19.7.06

Rapaz de brinco de arame

[Bruegel - A queda dos anjos rebeldes]

Era uma daquelas alturas do ano em que recebemos prendas. Não sei se foi quando fiz quinze anos. Se foi no Natal desse ano. Sei que me perguntou a mãe que prenda queria eu. Já tinha a resposta há muito preparada. Aliás, já há muito me passeava pela cidade com orgulhosas argolas de arame apertadas na orelha esquerda, que retirava cautelosamente enquanto subia as escadas de casa. Parecia mesmo furado. Mas não. E no entanto era um escândalo. E eu adorava escândalo. Hoje, quando os rapazes exibem grossos brilhantes em ambas as orelhas, parecerá ridículo. Em meados dos anos oitenta, na província portuguesa, era um escândalo tremendo. Uma ousadia, uma afronta às regras da sociedade. E eu, como qualquer adolescente, passava os dias a inventar novas maneiras de afrontar a sociedade. Essa entidade então abominada, mas que hoje não consigo sequer identificar. Naquela idade era tudo tão mais fácil. Havia a sociedade opressora e chata. E havia eu. Desafiador. Adolescente. Recusava-me a vestir roupas normais. Tinham de ser esquisitas. De preferência negras. Depois valia tudo. Botas militares. Calças rotas. Penteados bizarros. Tudo o que pudesse chocar. E usava argolas de arame na orelha esquerda. Era eu mesmo quem as fazia, enrolando arame num marcador. Com uma tesoura forte cortava-as, e ia variando o número a cada dia. Não tivera, no entanto, a audácia de as usar na orelha direita. No rígido código indumentário dos anos oitenta usar brincos na orelha direita implicava homossexualidade assumida. Coisa que na altura não me apetecia nada fazer. Rebelde dentro de limites estreitos. Mas agora dava o passo mais difícil. Deitar fora as argolas de arame. Furar de facto a orelha. Definitivo. Não mais poderia arrancar os brincos a subir as escadas. Não ouviria mais condescendentes "ah, não são brincos a sério, não está furado". Não. Agora queria mesmo furar. Usar brincos a sério. Era, repito, um passo arriscado, na província portuguesa de meados dos anos oitenta. Já sabia o que me esperava. Já tinha diariamente uma pequena amostra, na escola. Já não seria apenas o grandalhão esquisito de ar deprimido vestido de preto com cabelo cheio de gel (outra novidade na época). Passaria a ser o grandalhão esquisito dos brincos. Com todas as conotações que isso tinha na província portuguesa dos anos oitenta. Ganharia fama de maricas. Talvez até de drogado. Perderia quase todos os poucos amigos. Seria um pária na escola, admirado por uma minoria, gozado e excluído por quase todos. Os pais dos amigos sobreviventes proibi-los-iam de se dar comigo. Acabaria só. Pensava nisto todos os dias, enquanto subia as escadas de casa e tirava os brincos de arame. Imaginava-me sozinho. Vestido de negro. Com brincos a sério na orelha esquerda. Expulso de todo o lado. Isolado. Portanto, quando a mãe me perguntou que prenda queria eu, não hesitei. Quero furar a orelha.

2 comentários:

Anónimo disse...

Boas! Pois é, tenho a dizer que fiquei triste quando soube que usar brinco na orelha direita implicava a conotação que implica (ja sabia antes de ler o texto).

Esta tristeza deve-se ao facto de eu saber que o meu melhor lado é o direito,em termos estéticos, e que um brinco(daquelas argolas pequenas e prateadas,o que seria o ideal), ficaria a matar na orelha em questao.
Mas isso nao me impedirá de usar brinco,mas vou furar a orelha esquerda, uma vez que não gosto de mal-entendidos. Ja pensei em fazer dois furos na direita, mas uma amiga informou-me que todo e qualquer furo na orelha direita seria indesejável ao ponto de possibilitar o azar de,depois de deixar de usar e ao longo de toda a vida estar sujeito à detecçao ,por parte de alguém mais atento, do furo,o que suscitaria interpretações falsas.

Um pequeno desabafo a propósito.

Boa continuação.

Anónimo disse...

Gostei do que li. Furei a orelha esquerda agora com 22 anos. Sempre gostei de ver... Sei também que as autoridades e muita gente olham para as pessoas que têm brinco de maneira diferente!!! Enfim, quero lá saber... Furei e mais nada!!! Passados dois meses fui passar uns dias á terra (Entroncamento) e furei a do lado direito também!!! Fica muito mais louco!!! De momento uso dois brilhantes de tamanho médio mas quero usar argolas com brilhantes. Só um aparte, olham para nós, que usamos brincos, de maneira diferente e colocam-nos num certo grupo... Se eu fosse o CR seria diferente!!! Até usar as calças rotas!!! Só porque um "gajo" não é vedeta!!! Não tenho nada a temer. Entro num estabelecimento e os seguranças que pensem o que quiserem... Abraços e fiquem bem.