixo da terra dura. Quae non leuis mihi erit. E não pensem mais em mim. Eu não estou. Nunca estive. Esqueçam-me. Enquanto baixo a cabeça. E espero o golpe. Porque eu também vos tenho esquecido. Ibo nunc in malam rem. Que a vida vos seja leve. Valete.

11.9.07

Francamente no recuerdo si esa noche nos suicidamos

«A. — Distraídos en razonar la inmortalidad, habíamos dejado que anocheciera sin encender la lámpara. No nos veíamos las caras. Con una indiferencia y una dulzura más convincentes que el fervor, la voz de Macedonio Fernández repetía que el alma es inmortal. Me aseguraba que la muerte del cuerpo es del todo insignificante y que morirse tiene que ser el hecho más nulo que puede sucederle a un hombre. Yo jugaba con la navaja de Macedonio; la abría y la cerraba. Un acordeón vecino despachaba infinitamente la Cumparsita, esa pamplina consternada que les gusta a muchas personas, porque les mintieron que es vieja... Yo le propuse a Macedonio que nos suicidáramos, para discutir sin estorbo.

Z (burlón). — Pero sospecho que al final no se resolvieron.

A (ya en plena mística). — Francamente no recuerdo si esa noche nos suicidamos.»

Jorge Luis Borges, Diálogo sobre un diálogo

10.9.07

All I loved I loved alone

[Caspar David Friedrich - Monge junto ao mar]

From childhood's hour I have not been
As others were — I have not seen
As others saw — I could not bring
My passions from a common spring —
From the same source I have not taken
My sorrow — I could not awaken
My heart to joy at the same tone —
And all I loved — I loved alone —
Then — in my childhood, in the dawn
Of a most stormy life — was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still —
From the torrent, or the fountain —
From the red cliff of the mountain —
From the sun that round me rolled
In its autumn tint of gold —
From the lightning in the sky
As it pass'd me flying by —
From the thunder and the storm —
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)

Of a demon in my view. —

Edgar Allan Poe, Alone

Kill the pain . V . Syllables

[Caravaggio - Salomé com a cabeça de São João Baptista]
you blind me with flash bulbs
and puzzle me with syllables
(cantado por Massive Attack)

Fechar os olhos. Já estava. Foi-se. A dor. Seria tão fácil. Mas não. Há sempre uma escolha. E o homúnculo não me largou os olhos enquanto eu não. Escolhi a parede. Porque veneno não. Muito rápido. E eu quero gozar cada momento. Sentir-me ir. Suportar a dor. Finalmente. Desprezá-la. Porque vai acabar. Tudo. E agora já nada tem importância. Sofrerei. Paciência. Não mais do que me tenho doído. Uma última fome. Assim seja. Não me importo. Porque só dói quando não se vê fim.

'Os tijolos serão colocados à razão de um por hora. A cada badalada. Trinta e cinco. Porque se o senhor se arrependesse. Não não. Eu sei que não. Mas é um pro forma. Sabe? Sabe. Eu sei que sabe latim. Já não há muitos. Período irreal. Se se arrependesse. Não. Não se arrependerá. Porque se puxou a corrente e fez soar a sineta. Se entrou. Se me seguiu até aqui. Tão decidido. Não se vai arrepender. Mas suponhamos. Se se arrependesse. Está a ver. Teria trinta e cinco horas para se arrepender. Mas não tem. Porque não se vai arrepender. Sabe? Quando colocarem o trigésimo quinto tijolo. Acabou-se. Até ao trigésimo quarto ainda poderia. Sabe? Dizer qualquer coisa. Que já não queria. Que tinha sido um engano. Que queria voltar àquela dor que lhe esmigalha o peito. Mas não quer. Sabe? Porque lá fora está frio. Tanto frio. E aqui não. Aqui não terá frio. Nem fome. Nem sede. Nem dor. Aqui encontrará o repouso que tanto procura. Requies aeterna. Sabe latim não sabe? Sabe. Requiem aeternam dona eis Domine.'

Depois calou-se e enfiou a cabeça numa manga imunda. Como se procurasse. Não sei. Qualquer coisa. Não me interessa já. Tirou a cabeça para fora e voltou a fungar à maneira dos ratos. Voltou-se para sair. Virou a cabeça uma última vez. E agora vejo-lhe os dentes brancos ardendo no escuro. Já não abafa o escárnio. E se eu me. Porque.

'Já viu o seu tubarão? Sabe que em francês se diz requin? Si vous voyez un requin faites votre requiem. Avez-vous vu votre requin? Pas encore? Chame quando o vir. Eu virei.'

9.9.07

A far better expedient

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel direito)]

«This hideous murder accomplished, I set myself forthwith, and with entire deliberation, to the task of concealing the body. I knew that I could not remove it from the house, either by day or by night, without the risk of being observed by the neighbours. Many projects entered my mind. At one period I thought of cutting the corpse into minute fragments, and destroying them by fire. At another, I resolved to dig a grave for it in the floor of the cellar. Again, I deliberated about casting it in the well in the yard - about packing it in a box, as if merchandise, with the usual arrangements, and so getting a porter to take it from the house. Finally I hit upon what I considered a far better expedient than either of these. I determined to wall it up in the cellar - as the monks of the middle ages are recorded to have walled up their victims.»

Edgar Allan Poe, The Black Cat

Kill the pain . IV . Bloodstains

[Bernardino Luini - Salomé com a cabeça de São João Baptista]
more sweet
more sweet

iconography fucks with me

you look great in bloodstains

(cantado por Massive Attack)

Sicut ouis. Sinto-lhe os olhos miúdos lambendo-me o corpo. E os lábios esmagados para não soltar o escárnio. Torce o nariz de rato e cospe um 'venha' quase inaudível. E eu vou. Porque não tenho para onde ir. E por isso tanto faz.

A dor. Lá está. Outra vez. Esmagando-me o peito. Nem aqui. Porque eu pensava que. Afinal. O frio. E a dor. Como lá fora. E o medo. Não. Isto sou eu. É o medo. O medo de. Basta. Tem de ser. Não há nada lá fora. Só o escuro. E o frio. Já chega. Que tenho eu a perder. Ou a ganhar. E a dor. E se um dia tem de ser. E a angústia. E este aperto que me rebenta as entranhas. Que seja agora. Para quê esperar. É a mesma coisa. Agora ou depois. Não. Não é. Se for agora custa menos. Não aquilo. Porque aquilo é igual. É sempre igual. Custa menos o resto. Se for agora. Porque se não podem ser anos. Décadas. De aperto. De medo. De dor. Mas e se. Não. Se até agora não. Trinta e seis. Mais outros tantos de acordo com as estatísticas. E eu não aguento. Não dá.

'Entre. Não tenha medo.'

Vai ser aqui então. Achava que ia ser diferente. Uma masmorra. No fundo de um poço fundo. Com correntes presas em argolas pregadas na parede. E musgo. Muito musgo em pedras gigantes. Não sei. Carceri d'invenzione na minha cabeça. Não era isto. Decepcionante. Uma cela nua. Nem uma corrente. Nada. Nem catre. Para quê. Se eu não vou dormir. Só vou. E depois acaba-se esta dor. As entranhas calcadas pisadas sem dó. Tudo. Ou não. Porque. E se. Não sei. Já não sei. Nada. E por isso o melhor é. Porque voltar lá para fora. Para a dor que me arranca as tripas. Não não não. Ad occisionem.

Walled up

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel direito)]

«As I said these words I busied myself among the pile of bones of which I have before spoken. Throwing them aside, I soon uncovered a quantity of building stone and mortar. With these materials and with the aid of my trowel, I began vigorously to wall up the entrance of the niche.

A succession of loud and shrill screams, bursting suddenly from the throat of the chained form, seemed to thrust me violently back. For a brief moment I hesitated - I trembled. Unsheathing my rapier, I began to grope with it about the recess; but the thought of an instant reassured me. I placed my hand upon the solid fabric of the catacombs, and felt satisfied. I reapproached the wall. I replied to the yells of him who clamoured. I reechoed - I aided - I surpassed them in volume and in strength. I did this, and the clamourer grew still.

It was now midnight, and my task was drawing to a close. I had completed the eighth, the ninth, and the tenth tier. I had finished a portion of the last and the eleventh; there remained but a single stone to be fitted and plastered in. I struggled with its weight; I placed it partially in its destined position. But now there came from out the niche a low laugh that erected the hairs upon my head. It was succeeded by a sad voice, which I had difficulty in recognising as that of the noble Fortunato. The voice said -

"Ha! ha! ha! - he! he! - a very good joke indeed - an excellent jest. We will have many a rich laugh about it at the palazzo - he! he! he! - over our wine - he! he! he!"

"The Amontillado!" I said.

"He! he! he! - he! he! he! - yes, the Amontillado . But is it not getting late? Will not they be awaiting us at the palazzo, the Lady Fortunato and the rest? Let us be gone."

"Yes," I said "let us be gone."

"FOR THE LOVE OF GOD, MONTRESOR!"

"Yes," I said, "for the love of God!"

But to these words I hearkened in vain for a reply. I grew impatient. I called aloud -

"Fortunato!"

No answer. I called again -

"Fortunato!"

No answer still. I thrust a torch through the remaining aperture and let it fall within. There came forth in return only a jingling of the bells. My heart grew sick - on account of the dampness of the catacombs. I hastened to make an end of my labour. I forced the last stone into its position; I plastered it up. Against the new masonry I reerected the old rampart of bones. For the half of a century no mortal has disturbed them.

In pace requiescat!»

Edgar Allan Poe, The Cask of Amontillado

6.9.07

Kill the pain . III . Narcosis

[Mattia Preti - São João Baptista diante de Herodes]

back to sleep

yeah more sweet narcosis

(cantado por Massive Attack)

Bom bom e se agora o homúnculo. Porque é que me olha desta forma. Não é pena. E não é bem curiosidade. É como se. Sicut ouis ad occisionem. Tão óbvio. Havia uma cabeça de boi e cheirava a sangue. E o homem de avental branco tinto de vermelho escuro. Abria a boca e ria-me os dentes amarelos. Assim. Cutelo na direita. A esquerda varrendo a bancada e o cheiro a morte. Se era das mãos se do ar. Não sei. E eu olhava para cima e via os cornos. E eu tão tão cá em baixo. Da cabeça de boi empalhada. Ou seria. A kidney oozed bloodgouts on the willowpatterned dish: the last. Joyce. Tenho os Dubliners para acabar antes de. Em inglês. Porque em tradução já. Depois fechava a boca seca e afiava o cutelo num espeto de ferro. Zinczinczinc. E eu já não estava ali. Esquecido. Deitando os olhos para cima. E o cutelo telo. Pegava num monte de carne e. Baque seco que me estoirava os ouvidos. Cortava nacos sangrentos. E olhava para trás e mostrava-me os dentes. Estás a ver. E eu via. Outra vez ali. Depois a mão de sangue pegava num naco de carne. Oozing bloOd. Bloodgouts. Lombo. Queres lombinho. Toma. Prenda do avô. Sabes como se matam as vacas. Não sabes. Eu explico. E eu chorava e agarrava-me às pernas da mãe. E ele deitava-me este olhar. Não era pena. Nem bem curiosidade. Era assim.

5.9.07

O nevoeiro

[Bosch - A adoração dos magos (pormenor)]

Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

Sophia de Mello Breyner Andresen

4.9.07

ألم

[Munch - Luar]

في شُباكي ضَوء القَمَرِ
إنّي تَعْبانُ جداً وقَلبي جُرْحٌ
لعلّي مَريضٍ
لعلّي سالمٍ
أرَى دَمي ومَوتي

3.9.07

Frio frio frio

[Dürer - Auto-retrato]

Frio frio frio. E se eu ficasse mais um bocadinho. É pior. Enfiar a cabeça debaixo dos cobertores pesados e não sair daqui. E se eu nunca mais saísse daqui. Amarrado a esta cama. Como aquelas santinhas que nunca se levantam e passam a rezar o tempo todo da vida que o seu deus lhes deu. Isso não queria. Mas a ler. Enrolado nos cobertores a vida toda. A ler. Não ter de me levantar. E a dormir. Quem me dera ser santinho. Mas sem rezar. Levantar-me para quê. Outro dia. Se eu pudesse saltar os dias. Mas saltar para onde. Amanhã será a mesma coisa. E depois de amanhã. Saltar para onde. Saltar para quê. Isto nunca mais acaba. Estes dias angustiados. Não há solução.

Burro

[Goya - Semana Santa en tiempo pasado en España]

- Quando eu morrer batam em latas,

Rompam aos berros e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...

Mário de Sá-Carneiro.


Puxar os lábios para cima não chega. E mostrar os dentes. Há todo um processo. Esquecer. Os dias pastosos. E as noites duras. A solidão que me esmaga o peito. Devagar. Tortura malvada. Um bocado bocadinho agora e outro depois. Devagarinho. Abrir os olhos e não ver. A boca e não dizer. Porque há esta luz medonha que me cega e me rouba as palavras. E depois arrancar o corpo da cama quente. Um bocadinho agora. Outro depois. Perder a vontade de. Deixar-me cair. E não me levantar mais. Por isso não chega. Puxar os lábios para cima. E mostrar os dentes. Porque um sorriso não é isto. Isto é um esgar.

2.9.07

A hora da partida

[Mattia Preti - São Sebastião]
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen

1.9.07

Kill the pain . II . Ventimiglia

[Pieter Bruegel o Velho - Sermão de São João Baptista (pormenor)]

my head's between my knees again
got needle set to zero
and you can shoot me hurricanes
don't spare me the details
(cantado por Massive Attack)

'Sim. Vim para aquilo. Embora não saiba se.'
'Já cá está. É tarde demasiado tarde para.'
'Era o que me dizia a mim mesmo.'
'Então afinal sabe que.'
'Sei.'

Olhos pequeninos de rato ou de galinha. E se eu lhe virasse as costas. A porta. Abri-la. Voltar. Da entrada vê-se o mar ao longe. Fita azul no horizonte. E se o vento estiver de feição sente-se-lhe o cheiro. E o calor da areia grossa. A fina mete-se-nos pela pele adentro. Como açúcar. E nos olhos. Por isso areia grossa. Branca. Ou negra. Tanto faz. Houve aquele fim de tarde em Ventimiglia. Os pés postos no mar morno sentado sobre duros seixos negros. E a água ia e vinha devagar sem ondas devagarinho. Mare nostrum. Como um rio ou um lago. O Sol rebolando lento no horizonte. Nem cá nem lá. As horas não passam o tempo morreu. E eu ficava o resto da vida os pés postos no mar morno. Sentado na pedra negra. Tão cansado. Há um comboio para apanhar. Depois durmo. Até Irún. Tantas horas. E a barba crescida e os olhos fundos pisados. E se me distraio e perco o comboio fico aqui. Preso. Há quantos dias não me. Ah sim. No dia em que cheguei. Cortei-me. E o sangue não parava. Porque eu estava tão tão cansado e era noite funda funda. Não gosto de fazer a barba. Chorei tanto. Porque eu queria ter sempre a cara nua. Não queria rapá-los. Queria que nunca nascessem. E recusava-me. E ia para a escola cheio de pêlos uns maiores do que os outros. Mal semeados. Tufo aqui tufo ali. Depois rendi-me. Peguei na lâmina e rapei a cara e fiquei cheio de sangue. Borbulhas cortadas. No balneário de Milão eu não tinha borbulhas. Vinte e. Já não me lembro. Estava frio e não se ouvia nada senão os pingos ping ping de água no chão. A angústia. E a lâmina a raspar a cara. Voltar para casa. Já. Que faço eu aqui. Golpe fundo. Achei que ia ficar com uma cicatriz. E agora passo a mão na cara e não há nada. De Milão só o medo. Sem cicatriz. E eu punha a cabeça de fora da janela e sentia o ar. Negro. Sufocando-me a alma. Como estes dias. Pastosos. Sem fim sem paz sem. E eu só queria.

Ausência

[Rui Oliveira - Auto-retrato]

Existir sem viver

[Van Gogh - Velho desesperado]

...
Ai! mas um dia, tu, o grande corajoso,
Também desfaleceste.
Não te espojaste, não. Tu eras mais brioso:
Tu morreste.

Foste vencido? Não sei.
Morrer não é ser vencido,
Nem tão pouco é vencer.

Eu por mim, continuei
Espojado, adormecido,
A existir sem viver.

Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte -
Mais triste do que a minha e mal-aventurada
... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte,
E há tantos como eu que não alcançam nada...

Mário de Sá-Carneiro, A um suicida (excerto)