10.6.06

Crónica de outra morte macaca

[Giuseppe Maria Crespi - Estante com livros]

Um dia cai-te o armário em cima e morres. Uma morte digna. Enterrado sob uma pilha de livros e prateleiras desfeitas. É que te cai mesmo em cima, não brinques. Olha como abana. Tenho de pôr uns calços. Uns quê? Calços, para equilibrar. Não me importaria de morrer com um Eça na cabeça. Mas os meus Eças não são suficientemente pesados para me matarem. Capas moles. Até Os Maias são inofensivos. Não. Não. Nunca me mataria com Os Maias. Não. Talvez o Ulisses. Não. Nem esse. Nem os Borges. Só morro se me cairem todos em cima. Ao mesmo tempo. Toca a abanar o armário. Não. Só morro se me atingirem também as prateleiras de madeira maciça. E talvez nem assim. Que ferro. Que trabalheira. Quem me manda ser esquisito. Até para me matar tenho de ser diferente. Mas eu quero matar-me? Não. Não. Não. Estás completamente louco. Estou. Completamente. Um dia imaginei que me emparedava com livros. Muito Poe. Doloroso. Penoso. Vagaroso. Mais vale levar com um livro pesado. Um daqueles de capa dura. Isso. Mais vale levar com um desses na tola. Rápido e eficaz. Mas estragava o livro. Não. Não. Não quero estragar os meus livros. Enlouqueço. Abanar o armário. Com força. Talvez seja melhor parar. Ainda me cai o armário em cima. E morro.

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