24.7.05

Sam Simiom


[Caspar David Friedrich, 1809 - Monge junto ao mar]

Sedia-m' eu na ermida de Sam
Simiom
e cercarom-mi as ondas que grandes som
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Estando na ermida ant' o altar
cercarom-mi as ondas grandes do mar
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

E cercarom-mi as ondas que grandes som
nom ei i barqueiro nem remador
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

E cercarom-mi as ondas do alto mar
nom ei i barqueiro nem sei remar
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Nom ei i barqueiro nem remador
morrerei eu fremosa no mar maior
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Nom ei i barqueiro nem sei remar
morrerei eu fremosa no alto mar
eu atendend' o meu amigo
eu atendend' o meu amigo

Meendinho (s. XIII)

21.7.05

A osga


Na minha antiga casa havia uma osga. Não era só uma, eram várias, filhas e netas umas das outras. Mas para mim todas elas eram uma só, aquela que vi ao longo dos anos a passear pelas paredes e tecto do meu quarto. Sempre gostei de répteis, de osgas sobretudo. Graças à minha osga nunca tive problemas com insectos no meu quarto: nem moscas, nem traças, nem mosquitos, nem melgas. A minha osga devorava tudo o que lhe passasse ao alcance da língua. Há dias regressei à minha antiga casa. Lá estava a minha osga, ainda consegui entrevê-la, correndo pelo tecto a esconder-se de mim. Não me reconheceu.


11.7.05

Litore quot conchae...


[J. J. N. A. Spalowsky, Prodromus in Systema Historicum Testaceorum, 1795 (tabula VIII)]

Percorrer a beira-mar a apanhar conchas e seixos rolados pelas ondas. Não há para mim maior prazer balnear do que esse. Por isso não gosto de praias sem rochas e com muita gente. Quando era pequeno às vezes encontrava grandes búzios. Diziam-me que os pusesse ao ouvido, para ouvir o mar. Nunca mais encontrei grandes búzios na praia.

10.7.05

8.7.05

Aue maris stella


[Antonello da Messina - Virgem da Anunciação]

Um dia fomos a Fátima. Não para rezar. Eu não sou cristão, tu creio que também não eras. Não me lembro de alguma vez termos falado de religião. Mas fomos a Fátima, por alturas de um 13 de Maio. Para tirar fotografias. Pedimos uma autorização especial para podermos estar na zona da imprensa, na procissão das velas. Lembras-te? Eu fiquei registado como teu ajudante. Mas antes estivemos em Coimbra. Tínhamos ido com muita antecedência, e aproveitámos para passear. Encontrámo-nos com umas amigas em Coimbra, e passámos uma noite atribulada, entre bebedeiras e sobressaltos.

No dia seguinte regressámos a Fátima. Era Maio, e aproximava-se a procissão das velas. Comprámos dezenas de velas. Lembras-te? Éramos doidos por velas. Levámos vários sacos cheios delas. Depois andámos a passear no santuário, à procura de boas fotografias. Fiquei chocado com aquela religiosidade excessiva, com aquelas mulheres (eram quase só mulheres) com ar sofrido, percorrendo de joelhos o recinto. Com aquela devoção pagã, os ex voto deitados em enormes fornos. Regressámos a Torres Vedras nesse dia.

Alguns dias mais tarde, na noite da procissão das velas, regressámos, com os teus pais. Eles ficaram num restaurante, e nós fomos para o recinto do santuário, com as nossas credenciais ao pescoão. Foi uma noite que não hei-de esquecer. Apesar de ser ateu, fiquei profundamente impressionado com toda aquela religiosidade. Vista de dentro, da escadaria da basílica, a que tínhamos acesso graças às credenciais, mais impressionante ainda se tornava. Fizeste nessa noite fotografias extraordinárias. Mas a imagem que me ficou foi a daquela senhora com lágrimas escorrendo cara abaixo, alegria extática no sorriso, acompanhando com o olhar o andor onde seguia a imagem da Senhora de Fátima.

Tenho muitas saudades tuas.

3.7.05

Parua Noctua


[Albrecht Dürer, Coruja]

Em miúdo a minha casa estava cheia de pequenos animais, como tive já a oportunidade de contar. Nunca tive os animais que era normal os miúdos terem, porém. Para horror da generalidade dos meus amigos - e sobretudo das minhas amigas - em minha casa havia animais de todo o género:

- rãs, muitas rãs e girinos.

- tartarugas, o que na altura era uma relativa novidade.

- tritões, coloridos e bizarros tritões que causavam sempre o maior espanto entre as visitas. Por causa das suas cores, a generalidade das pessoas achava-os "queridos".

- licranços, curiosos répteis que parecem representar um estádio intermédio entre a cobra e o lagarto, e que me exigiam uma enorme agilidade para os apanhar, pois deslizam velocíssimos por entre a erva. O truque consistia em saltar com as mãos em concha em direcção à relva que restolhava com a passagem dos ágeis bichos.

- cobras de água, que passeava dentro do bolso das camisas, apenas com a cabeça de fora, para horror dos transeuntes com quem me cruzava.

- lagartixas, difíceis de apanhar, e portanto um troféu sempre apetecido. O truque mais popular era fazer um laço com nó corredio a partir de ervas compridas, e passá-lo cuidadosamente pela cabeça das lagartixas: quando elas se mexiam, o laço fechava-se, e já estava.

- hamsters, que na altura não tinham a popularidade de hoje, e provocavam sempre gritinhos nas amigas a quem os mostrava sem pré-aviso. Cometi o erro de juntar um casal, e fui premiado com ninhadas mensais, até me conseguir desfazer de todos e resolver assim o problema.

Dos animais mais comuns apenas tive duas cadelas, a quem nunca me afeiçoei, peixes, a quem nunca liguei demasiado, e pássaros.

Mas nunca tive uma coruja nem um mocho nem um morcego, animais que sempre me seduziram. Nocturnos, misteriosos. Difíceis de manter, animais que dificilmente resistiriam às mãos e à falta de cuidado de um miúdo curioso que se deitava depois de jantar. Hoje seria mais fácil. Eu próprio me tornei um animal nocturno.

Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος


[Gerrit Dou, c. 1630 - Velha lendo a Bíblia]

Nesta Páscoa comprei a novíssima tradução da Ilíada, do Frederico Lourenço. Não é necessário repetir aqui os merecidos e generosos elogios que esta tradução tem recebido. O trabalho do Frederico não precisa de mais louvores. O nome dele ficará na história dos estudos clássicos portugueses, não tenho quaisquer dúvidas sobre isso. Tem feito mais pela divulgação dos estudos clássicos com a mediatização do seu excelente trabalho do que mil colóquios e congressos feitos à maneira tradicional. Já lho disse, e repito-o aqui. Mas não é da enorme qualidade da sua Ilíada que quero falar.

A tradução do Frederico é volumosa, encadernada com capa dura, vermelha de sangue, brilhante. No dia em que a comprei decidi regressar a casa de comboio, o que não fazia há anos. A viagem é mais longa do que se feita de autocarro, mas muito mais cómoda e agradável. Assim, sentei-me numa carruagem quase vazia, recostei-me no banco confortável, e passei aquela hora de viagem a ler o Canto I da Ilíada, deslumbrado. Notei, porém, que uma senhora de alguma idade, no banco do lado, me olhava demoradamente, com um sorriso aprovador. Na minha ingenuidade achei que talvez fosse alguma classicista que tinha reconhecido em mim um companheiro. Havia, com efeito, um certo ar cúmplice na forma como me olhava. Quando o comboio chegou a Torres Vedras, saí, e apressei-me a abandonar a plataforma. Mas uma voz fraca reteve-me. Olhei para trás: era a senhora de idade, com um sorriso enorme nos lábios. Apontou para a Ilíada, que eu apertava contra o corpo, e perguntou, com ar afirmativo: "Vai muito bem acompanhado! É a Bíblia, não é?" Fiquei tão estupefacto que só consegui responder "Bom, é uma bíblia, realmente, mas não é aquela em que está a pensar". O sorriso franco depressa se transformou num esgar de surpresa, e de novo num sorriso, agora de confusão. Virei-me e apressei o passo, entre as gargalhadas incontidas da minha mãe e a confusão da senhora de idade. Depois arrependi-me de ter sido tão brusco, mas em situações inesperadas reajo sempre desta forma.

2.7.05

et finita est pugna in die illo porro rex Israhel stabat in curru suo contra Syros usque ad uesperam et mortuus est occidente sole


[Albrecht Dürer, Estudo de mãos com a Bíblia]


Já fui cristão, agora não sou nada. Mas tenho um grande fascínio pela Bíblia. Tenho várias em casa: uma tradução portuguesa dita "dos Capuchinhos"; duas edições da Vulgata Latina; uma Septuaginta (ainda que o meu grego esteja muito esquecido); várias edições do Novo Testamento. Portanto hoje não podia faltar à "Bíblia Manuscrita", em Torres Vedras. Calhou-me o segundo livro das Crónicas, 18:34-19:1.

Hic sunt leones



Há 99 anos atrás nascia o Sporting Clube de Portugal. Não sei por que sou do Sporting. Tenho uma ideia vaga de um dia ter pedido ao meu pai para me levar à bola. De ele me ter dito "só se fores do meu clube". De lhe ter perguntado qual era o clube, e de me ter sido respondido "não posso dizer, se não é batota". De ter corrido para a minha mãe e lhe ter perguntado "qual era o clube do pai". De me ter agarrado às pernas dele a gritar "sou do Sporting". Eu devia ter 6 ou 7 anos. Mas só mais de 20 anos depois é que consegui ir ver o primeiro jogo do Sporting em Alvalade. O meu pai nunca me levou, apesar de eu ter acertado na sua preferência clubística (para desgosto da minha mãe, benfiquista ferrenha). A desilusão pela quebra da promessa paterna foi grande, mas nunca deixei de ser sportinguista. Não deixei nunca de vibrar com cada vitória, nem de suspirar em cada derrota. Penei durante o longo interregno dos anos 80 e 90, sonhando em cada início de época e abanando a cabeça de desilusão de cada vez que a esperança se desfazia. Senti uma alegria indescritível quando se quebrou o jejum, em Maio de 2000, tão grande que nem tive forças para sair à rua a festejar. Fiquei em casa, profundamente emocionado. Achei que ia chorar, mas não chorei. Não consigo chorar quando me emociono profundamente.


26.6.05

Vox clamantis in deserto II


[Caravaggio, 1603-1604 - São João Baptista]

Naqueles dias eu achava que a sensualidade não existia. Que podia passar o resto da vida casto. Que a beleza física podia ser apreciada de forma exclusivamente intelectual. Que amor sem carne era possível e desejável. Naqueles dias eu era muito novo.

Antiquus amor


[Caravaggio, 1608 - Cupido dormindo]

Não há amor como o primeiro, diz o povo. Não foste o meu primeiro amor, foste talvez o segundo. Mas foste o mais duradouro. Durante anos pensei em ti, sem esperança. Saíamos à noite. Íamos a sítios de que não eu gostava particularmente. Mas ansiava por que chegasse a noite para poder ir para esses sítios de que não gostava. Tu também ias: íamos os dois, e por isso eu queria ir a esses sítios de que não gostava, desejava-o até, ardentemente. Também tu o sentias, mas não o demonstravas, ou então eu não o percebi. Durante meses (anos?) a fio jogámos este jogo. Nenhum de nós tinha coragem de dar o primeiro passo. E assim nos torturámos durante tanto tempo. Foi preciso vir uma terceira pessoa dar o empurrão, fazer de moderna alcoviteira. Lembras-te? Depois aconteceu o que sempre acontece. O tempo passou, a paixão esmoreceu. Fartaste-te de mim. Eu era um miúdo. Tinha quê, 20 anos? Imaturo, inconstante. Tu tinhas só uns poucos anos a mais, mas era o suficiente. Quantos anos passaram? Nunca deixei de gostar de ti, dou-me conta disso enquanto escrevo. Hoje cruzámo-nos. Não te via há pelo menos dez anos. Não soube o que fazer. Não parei, estava com pressa. Que estupidez. Pressa? Pressa de quê? Ter-me-ás visto? Ter-me-ás reconhecido? Tenho saudades tuas.

21.6.05

ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ





[Ulisses cegando Polifemo - fragmento de cerâmica. Argos, século VII a.C.]

Teria uns 10 anos no máximo. Dedicava-me a um dos meus passatempos preferidos: enfiar-me na nossa despensa, e vasculhá-la. A nossa despensa não tinha produtos alimentares. Era antes uma pequena divisão, entre a cozinha e a casa de jantar, onde a minha mãe guardava livros que já não cabiam em mais lado nenhum, roupas, objectos diversos que não tinham já préstimo ou lugar onde serem arrumados... Eu adorava vasculhar essa autêntica mina de coisas velhas e surpreendentes. Todos os dias descobria alguma coisa excitante. Naquele dia descobri uma "Odisseia contada aos mais novos", de João de Barros. Se não era assim o título, era parecido. Já lá vão muitos anos. Na capa um gigante de um só olho - eu não sabia quem era Polifemo. Sentei-me em cima de alguma coisa, provavelmente um monte de roupa dobrada, e deixei-me ali ficar, horas seguidas, a devorar as aventuras de Ulisses e companheiros, comovido com a fidelidade de Penélope, cujo verdadeiro significado não conseguia entender na inocência da minha infância. Impressionou-me sobretudo o episódio de Polifemo. Sonhei, durante anos, com o gigante de um só olho, devorando os companheiros de Ulisses. Com o tronco afiado e endurecido no fogo com que o filho de Laertes cegou o ciclope. Com Ulisses e os companheiros sobreviventes saindo da caverna de Polifemo agarrados às barrigas dos carneiros do gigante. Com os urros de dor do ciclope. E sobretudo com o ardiloso estratagema de Ulisses, que à perguntas "como te chamas" respondeu "Ninguém". Muito me impressionei, na inocência da minha infância, com a astúcia de Ulisses. E como achei parvo o Polifemo, que, quando os outros ciclopes lhe perguntavam quem o matava, respondia "Ninguém me mata". Tolo, não percebeste logo a artimanha?

Lembro-me de que perguntei à minha mãe que história era aquela, e de ela me dizer que era uma história da Grécia antiga. Naquele dia não decidi que ia estudar Clássicas, pois não sabia o que era um curso superior. Mas decidi que queria saber mais, muito mais sobre a Grécia antiga e sobre Ulisses.

Muitos anos mais tarde decidi aprender latim - não havia grego na minha escola. Apaixonei-me pela língua, e não descansei enquanto não consegui também aprender grego. Mas isto contarei noutro dia. Aos 18 anos entrei no curso de Línguas e Literaturas Clássicas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Senti um arrepio indizível, quando, já no 2º ano do curso, na cadeira de Grego II, traduzi na íntegra o Canto IX da Odisseia, precisamente onde se conta como Ulisses enganou Polifemo.

20.6.05

Otium sine litteris mors est et hominis uiui sepultura


[Giuseppe Maria crespi, 1725 - Estante de livros]

Se tivesse de escolher algo meu para salvar, se tivesse um dia de fugir de casa com as coisas que me são mais queridas... As coisas mais preciosas que tenho em minha casa são os meus livros. A minha biblioteca, construída ao longo dos últimos vinte e tal anos. Trato-a com carinho e veneração, como a um familiar já velho, que conhecemos desde sempre, que nos educou, que nos formou. Quem sou hoje está ali naquelas estantes. Livros que me ofereceu a minha mãe quando eu não tinha ainda idade para ter gostos literários, e que me moldaram como homem. Os livros que amigos me ofereceram. Os livros que eu mesmo escolhi e comprei, ou pedi à minha mãe que comprasse. Ali estão os exemplares sobreviventes de "Os cinco", que devorava quando era miúdo. O Eça, que li na íntegra durante a adolescência. O Umberto Eco, que venero, leio e releio desde que o descobri em 1990. O Joyce, difícil e fascinante. Tantos, e tantos ainda que me falta ler. Há quem ame o seu carro. Eu amo a minha biblioteca.

Quod uix contingit ueram uoluptatem parit


[Vermeer, 1657 - Rapariga lendo carta]

Quando ouvia os passos do carteiro a subir a escada precipitava-me para a porta. Em silêncio. Como se fosse fazer algo proibido, tinha medo de que ele me ouvisse. Aguardava que se abrisse a portinhola metálica por onde ele lançava as cartas. Era uma casa antiga, a nossa, não tinha caixa de correio - em vez disso, havia uma pequena abertura na porta da rua, pudicamente coberta por uma tampa metálica, que fazia um característico estalido quando, depois de por ela lançadas as cartas, se fechava. Lançava-me então, sempre no mais absoluto e inexplicável silêncio, para o molho de cartas e rebuscava freneticamente, à procura de alguma que me fosse destinada. Se havia alguma, recolhia-me no meu quarto, abria voluptuosamente o envelope, e saboreava durante o resto do dia o manuscrito que me tinha sido enviado. Há anos que não recebo cartas. Tenho saudades.

Quanto recebi o meu primeiro e-mail tive uma sensação parecida. Talvez mais voluptuosa ainda. Porque na altura usava um cliente de e-mail que não fazia previsão do texto: era obrigado a abrir de facto o ficheiro, para o poder ler. Assim foi enquanto tive poucos correspondentes. Hoje é com algum enfado que abro o Thunderbird, e selecciono os e-mails que realmente me apetece ler - e são cada vez menos.

Tenho saudades de receber e enviar correio manuscrito.

18.6.05

Stultifera Nauis


[Bosch - A nau dos loucos]


Há dias assim. Não sei aonde vou parar nesta vida. Por enquanto estou descansado, porém. Enquanto recear estar louco, não estou de facto louco.