16.9.07

Kill the pain . VI . Kaputt

[Andrea Solari - Salomé com a cabeça de São João Baptista]

I turn a stone I'll find you there
into reflected light I'll stare

(cantado por Massive Attack)

Tubarão em cela escura. Si je vois un requin je fais mon requiem. Le mien. A sério. Se o vir passar à minha frente levanto-me e peço o primeiro tijolo. Se eu conseguisse ver alguma coisa. E quando os trinta e cinco tijolos. Sem luz sem ar sem dor sem. Agora ainda posso apalpar a parede achar a porta. Sair. Como se tudo não tivesse passado de um engano. Com licença eu estava enganado agora com licença sim sim vou-me embora espero que não lhe faça diferença com licença. Podia levantar-me. Sim. Ir embora. Esquecer esta loucura. Porque é verdade que dói dói tanto. E vem-me à boca o sabor a sangue. É o peito que me apertam e me esmagam. Alguma coisa se abriu lá dentro. E dói tanto dói tanto. E não vai parar não vai morrer. Já não é tempo. Já não é tempo de esperança. Nunc est tempus moriendi. O que é que me aconteceu. É que eu dantes acreditava. E nunca me passaria pela cabeça. Achava sempre que um dia passava. E sustinha-me. Que não havia coisa nenhuma definitiva. Que agora doía mas amanhã já não. Que cedo ou tarde alguma coisa. Mas esta dor é tanta e é tão grande.

Ontem tive um sonho. Foi o meu primeiro sonho desde que aqui cheguei. As noites têm sido brancas. Ou negras. Porque adormeço e não vejo. E acordo e está tudo negro. Às vezes penso se me terão cegado. Porque não vejo nada. Nem se estreitar os olhos e fizer força força. Vai ser assim quando puserem o último dos trinta e cinco tijolos. Será a fome. Ou a sede. Ou tudo. Porque agora ainda vou comendo e bebendo. Deve ser enquanto durmo que eles. Talvez abram a porta devagarinho. Assim. Para eu não ouvir nada. Depois acordo e ponho o nariz no ar e fungo como um rato. Chego-lhe pelo cheiro. Pão. Leite. E água. A água também cheira. A rã e a lodo. Quando eu chegava a casa cheio de lama. E a mãe gritava onde é que tu andaste. Num charco a apanhar rãs. Água grossa enjoativa. Depois nem isto. Deve ser a sede. Porque sem comer aguenta-se tanto tempo. Sem beber não. Talvez devesse repensar. Ou. Porque vejamos. A dor da sede e da fome. Alguns dias. Não mais. Posso aguentar. Sim. Pior do que a outra dor não será. E depois acabou tudo. Acabam-se as dores. Kaputt. Mas e se. Porque nada me garante. E talvez um dia. Aquilo que tanto me dói hoje. E que sempre doeu. Trinta e seis. Não. Já chega.

Foi um sonho bonito. Se foi um sonho. Porque às vezes já não sei onde estou. Nem quando. Nem se ainda. Mas agora estou tão cansado. Depois conto. Conto a quem. Com quem estou a falar. Louco. Só me faltava. Não. Primeiro a dor. Agora isto.

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