17.6.06

Ça me ferra peur

[Bosch - Paraíso: ascensão dos bem-aventurados]

Um afloramento rochoso sobre o oceano. Lá me sento a ver o mar. Não há ondas. A rocha penetra profundamente nas águas. A rebentação ficou para trás. Apenas um suave vai-e-vem. Um marulhar que me embala. O reflexo do Sol nas águas é intenso. Não consigo fixá-lo sem que me doam os olhos. É a hora mais quente do dia. Mas eu estou à sombra das rochas escarpadas. Tenho um livro. Uma tragédia grega. Qual. Não me consigo lembrar. Eurípides. Mas qual. Foi há tanto tempo. Cheira a algas. E a peixe. Cheira a mar. Ao longe os gritos das crianças a chapinhar na água. Gritos abafados. Os sons do Verão são abafados. Já disse isto mais do que uma vez. Gritos de gaivota. Estou mesmo bem dentro do oceano. A praia está lá longe. Mal se distinguem as pessoas. Escarpas e uma fina faixa de areia. Lá ao longe. O que é que tenho nas mãos. Uma tragédia grega. Não me lembro de qual. Talvez por não a ter lido então. Embalado pelo marulhar suave. Caía a noite quando acordei. A minha hora preferida. Já o Sol se pôs, mas ainda há aquela luz crepuscular. Uma brisa fria. Pele arrepiada. É o paraíso. Já não há ninguém na praia. Não me apetece ir embora. Anos mais tarde ali voltarei numa noite escura. Sem Lua. Ali terei medo medo do mar. Cada salpico furioso será como um ferrão. Ça me ferra peur. Mas agora não. Agora não me quero ir embora.

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