5.6.06

Crónica de uma morte macaca

[Cézanne - Château noir]

Não, dantes o pé cabia. Subia aquelas escadas centenárias com toda a facilidade. Mas agora não cabe. E dantes cabia. Tenho a certeza. Agarrar-me ao mastro da bandeira, com medo de cair. Subi com facilidade. O problema agora é descer. É que dantes o pé cabia. Agora não. Gente de pés pequenos. Dizem que não tomavam banho. Mas que é isso, comparado com ter um pé pequeno. Eu tinha um pé pequeno. Quando era miúdo. Não, na verdade sempre foi grande. Era um pesadelo achar sapatos para o meu tamanho. Hoje parece ridículo. Mas não há muitos homens da minha geração a calçar o 45. Pé que não cabia nos degraus. Já me vejo estatelado lá em baixo. Homem na casa dos 30 encontrado morto no castelo de Torres Vedras. Palácio, aquilo era um palácio. Mas todos lhe chamam "castelo". Talvez porque, caprichosamente, a fachada ruiu a meio dos janelões, dando-lhes todo o ar de ameias. Morto. Morreu. Subiu ao torreão. Sabe-se lá para fazer o quê. Ele sempre teve aquele ar esquisito. Os brincos. As roupas estranhas. Apesar de nos últimos anos até andar com outro aspecto. Já parecia um homenzinho. Mas coisa boa não era. Um homem daquela idade. Nunca se lhe conheceu mulher. Dizem que é maricas. Se calhar subiu ao torreão para ir ter com algum gajo. Não, isso ficava melhor se fosse com uma mulher. E ela é que subia, ele ficava cá em baixo. Sim, e ela teria um pé pequenino, que caberia nos degraus. Não cairia. Mas a verdade é que foi ele quem subiu. Se calhar só para ver a vista. Há gente assim. Ou para recordar. Pode ter vivido ali dias marcantes. Há muito tempo. Se calhar foi isso. Ou então não era realmente para coisa boa. Nunca o saberemos. Subiu. Isso é um facto. Porque caiu cá em baixo. E só se cai cá em baixo quando se sobe. Foi encontrado com o pescoço partido. A posição era estranhamente normal. Parecia que lhe tinham ajeitado o corpo. Parecia que tinha parado apenas para dormir uma sesta. Não era a posição de alguém que caiu de uma altura daquelas. Que vida teria? Não parece ser homem estudado. Está de calções e botas militares. Uma vergonha. Já tem cabelos brancos. Idade para ter juízo. A cara está serenamente desesperada. Deve ter-se fartado. Caiu? Lançou-se? Matou-se? Se calhar desempregado. Ou então desgosto de amor. Sabe-se lá o que vai na cabeça de um homem sem esperança. São lágrimas secas? Não, é pó. Mas parecia. Parecia que tinha lágrimas secas na cara. Ninguém sabe quem é. Todos o viram vivo pelo menos uma vez na vida. Mas ninguém sabe quem é. Se estuda. Se trabalha. Se ama. Se está desesperado. Se é feliz. Se calhar matou-se. Ninguém cai daquela maneira por acidente. Subiu ao torreão para recordar. Para se despedir. Foi isso. Olhou em volta. A cidade estranha a quem virou as costas. E depois matou-se. Ou então escorregou. Degraus muito estreitos, é um perigo, deviam pôr uma protecção. Agarrar-me ao mastro da bandeira e descer. Não devia ter vindo de botas militares. Assim é mais difícil. Nem de lado me cabe o pé. Ainda escorrego e caio. Se caísse morria, de certeza. Ou não. Não é assim tão alto. Talvez partisse uma perna. Ninguém se poderia matar aqui. Não tem altura. Cai o Sol. Tenho de me apressar, se não fico fechado cá dentro.

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