28.6.06

Música

[Rembrandt - Tito lendo]

à memória do Rui

Três anos quatro meses e dezanove dias depois da tua morte consegui ouvir a música que me deixaste. Não deixei de te sofrer. Não amainou a dor. Não deixaste de estar nos meus pensamentos. Não. Estás mais presente do que nunca. Agora sim. Ainda há dias se me enchia o coração de angústia quando te recordava. Via-te morto. O teu corpo coberto pelo lençol. Apertava-se-me a garganta. Morria eu de saudades. De vontade de te ter aqui de novo. Engolia lágrimas desesperadas. Não sei o que aconteceu entretanto. Alguma coisa mudou. Agora vejo-te vivo. Ouço o teu riso. O piscar de olhos malando. Estás aqui ao meu lado. Não, não acredito na vida depois da morte. Mas a verdade é que estás aqui. Ou eu estou aí. Agora sinto-te presente. Vivo. Talvez por isso tenha conseguido finalmente ouvir a música que me deixaste.

25.6.06

Partida

[Murillo - São João Baptista]

a J.

O pior eram as partidas. Acompanhavas-me ao terminal de autocarros. Quase sempre em silêncio. Nunca fui homem de chorar. Talvez quando era criança. Mas nunca em adulto. Ou quase nunca. E agora era aquele aperto na garganta. Não conseguia falar. Balbuciava. Prendia o choro. Sentia-o pronto a rebentar. Tinha de me calar. Olhava-te e tu indiferente. Para que é isso, estás assim porquê? Eu virava a cara. Não compreendias. Não era culpa tua. Se calhar nunca te devia ter saído ao caminho. Devia ter-te deixado em paz. Na tua vidinha. Não sei. Não conseguia aproveitar aqueles raros momentos juntos. Estar contigo deveria ser um momento de felicidade. De plenitude. Mas não. Assim que te via assaltava-me a dúvida doentia. Será que nos veremos de novo. Fartar-se-á de mim. Vai chatear-se comigo. Arranjará outro. Deixar-me. Será que já arranjou outro e não me quer dizer. A dúvida devorava-me a felicidade de te ver. Estar contigo era um tormento quase tão grande como não estar. Porque te adorava desmesuradamente. Arrojava-me aos teus pés. Vivia no terror de que me deixasses. Media as palavras. Os gestos. Cada minuto contigo era um suplício. O terror de fazer ou dizer algo que me fizesse perder-te. Interpretava cada silêncio teu como sintoma de ruptura inevitável. Enlouquecia.

O pior eram as partidas. Perscrutava a tua face à procura de zanga. De enfado. E se te descobrisse enfado. A zanga ainda se podia resolver. O enfado não. Roía-me uma angústia indizível. Devorava-me lentamente. Aos bocados. E tu não compreendias. É tão duro separar-me de ti, só tenho vontade de chorar. És um exagerado. Não acreditavas na minha paixão. Achava-la excessiva. Achavas que não te amava. Por isso não compreendias a minha angústia. Nem os meus soluços contidos. Nem o nó na minha garganta. Olhavas repetidamente para o relógio, enquanto esperávamos o autocarro que me havia de levar para casa. Eram facas cravadas no meu peito. Em silêncio passava em revista todos os minutos que havíamos passado juntos. Procurava algo que tivesse dito ou feito. Ou que não tivesse dito nem feito. Algo que justificasse a tua indiferença. O teu enfado. Sentia-me morrer. Depois chegava o autocarro. Despedias-te rapidamente e voltavas para casa. Eu mordia os lábios para conter o choro. Via-te desaparecer ao longe, ainda antes de o autocarro partir. E depois era aquela hora de viagem. Revivendo cada momento. Cada palavra. Cada gesto. Enfiado num turbilhão de angústia e desespero. Não. Nunca te amei. Aquilo não era amar. Não, nunca te amei. Mas na altura não o sabia. E quase morria. Morria de amor.

24.6.06

Puluis et umbra sumus

[Bosch - A floresta que ouve e o campo que vê]

à memória do Rui

Depois íamos sair. Não importava para onde. Podia ser o bar do quarteirão vizinho. Desse gostávamos muito. Não sei porquê. Era um café com pouca luz e muito fumo. E tinha "shots". E copos de "shot". Lembras-te. Cheguei a ter uma bela colecção. Num deles amareleceu durante anos a flor de papel que me fizeste. Já contei isto. Mas foi tão importante. É tão importante. Revivo estes momentos diariamente. Se calhar não devia expor a nossa amizade desta forma. Há quem ande por aqui e nos leia. E me leia. Monólogo. Tu não falas. Não respondes. Não podes fazê-lo. Às vezes gostava de ter fé. De acreditar na vida depois da morte. Mas não. Céptico empedernido. Ainda assim vou falando contigo. Não tens de falar. Não tens de me responder. A tua memória basta-me. A tua saudade. Imensa. Por isso falo contigo e não me importo que me leiam. É em ti que penso nos momentos de maior solidão. É em ti que penso nos momentos de maior desespero. Fazes-me falta.

21.6.06

Tigre!

[Münch - Mulher vampiro]

Nunca lhe soube o nome. Nem quem era. Via-a na noite. Ao longe. Olhava-me fixamente. Desafiadora. Poderosa. Eu desviava o olhar. Agarrava-me ao cigarro. Aflito. Quem és tu. Enchia a sala. Não precisava de a ver para saber que estava ali. Sentia-a. Um abraço sufocante. Depois varria a sala com o olhar. Até a encontrar. Sempre ao longe. Cravando os olhos em mim. Não a queria ver. Queria apenas ter a certeza de que estava ali. Saber onde estava. Para me esconder.

Que vibração era aquela. O meu coração. A música. Não sei. Dançava. Nunca gostei de dançar. Mas ali no meio da multidão era difícil ser visto. Fugia-lhe. De que tinha medo. Não sei. Sei. Sei. Às vezes sentia um aperto. Um roçar sôfrego. Era ela. Nem sempre a pista de dança era um lugar seguro. Fugia. Enfiava-me na casa de banho. Uma vez quando abri a porta para sair estava ela à minha espera. Muda. Gelei. Hesitei uns momentos e fugi. Seguiu-me com o olhar enquanto eu me escondia no meio da multidão. Não se mexeu. Para quê. Era com os olhos que me agarrava.

Uma noite atacou. Não lhe tinha sentido a presença. Ou melhor, só a senti quando já estava sentada ao meu lado. Não sei o que terá feito para se esconder. A verdade é que não dei por ela. Olhava-me sorridente. Agora parecia humana. Alívio. Desta vez não tinha medo. Não se apresentou. Simplesmente começou a falar comigo. Como se nos conhecêssemos desde sempre. Trocámos bebidas. Fumámos cigarros. Enfiados no sofá. Ela aproximava-se perigosamente. Sentia-lhe o hálito alcoólico. Excitante. Já sei do que tinha medo. Agora queria fugir. Mas não conseguia. Não era capaz. Tomava-me um pânico desesperado. Fico doido com um hálito com um suave travo a álcool. Não me consigo controlar. Ela sabia-o. De certeza. Lançava-se sobre mim. Bafejava-me. Felina. Lugar comum. Mas ela era felina. E eu desisti. Ébrio. Entreguei-me. Não me controlo. Língua com língua. Um desespero ardente. Apertava-a contra mim. Com violência. Percorria-lhe o corpo palpitante. Quem és tu, o que queres de mim. És lindo sabias. Não não sabia até tu apareceres. Há tanto tempo que te desejava. E eu fugia de ti. Eu sei, és um tolo.

Vimo-nos mais algumas vezes. Sempre à noite. Fora-se o medo. Agora olhava-a como a todas as minhas vítimas. Desprezo. Sugara-lhe a alma. Deitava fora as sobras. Não me compadecia do seu olhar desesperado. Fugia. Mas agora por repulsa. Obtivera o que queria. Ou o que achava que queria. E ela olhava-me implorante. E eu fugia. Não queria mais. Uma noite chegara. Adeus. Continuava à procura da plenitude. Viria a senti-la pouco tempo depois, numa noite no Frágil. Mas naquelas noites não a tinha ainda encontrado. Tigre que mata a presa e não a come porque não é aquilo que procura. Tentou mesmo dar-me o número de telefone. Recusei delicadamente. Não sei se chorou. As luzes da discoteca cegam-me. Não era aquilo que eu procurava. Nunca lhe soube o nome. Nem quem era.

17.6.06

Ça me ferra peur

[Bosch - Paraíso: ascensão dos bem-aventurados]

Um afloramento rochoso sobre o oceano. Lá me sento a ver o mar. Não há ondas. A rocha penetra profundamente nas águas. A rebentação ficou para trás. Apenas um suave vai-e-vem. Um marulhar que me embala. O reflexo do Sol nas águas é intenso. Não consigo fixá-lo sem que me doam os olhos. É a hora mais quente do dia. Mas eu estou à sombra das rochas escarpadas. Tenho um livro. Uma tragédia grega. Qual. Não me consigo lembrar. Eurípides. Mas qual. Foi há tanto tempo. Cheira a algas. E a peixe. Cheira a mar. Ao longe os gritos das crianças a chapinhar na água. Gritos abafados. Os sons do Verão são abafados. Já disse isto mais do que uma vez. Gritos de gaivota. Estou mesmo bem dentro do oceano. A praia está lá longe. Mal se distinguem as pessoas. Escarpas e uma fina faixa de areia. Lá ao longe. O que é que tenho nas mãos. Uma tragédia grega. Não me lembro de qual. Talvez por não a ter lido então. Embalado pelo marulhar suave. Caía a noite quando acordei. A minha hora preferida. Já o Sol se pôs, mas ainda há aquela luz crepuscular. Uma brisa fria. Pele arrepiada. É o paraíso. Já não há ninguém na praia. Não me apetece ir embora. Anos mais tarde ali voltarei numa noite escura. Sem Lua. Ali terei medo medo do mar. Cada salpico furioso será como um ferrão. Ça me ferra peur. Mas agora não. Agora não me quero ir embora.

14.6.06

Ne me quitte pas

[Bruegel - A queda dos anjos rebeldes]

a J.

Não faz sentido. Quantas vezes me disseste que me amavas. Que era a pessoa mais importante do mundo. Como podes ter mudado tanto. Como posso ter mudado tanto. Ainda ontem me dizias que me adoravas. Ainda hoje disseste que me adoras. Não faz sentido. E eu adoro-te. Não me deixes. Não me deixes. Como vão ser os meus dias a partir de hoje. Sem ti. Como vou acordar. Como posso ter mudado tanto. Como vou conseguir levantar-me da cama. Como vou viver. Não faz sentido. Não há ninguém no mundo como tu. Como vou conseguir. Não. Não me deixes. Por favor. Como te posso recuperar. Diz-me. Como. Farei tudo. Abandonarei tudo. Todos. Não posso viver sem ti. Por favor. Arrojar-me-ei aos teus pés. Serei teu escravo. Não me deixes. Não faz sentido. Não me ouves. Não me estás a ouvir. Como podes ignorar o meu pesadelo. Olha para mim. Matas-me. Tiras-me a alma. Odeio-te. Cobrir-te-ei de prendas. De amor. De felicidade. De loucura. Mas não me deixes, por favor. Não faz sentido. Eu amo-te. E tu ainda ontem me dizias que me adoravas. Eu sei que fui sufocante. Eu sei que não te deixei respirar. Eu sei que te esmaguei com ciúmes. Eu sei que exigi demasidado de ti. Eu sei. Mas eu mudei. Por favor. Não me deixes. Dou a vida por ti. Mato-me para te provar o meu amor. Não me deixes. Não faz sentido. Acabou. Acabei.

Ficas bem? Afinal não foi assim tão difícil.
Fico, não te preocupes. Já passa. Não, não foi assim tão difícil.
Tens a certeza de que está tudo bem?
Tenho. Se calhar foi mesmo melhor assim. Adeus. Não te preocupes.

11.6.06

Sikhr

[Bosch - Estudo de monstros]

Sikhr é um monstro formidável. É pequeno. O que não o impede de ser terrível. Esbranquiçado. O corpo coberto de finos sulcos vermelhos, veias que se dilatam e estremecem lentamente. Ao ritmo de um coração quase morto. Exala um cheiro suave. Gorduroso. Não tem membros. Portanto não tem garras. Não é isso que o torna terrível. Move-se vagarosamente, rebolando sobre a pele viscosa. Vagarosamente. Muito. Lesma rebolante. Deixa um rasto de gordura que não seca nunca. Tem uma boca pequena. Sem dentes. Mas não é isso que o torna terrível. Aliás, não sei se tem boca. Nunca lha vi. Apenas imagino que tenha uma. Porque o ouço gemer baixinho na escuridão, quando anda por perto. Nunca lhe ouvi um rugido que fosse. Não, também não é isso que o torna terrível. Uma besta esbranquiçada que não ruge com a boca não persegue com passo veloz não morde com dentes não rasga com garras. Formidável. Sinto a sua presença ainda antes de aparecer. O cheiro gorduroso. Os gemidos aflitivos. Um pânico indizível. Sei que está ali. Que me vai atacar. Só não sei quando. Nem onde. Depois sai-me ao caminho. Às vezes de surpresa. Rebolando sobre a pele viscosa. Pára a poucos metros de mim. Levanta-se não sei como. E crava-me os olhos pequenos azulados frios. Imóvel. Mudo. Gela-se-me o coração. Sinto um abraço sufocante. Imaterial. Não me toca sequer. Mas eu sinto-o. Sinto o seu olhar frio a penetrar-me as entranhas. A rasgar-me a alma. Terror absoluto. Saber que está ali. Está ali sempre. Mesmo quando não o vejo. Mesmo quando não o cheiro. É isso que o torna terrível. Muito.

10.6.06

Crónica de outra morte macaca

[Giuseppe Maria Crespi - Estante com livros]

Um dia cai-te o armário em cima e morres. Uma morte digna. Enterrado sob uma pilha de livros e prateleiras desfeitas. É que te cai mesmo em cima, não brinques. Olha como abana. Tenho de pôr uns calços. Uns quê? Calços, para equilibrar. Não me importaria de morrer com um Eça na cabeça. Mas os meus Eças não são suficientemente pesados para me matarem. Capas moles. Até Os Maias são inofensivos. Não. Não. Nunca me mataria com Os Maias. Não. Talvez o Ulisses. Não. Nem esse. Nem os Borges. Só morro se me cairem todos em cima. Ao mesmo tempo. Toca a abanar o armário. Não. Só morro se me atingirem também as prateleiras de madeira maciça. E talvez nem assim. Que ferro. Que trabalheira. Quem me manda ser esquisito. Até para me matar tenho de ser diferente. Mas eu quero matar-me? Não. Não. Não. Estás completamente louco. Estou. Completamente. Um dia imaginei que me emparedava com livros. Muito Poe. Doloroso. Penoso. Vagaroso. Mais vale levar com um livro pesado. Um daqueles de capa dura. Isso. Mais vale levar com um desses na tola. Rápido e eficaz. Mas estragava o livro. Não. Não. Não quero estragar os meus livros. Enlouqueço. Abanar o armário. Com força. Talvez seja melhor parar. Ainda me cai o armário em cima. E morro.

8.6.06

Iterum Peregrinatio mediolanensis

[Cartaz de propaganda soviética, II Guerra Mundial]

Milão é cinzenta e feia. Já o disse. Ando repetitivo. Demente. Chegava-me à janela. Manhã cinzenta de Setembro. O calor milanês é pegajoso. Sujo. Não via o horizonte. Prédios cinzentos que se diluíam nas nuvens baixas. Ou seria poluição. Sábado. Ou Domingo. Não me lembro. Lá em baixo ninguém. Encostava a cara ao vidro. Não sei o que queria ver. Luz. Talvez fosse isso. Luz. Chávena de chá na mão à procura de luz. E não vejo nada. Não ouço nada. Não sinto nada. A não ser uma angústia de chumbo. Mas uma trompete sacode a manhã cinzenta. De pé ó vítimas da fome. Conheço isto. Janela aberta. Enfio a cabeça no ar pastoso. Fedorento. De onde vem isto. De pé de pé não mais senhores. Não se ouve mais nada. Não há vozes. Só melodia. Metálica. Lúcida. Não consigo perceber de onde vem. Mas é-me familiar. Ouvi isto. Já cantei isto. Não sei onde. Quase meio corpo fora da janela. Não vejo nada. Cinzento. Por todo o lado. E a melodia metálica. O que é isto. Aproxima-se. Bem unidos façamos nesta luta final. É a Internacional! Como é possível não me ter lembrado logo. Quem andará pelas ruas feias de Milão numa manhã de Setembro a tocar a Internacional. Ninguém canta. Aquela melodia. Sozinha na cinzenta Milão. Quase caio do décimo andar. Ou seria décimo segundo. Pouco importa. Está mesmo aqui. Passos. Um grupo silencioso. Um arrastar de pés. Leeeeento. Já não está sozinha a trompete. Uma terra sem amos a Internacional. Uma mancha vermelha liderando uma mole negra. O que é aquilo. Aproxima-se. É um caixão. Coberto com a bandeira do Partido Comunista Italiano. Um funeral. Um comunista morto. Não terá resistido ao vendaval daquele fim dos anos oitenta. Dias inesquecíveis. Sentíamos todos a História a fazer-se. Ali à nossa frente. Palombella Rossa. Tenho de rever este filme. Nani Moretti. Foi no antigo Fórum Picoas. Como queria estar agora em Lisboa. Não nesta cidade medonha. Se nos faltarem os abutres não deixa o Sol de fulgurar.

5.6.06

Crónica de uma morte macaca

[Cézanne - Château noir]

Não, dantes o pé cabia. Subia aquelas escadas centenárias com toda a facilidade. Mas agora não cabe. E dantes cabia. Tenho a certeza. Agarrar-me ao mastro da bandeira, com medo de cair. Subi com facilidade. O problema agora é descer. É que dantes o pé cabia. Agora não. Gente de pés pequenos. Dizem que não tomavam banho. Mas que é isso, comparado com ter um pé pequeno. Eu tinha um pé pequeno. Quando era miúdo. Não, na verdade sempre foi grande. Era um pesadelo achar sapatos para o meu tamanho. Hoje parece ridículo. Mas não há muitos homens da minha geração a calçar o 45. Pé que não cabia nos degraus. Já me vejo estatelado lá em baixo. Homem na casa dos 30 encontrado morto no castelo de Torres Vedras. Palácio, aquilo era um palácio. Mas todos lhe chamam "castelo". Talvez porque, caprichosamente, a fachada ruiu a meio dos janelões, dando-lhes todo o ar de ameias. Morto. Morreu. Subiu ao torreão. Sabe-se lá para fazer o quê. Ele sempre teve aquele ar esquisito. Os brincos. As roupas estranhas. Apesar de nos últimos anos até andar com outro aspecto. Já parecia um homenzinho. Mas coisa boa não era. Um homem daquela idade. Nunca se lhe conheceu mulher. Dizem que é maricas. Se calhar subiu ao torreão para ir ter com algum gajo. Não, isso ficava melhor se fosse com uma mulher. E ela é que subia, ele ficava cá em baixo. Sim, e ela teria um pé pequenino, que caberia nos degraus. Não cairia. Mas a verdade é que foi ele quem subiu. Se calhar só para ver a vista. Há gente assim. Ou para recordar. Pode ter vivido ali dias marcantes. Há muito tempo. Se calhar foi isso. Ou então não era realmente para coisa boa. Nunca o saberemos. Subiu. Isso é um facto. Porque caiu cá em baixo. E só se cai cá em baixo quando se sobe. Foi encontrado com o pescoço partido. A posição era estranhamente normal. Parecia que lhe tinham ajeitado o corpo. Parecia que tinha parado apenas para dormir uma sesta. Não era a posição de alguém que caiu de uma altura daquelas. Que vida teria? Não parece ser homem estudado. Está de calções e botas militares. Uma vergonha. Já tem cabelos brancos. Idade para ter juízo. A cara está serenamente desesperada. Deve ter-se fartado. Caiu? Lançou-se? Matou-se? Se calhar desempregado. Ou então desgosto de amor. Sabe-se lá o que vai na cabeça de um homem sem esperança. São lágrimas secas? Não, é pó. Mas parecia. Parecia que tinha lágrimas secas na cara. Ninguém sabe quem é. Todos o viram vivo pelo menos uma vez na vida. Mas ninguém sabe quem é. Se estuda. Se trabalha. Se ama. Se está desesperado. Se é feliz. Se calhar matou-se. Ninguém cai daquela maneira por acidente. Subiu ao torreão para recordar. Para se despedir. Foi isso. Olhou em volta. A cidade estranha a quem virou as costas. E depois matou-se. Ou então escorregou. Degraus muito estreitos, é um perigo, deviam pôr uma protecção. Agarrar-me ao mastro da bandeira e descer. Não devia ter vindo de botas militares. Assim é mais difícil. Nem de lado me cabe o pé. Ainda escorrego e caio. Se caísse morria, de certeza. Ou não. Não é assim tão alto. Talvez partisse uma perna. Ninguém se poderia matar aqui. Não tem altura. Cai o Sol. Tenho de me apressar, se não fico fechado cá dentro.

4.6.06

Almas Mortas na mão direita

[Sloan - Noite de eleições]

Caminha célere na noite quente. Onde vais? Não sei. Passa a ponte. Lá em baixo o coro das rãs. Brekekex koax koax. Mergulha na cidade há tanto tempo abandonada. Desconhecida. Quase corre. Onde vais com tanta pressa? Meia-noite. Quente. Percorre caminhos antigos. Vai à procura da gente que nunca conheceu. Corre atrás do passado. Corre pelas rua medievais. Almas Mortas na mão direita. Barulho de bares. Aquele é-lhe familiar. Talvez o tenha frequentado há muitos anos. Espreita. Tímido. Quem queres ver? Não sei. Olha. Há uma cara conhecida. Acena esperançado. Sorriso de circunstância. Muro de gelo. Não é aqui que vai parar. Olham-no com desconfiança. Quem é este louco arfante de Almas Mortas na mão direita. Isto é ele a pensar. Na verdade ninguém reparou nele. Avança fugindo. Quase lhe caem as Almas Mortas. Corre para o imenso parque verde. Fora da cidade. Foge da cidade. Há adolescentes a jogar à bola. Tão tarde. Jactos de água regam a noite. Coro das rãs. Brekekex koax koax. Perseguem-me. Isto é ele a pensar. Lá em cima Marte olha-o rubicundo. Noite estrelada. Não se ouve a cidade. Só as rãs. Koax koax. Há ali um banco debaixo de um candeeiro. Há-de tentar de novo. Regressar aos caminhos antigos. Procurar uma cara conhecida sem sorriso de circunstância. Sem muro de gelo. Que ele próprio construiu. Não desistirá. Mas agora senta-se a ler. Uma da manhã. Tanto calor. De vez em quando olha ao longe as luzes da cidade abandonada. Fecha o livro. Em que estás a pensar? No tempo que perdi.

3.6.06

Sicut ouis ad occisionem

[Goya - No puede ya con los 98 años]

Extenuado. Queria contar alguma coisa. À memória só me vêm coisas que já contei. Ou que não quero contar. Ainda. A cada dia me sinto mais perto da loucura. Estou extenuado. Às vezes falo comigo mesmo. Em voz alta. Para me lembrar das coisas. Se estou assim aos trinta e quatro anos, como estarei aos setenta. Se não ficar pelo caminho. Já rearrumei e tornei a rearrumar as estantes que me estão mais próximas. Obsessivo. Não sei quando conseguirei voltar a escrever. Vejo o fim destes tempos de paz tão próximo. Quero ir embora. Sicut ouis ad occisionem ducar et non aperiam os meum.

Vt ouis ad immolandum

[Bosch - Homem-árvore]

Leio como um condenado à morte. Há um doutoramento que tenho de começar. Que não quero fazer. Como um condenado à morte. Já tenho pouco tempo. Ando com dois livros para todo o lado. Lendo desesperadamente. No autocarro. No comboio. No metro. Na cama. Na rua. Os próximos anos passá-los-ei lendo coisas desinteressantes e aborrecidas. Por isso leio agora. Furiosamente. Agarro-me aos meus livros. Angustiado. Condenado à morte. Tão cedo não vos poderei tocar. Aproveitando os últimos dias. Deito-me mais cedo. Para poder ficar a ler até mais tarde. Aflito. Aproveitar todos os minutos. Notando todos os pormenores. Condenado no corredor da morte. Não era isto que eu tinha em mente. Ganhar coragem para ir embora e ser feliz. Ou ficar. Vt ouis ad immolandum ducor. Deste lado chama-me Nikolai Gógol. Diário de um louco.
Октября 3.

Сегодняшнего дня случилось необыкновенное приключение.
Я встал поутру довольно поздно, и когда Мавра
принесла мне вычищенные сапоги, я спросил, который час.
Adeus.